Metáforas:
Subjetividade em Discurso Científico

Luciana Moraes Barcelos Marques (UFES)

 

Resumo

Neste trabalho analisam-se as estratégias comunicativas utilizadas em discursos científicos, com base nas noções funcionalistas de metáforas estruturais (Lakoff & Johnson, 1980) com vistas a observar construções argumentativas expressas metaforicamente. Desse modo, serão consideradas as concepções sobre metáforas de Lakoff e Johnson e sua utilização em discursos científicos, com aplicação a um corpus da biologia.

 

Introdução

O cotidiano nos apresenta condições de enunciação distintas, inéditas e, raras vezes, repetidas. Em geral, os conhecimentos enciclopédicos dos falantes garantem a interpretação de cada uma dessas construções; no entanto, observa-se que a todo tempo são utilizados enunciados (inéditos ou não) “cujo significado literal não corresponde ao significado da emissão do falante (aquilo que o falantequer dizer”)” (Searle, 1995), mas a compreensão do enunciado ocorre normalmente. Muitas dessas expressões são designadas, grosso modo, como metáforas.

A metáfora foi definida inicialmente por Aristóteles em sua Retórica como “uma comparação entre dois termos, A e B, tomados como impropriamente semelhantes entre si” (apud Valente, 1999: 55) e em sua Poética como o “transportar para uma coisa o nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero [...] ou por analogia” (apud Campos, 1982: 107).

Em geral, a abordagem mais tradicional trata a metáfora como um fenômeno consciente, procurado e pretendido no momento de uso, criado apenas pelosconhecedores” da língua como poetas, filósofos e escritores. Essa figura de linguagem é comumente endeusada, como se fosse empregada apenas pela “elite conhecedora das letras”.

Numa abordagem funcionalista, ao analisar o uso oral e cotidiano da língua, observa-se que a metáfora é uma estratégia comunicativa. Verificando-se, portanto, que o uso e a compreensão da metáfora dependem mais de conhecimento de mundo e menos da utilização da linguagem em si, tendo seu foco principal no contexto; não apenas na linguagem oral (informal), mas também na linguagem científica.

Deste modo, questionar-se-á o pseudo objetivismo na linguagem científica e a formulação conceitual de sistemas de conhecimento por meio da utilização metafórica em conformidade com o contexto científico e seu respectivo grupo sócio-cultural, corroborando a presença da subjetividade em contextos pretendidos como imparciais.

 

A Metáfora sob uma Perspectiva Funcionalista

Os autores que mais influenciaram a visão funcionalista da metáfora foram George Lakoff e Mark Johnson. Em seu livro Metaphors We Live By, de 1980, eles apresentaram uma pesquisa sobre metáforas cotidianas, que muitas vezes não são concebidas como metáforas, por serem muito naturais.

Essa teoria funcionalista esclarece que uma sociedade compreende o mundo por meio de metáforas construídas com base em sua experiência corpórea. A interação com o mundo externo ao indivíduo lhe possibilita a construção de sentido para enunciados abstratos e a possibilidade de enriquecer semanticamente um ato comunicativo proposto.

Como descreve Ortony (1993: 1-2), a idéia central do novo paradigma “é de que a cognição é o resultado de uma construção mental”. O conhecimento da realidade, tenha sua origem na percepção, na linguagem ou na memória, precisa ir além da informação dada. Ele emerge da interação dessa informação com o contexto no qual ela se apresenta e com o conhecimento preexistente do sujeito conhecedor. (Zanoto; Moura; Nardi; Vereza, 2002: 13)

A perspectiva funcionalista abordada por Lakoff e Johnson distribui o estudo das metáforas em três grandes grupos: metáforas estruturais, orientacionais e ontológicas. Ao presente estudo, interessa as metáforas estruturais, contudo, comentaremos sucintamente, cada uma delas.

 

Metáforas Estruturais

Segundo Lakoff e Johnson, o sistema conceptual que dirige não apenas o pensamento, mas também as ações, é fundamentalmente metafórico. Assim, os conceitos são responsáveis por estruturar as atividades humanas. Essas afirmações fundamentam o fato de o sistema conceptual metafórico explicitar as características de uma cultura.

De acordo com os autores, os conceitos metafóricos podem ser sistematizados, ou seja, é como se houvessem metáforas canonizadas pela cultura que estão imbricadas no pensamento humano. A partir dessas metáforas canonizadas, seriam formadas estruturas diferentes que se referem a um mesmo conceito, que é construído dentro de uma cultura (ou um grupo social ou científico) de acordo com as características que se quer explicitar ou ocultar, pois a funcionalidade referencial das metáforas realça alguns aspectos e encobrem outros.

“Desta forma, quando dizemos que um conceito é estruturado por uma metáfora, queremos dizer que ele é parcialmente estruturado e que ele pode ser expandido de algumas maneiras e não de outras” (Lakoff & Johnson, 2002: 57), o que faz com que o conceito aproveite toda a polissemia permitida pelas expressões metafóricas, no entanto, sem atingir aspectos não abordados pela metáfora. Assim, as metáforas estruturais cujo conceito é estruturado metaforicamente em termos de outro conceito – constituem parte do sistema metafórico.

 

Metáforas Orientacionais e Metáforas Ontológicas

Complementando o sistema metafórico, tem-se as metáforas orientacionais, que “organiza[m] todo um sistema de conceitos em relação a um outro” (Lakoff & Johnson, 2002: 59). Esse tipo de metáfora é motivado pelo fato de as pessoas terem corpos que se relacionam com o meio ambiente em que vivem; proporcionando metáforas com orientações espaciais do tipo: para cima para baixo, dentro fora, frente trás, entre outros.

Desta forma, Lakoff e Johnson (1980) sistematizam as escolhas lexicais metafóricas num âmbito espacial a partir da cultura em que o falante está inserido, de forma que é esta cultura que irá proporcionar coerência na metáfora escolhida e, principalmente, entre várias metáforas relacionadas. Assim, a metáfora é estudada de fora para dentro, é a cultura que define como o cérebro conceberá as relações metafóricas necessárias para a formulação de um determinado enunciado.

Já as metáforas ontológicas – que personificam objetos e idéias – possibilitam uma referência mais clara entre abstração e conceito, usando características de seres e objetos para definir estes conceitos. Possibilitando racionalizar mais concretamente sobre estas questões abstratas, e assim traçar planos de ação para solucionar problemas.

Da mesma forma que as experiências básicas das orientações espaciais humanas dão origem a metáforas orientacionais, as nossas experiências com objetos físicos (especialmente com nossos corpos) fornecem a base para uma variedade extremamente ampla de metáforas ontológicas, isto é, formas de conceber eventos, atividades, emoções, idéias, etc. como entidades e substâncias. (Lakoff & Johnson, 2002:75-76)

As metáforas ontológicas possibilitam fazer referência, quantificar, identificar aspectos, identificar causas, traçar objetivos e motivar ações. Enfim, conceber fisicamente aquilo que não é físico, trazendo para o “mundo palpável” idéias abstratas.

 

Pseudo Objetivismo:
A Metáfora no Discurso Científico

O pensamento científico, partindo de princípios extremamente racionalistas e de uma concepção filosófica de matriz positivista que afirma a superioridade da ciência sobre todas as outras formas de compreensão da realidade (o cientificismo), trouxe consigo a falsa afirmação da verdade:

Sua preocupação com a verdade surge de uma preocupação com a objetividade: para eles [os filósofos], a verdade é objetiva, absoluta. Concluem, habitualmente, que as metáforas não podem expressar verdades de forma direta e, se enunciam verdades, fazem-no apenas indiretamente, via alguma paráfrase “literal” não metafórica. (Lakoff & Johnson, 2002:261)

No entanto, faz-se necessário conceituar o que seria (e se existe) essa verdade e de que maneira ela se imanta nas noções de objetividade e cientificidade. Coracici (1991) explicita a relatividade da verdade que se apóia no momento enunciativo:

Mas, o que vem a ser a verdade se não uma forma de considerar a realidade inserida no momento histórico, num determinado estágio das descobertas científicas, num determinado local geográfico, enfim, numa cultura partilhada pelos indivíduos? Se se aceitar a relatividade da verdade, a idéia clássica que remonta a Aristóteles, segundo a qual existiria uma lógica cujas proposições se baseariam num valor de verdade independente da natureza particular da enunciação (sujeitos, momentos, enfim, condições de produção do discurso), não teria lugar nos enunciados das línguas naturais, nem mesmo naqueles que enunciam as ‘ditas verdades universais’, pois, mesmo estes se ligam à enunciação, à natureza dos participantes da comunicação verbal e de sua situação no espaço e no tempo. (cf. Kerbrat-Oreccchioni, 1977; Récanati, 1979; Rajagopalan, 1984). (Coracini, 1991: 122)

Quando se questiona o conceito de verdade, também é questionada a objetividade, portanto, o discurso científico objetivista relativiza-se pelo momento enunciativo e pelas relações lingüísticas que o embasam.

Entretanto, buscando atingir essa suposta objetividade na linguagem, o discurso científico utiliza relações diretas de significação, evitando as figuras de linguagem por expressarem – socialmente – relações subjetivas entre o enunciador e seu enunciado. Esses discursos, portanto, são compostos por inúmeros jargões específicos que se cristalizaram com o uso, objetivando um distanciamento do discurso, buscando ser imparcial e objetivo, uma vez que esse objetivismo defende uma linguagem ‘imaculada’, na qual

As palavras têm significados fixos, isto é, nossa linguagem expressa os conceitos e as categorias em termos dos quais pensamos. Para descrever a realidade corretamente, precisamos de palavras cujos significados sejam claros e precisos, palavras que correspondam à realidade. Essas palavras podem surgir naturalmente, ou podem ser termos técnicos de uma teoria científica. (Lakoff & Johnson, 2002: 296)

Cabe ressaltar que essa suposta objetividade não se configura discursivamente, uma vez que as escolhas lexicais do falante já expressam características subjetivas a ele, ou remetem a uma subjetividade partilhada (utilizada por membros de uma comunidade científica). Ao uso metafórico referente a essa subjetividade partilhada, costuma-se denominar ‘metáforas mortas’, pelas quais se argumenta que:

O tipo de metáforas de que a ciência se serve é considerado pelos lingüistas como ‘metáforas mortas’ e, por isso mesmo, já com tendência à literalidade e à denotatividade, uma vez que teriam perdido todo valor de surpresa, imagem e expressividade, características da linguagem metafórica. (Coracini, 1991: 133)

Esta abordagem ao considerar o uso em discursos científicos apenas de ‘metáforas mortas’ é discutível, uma vez que as imagens que elas constroem continuam sendo retomadas no momento comunicativo. Desta forma, as relações metafóricas se mantêm no discurso científico, implicando a existência de um cientista-enunciador, que parece querer se ocultar por meio de uma linguagem convencional e supostamente objetiva e imparcial.

Destarte, a expressão lingüística metafórica no discurso científico ratifica a subjetividade inerente à linguagem. Subjetividade esta que é expressa como a manifestação de uma individualidade coletiva que é subjugada por seu nicho social e que se ambienta às exigências desse nicho.

A partir disso, pode-se observar que mesmo nos discursos científicos, há metáforas estruturais (‘vivas’) que organizam o sistema conceitual sobre um determinado léxico específico e que formalizam uma referenciação discursiva.

 

Metáforas no Uso Científico

A partir das conceituações de Lakoff e Johnson há metáforas estruturais que abrangem determinadas comunidades científicas. Buscando ratificar tal afirmação, foram analisadas nesta pesquisa metáforas construídas e cristalizadas dentro do campo semântico da biologia humana, como exemplificadas a seguir.

 

Ø Metáfora Estrutural: Comunidades celulares são famílias

célula mãe

“células irmãs

“célula filha”

“cromossomos-filhos”

 

Ø Metáfora Estrutural:
Comunidades biológicas se organizam como seres humanos

“células companheira”

“gânglios associados”

 

Ø Metáfora Estrutural: Comunidades biológicas
possuem características de seres humanos

“célula madura”

“cadeia simpática”

“Sistema nervoso simpático: origina-se na medula torácica e na lombar”

“Uma batida de porta repentina que ocorre no meio da noite produz uma grande quantidade de impulsos simpáticos eferentes.”

“árvore bronquial; que conduzem, aquecem, umedecem e filtram o ar inalado de partículas de pó e gases irritantes, antes de sua chegada à parte pulmonar.”

 

Ø Metáfora Estrutural: Comunidades biológicas são plantas

“células tronco”

“árvore bronquial; que conduzem, aquecem, umedecem e filtram o ar inalado de partículas de pó e gases irritantes, antes de sua chegada à parte pulmonar.”

 

Ø Metáfora Estrutural:
Comunidades biológicas são unidades geográficas

“Num corte do pâncreas, contudo, notam-se "ilhas" de substância formada de células diversas das do resto da glândula: são as ilhotas de Langerhans, que são dotadas, justamente, de urna função endócrina.”

Outra forma de se verificar a metáfora no discurso científico encontra-se nas formulações explicativas a um público não acadêmico e com pouco conhecimento científico, desta forma, a metáfora torna-se veículo simplificador para a compreensão de processos especificamente técnicos.

Como por exemplo, a relação que se fez entre o sistema respiratório e uma estação de trem:

No começo do túnel há um portão, a glote. Ela só deixa entrar o ar, impedindo que alimentos passem. A primeira estação é a laringe, muito importante para a voz. Por isso que a gente fica rouco quando tem laringite: é quando a laringe está doente. Em seguida, vêm as cordas vocais. São elas que regulam o ar, quando a gente fala grosso ou fino. Logo embaixo vem a traquéia. É a última estação antes de chegar aos pulmões – ou a primeira quando o ar está saindo. Como o nariz, a traquéia tem um filtro de pêlos, que não deixa que nenhuma partícula passe para os pulmões: próxima parada...

A partir desses exemplos, pode-se observar que as metáforas também estão presentes no discurso científico, revelando um “cientista-enunciador” que busca esconder-se em um discurso convencional por uma pseudo-imparcialidade.

Retomando as conceituações de Wittgenstein (no Tractatus Lógico-Philosophicus), Araújo afirma que “os limites do mundo são também os limites da lógica, o que não pode ser dito não pode ser pensado.” (Araújo, 2004:77), desta forma, as metáforas – também no discurso científico – colaboram para a (não) delimitação do mundo, ou seja, por meio delas é possível conceber o mundo e interagir com ele.

Portanto, a linha que separa o que é metafórico e o que é literal é muito tênue, pois tais concepções estanques fazem parte de uma visão cartesiana ocidental que busca o essencialismo em oposição ao marginal. Portanto, todo o sistema lingüístico é por origem metafórico, uma vez que “a linguagem é, pois, em si mesma metafórica: modo de expressão da visão subjetiva do Universo” (Coracini, 1991: 146)

 

Algumas Considerações

Esta pesquisa é apenas um fragmento de toda a complexidade que envolve a cognição metafórica, suas implicações no mundo e sua funcionalidade para os falantes de uma comunidade. Observando-se que as construções metafóricas não são apenas lingüísticas, mas sociais, que recriam e modelam os conceitos e as ações de uma cultura e/ou de um grupo social.

Embora sejam essenciais para a comunicação humana e para a forma de se conceber o mundo, as metáforas continuam rejeitadas pelas teorias objetivistas e colocadas de forma dissimulada nos contextos científicos. Deste modo, ignora-se sua característica cotidiana e colaborativa para a compreensão de conceitos abstratos, sendo parte integrante do sistema conceptual humano.

Apesar de o discurso científico buscar imparcialidade em suas colocações, as metáforas utilizadas (construídas) colaboram para a compreensão das relações existentes em abstrações novas e recriam a realidade discursiva pela qual se firmam categorias conectadas ao sistema conceitual ‘científico’.

 

Referências Bibliográficas

Araújo, Inês Lacerda. Do signo ao discurso: introdução à filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola, 2004.

Camara Jr., Joaquim Mattoso. Dicionário de lingüística e gramática. Petrópolis: Vozes, 1996.

Campos, Geir. Pequeno Dicionário de Arte Poética. 3ª ed. São Paulo: Cultrix, 1982.

Coracini, Maria José. Um Fazer Persuasivo: O Discurso Subjetivo da Ciência. São Paulo: Educ; Campinas: Pontes, 1991.

Lakoff, George & Johnson, Mark. Metáforas da Vida Cotidiana. Campinas: Mercado de Letras / Educ, 2002

Searle, John R. Expressão e Significado: Estudos da teoria dos atos de fala. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

––––––. Metáfora, Campo Semântico e Dialética na Produção e na Leitura de Textos. In –––. Aulas de Português: Perspectivas Inovadoras. Petrópolis: Vozes, 1999, p.49-66.

Zanotto, Mara S.; Moura, Heronides M. de M.; Nardi, Maria Isabel A.; Vereza, Solange C. Apresentação. In: Lakoff, George & Johnson, Mark. Metáforas da Vida Cotidiana. Campinas: Mercado de Letras / Educ, 2002

http://www.corpohumano.hpg.ig.com.br Acesso em 01/08/2006.