Motivação e Acaso

Zinda Vasconcellos (UERJ)

 

RESUMO

O trabalho proposto pretende discutir o balanço entre previsibilidade e imprevisibilidade nos significados lexicais através do exame do papel relativo de fatores motivados e da influência do acaso – daquilo que a autora chama de “fatores histórico-ocasionais de geração de sentidos” – na criação de novas palavras, e também de novas acepções para palavras já existentes.

 

Este artigo tenta explicar um paradoxo do léxico, que reside no seguinte. Nos estudos de qualquer corrente lingüística que trate do léxico, a ênfase é posta na questão da previsibilidade dos significados lexicais, seja por ocasião da formação de novas palavras, seja no que diz respeito ao surgimento de novos sentidos para as palavras já existentes. Isso porque, em princípio, seria dessa previsibilidade que dependeria a possibilidade de compreensão e aceitação da nova criação por parte de outros usuários da língua. Daí a preocupação dos estudiosos com mecanismos que garantam a regularidade na formação de novos sentidos e daí a previsibilidade. Mas, ao mesmo tempo, qualquer estudioso que se debruce sobre os itens lexicais reais de uma língua, se deparará com a existência de lexias cujo significado não corresponde ao que seria previsível pelos processos que governam sua formação, muitas vezes sendo até difícil detectar que condições teriam atuado na determinação dos significados em pauta.

Esse descompasso foi muitas vezes explicado como conseqüência da evolução semântica ter-se processado em desacordo com a permanência morfológica (por ex., em Aronoff, 1976: 16). Sendo assim as irregularidades se limitariam às palavras “velhas na língua”, presentes há muito tempo no léxico  o que historicamente, na tradição de estudos gerativistas do léxico, foi uma justificativa para a distinção de dois tipos de regras diferentes, regras de formação de palavras, que descreveriam os processos “vivos” de formação) e regras de estrutura lexical, que apenas descreveriam a estrutura de palavras morfologicamente complexas (Basílio, 1980: 20]). A toda regra de formação de palavras necessariamente corresponderia uma regra de estrutura lexical, mas o contrário não seria verdadeiro. Mas rapidamente se teve que reconhecer que o problema persistia até mesmo em palavras recém-formadas, sobretudo em casos de nomeação metafórica[1].

Poder-se-ia argumentar que o problema tratado só é especialmente grave num tipo de abordagem que recorra a regras lexicais, de formação ou de estrutura de palavras, dado o caráter rígido desse tipo de mecanismo, que exige um excesso de condições e de grau de previsibilidade (Cf. Basílio, [1997a: 11], para as exigências postas pelas regras lexicais, bem como Martins, H. F.[1991], para os problemas de dar conta de regularidades parciais dentro da abordagem gerativista de então). Com efeito, nesse artigo Basílio argumenta pela superioridade do princípio da analogia (PA), proposto por Saussure, sobre regras lexicais, especialmente pela maior “latitude” deste: para operarmos com o PA não precisamos de elementos delimitados e categorizados nos moldes estabelecidos pelas RFPs[2]. Enquanto mecanismo lógico, a quarta proporcional[3] pode operar com quaisquer elementos que se conformem à estrutura básica; …” (ibidem, p. 11). E, continuando o mesmo trecho, acrescenta – o que é importante para a questão do balanço entre regularidade e irregularidade no léxico, tema do presente artigo: “esses elementos podem, em certos casos, não corresponder à expectativa da gramática bem comportada”.

Na expressão certos casos está o ponto que interessa aqui. Realmente a autora reconhece que num grande número de casos não há diferença empírica entre regras de formação de palavras e princípio da analogia. Este só seria superior para dar conta especialmente de criações literárias ou com objetivo de estranhamento, palavras de efeito retórico, poético ou humorístico, bem como para tratar de fenômenos classicamente resistentes a outras abordagens, como falsas etimologias e formações regressivas, e até da criação de novos elementos mórficos que pode ocorrer no uso da língua. Para ela o princípio da analogia seria superior não tanto para dar conta da produtividade lexical, mas por também ser capaz de dar conta de uma real criatividade.

O motivo por que o fato dessa maior latitude do princípio da analogia se restringir a “certos casos”, exatamente aos “mal-comportados”, é importante para este artigo diz respeito a que isso mostra que não é o princípio da analogia em si mesmo – ou melhor, o mecanismo da quarta proporcional que o operacionaliza – que explica o quê de imprevisível entra no sentido dessas formas “mal-comportadas”. Por se tratar de um mecanismo mais frouxo, ele permite a criação delas, e a reconstituição dessa criação, mas só a posteriori (esses casos que não correspondem à aplicação de uma regra são exatamente os imprevisíveis a priori), e não basta para dar conta do “algo a mais” que entra nela. Seria longo demais desenvolver isso aqui, mas os casos mais interessantes citados por Basílio são exatamente os em que interferem os fatores de geração de sentido que chamo de histórico-ocasionais.

Antes de continuar, então, esclareço o que quero dizer com isso. Os adjetivos histórico e ocasionais falam por si, estão realmente sendo usados para referir-se, por um lado, ao que é histórico, e, por outro, ao que é fruto do acaso. Mas talvez cause estranheza aproximá-los como caracterizadores de um mesmo tipo de fatores que interferem no significado lexical. É um modo de referir-se a tudo o que é circunstancial, contingente, mas serve de pano-de-fundo sobre o qual o discurso se dá, ou seja, à situação e ao contexto discursivos visto de modo amplo, que pode incluir não só conhecimentos genéricos partilhados pelo grupo social, como modelos cognitivos, que ainda estão do lado do que é previsível, mas também fatos específicos, acontecimentos  desde que de conhecimento geral e relevantes num dado contexto histórico, de modo a possibilitar a aceitação e a difusão das novas palavras criadas.

Um exemplo interessante da interação da operação de regras de formação de palavras com fatores histórico-ocasionais é o caso da criação do verbo malufar, não com o sentido de votar em Maluf, que hoje em dia predomina, mas com o sentido de “agir ética ou politicamente como Maluf”, que ele tinha quando foi criado, mais ou menos na época da campanha pelas diretas[4], um pouco antes, portanto, do surgimento, ou pelo menos do uso disseminado, do verbo brizolar. A criação de malufar, em si, não é irregular: trata-se de um verbo denominal, cuja forma é gerada pelo acréscimo de ar a um substantivo. Também não é tão irregular assim do ponto de vista do significado, que se deriva de uma das “fórmulas gerais” que podem ser propostas para os verbos denominais em Português, AGIR COMO X, em que X é o substantivo que serve como base (ver Basílio 1997b). Só o contexto histórico, porém, pode dar conta do conteúdo significativo específico então atribuído ao verbo, ou seja, que a esfera do comportamento de Maluf visada pela comparação era a relativa aos campos político e ético, e o que se queria dizer com agir ética ou politicamente como Maluf.

Outro tipo de processos que vêm sendo sugeridos não tanto para explicar a formação de palavras, mas para dar conta de novos sentidos para palavras já existentes são os processos motivados explorados pelos teóricos da Lingüística Cognitivista (mapeamentos metafóricos e metonímicos, “blendings”, transformações de esquemas de imagens, etc.). Tal como o princípio da analogia, esses processos têm condições relativamente amplas de implementação, e também são compatíveis com uma grande criatividade. Porém mesmo eles não dão conta não só da ocorrência ou não desses novos sentidos – o que é normalmente reconhecido pelos cognitivistas – mas também não de toda a especificidade deles. Muito freqüentemente a operação deles ocorre apoiada em, e junto com, a dos fatores histórico-ocasionais, e é essa atuação conjunta que dá conta de algo de irredutivelmente novo na geração dos sentidos criados.

Um exemplo da combinação de uma metonímia recorrente com fatores histórico-ocasionais pode ser visto no significado que o ex-nome próprio Brastemp adquiriu recentemente, o de alguma coisa ser a melhor dentro da sua classe, manifestado em usos como “Esse micro não é nenhuma brastemp, mas dá pro gasto”. O uso de um nome de marca pelo produto é bastante recorrente, havendo casos, como o do material normalmente chamado de fórmica, em que a língua corrente não técnica nem mesmo tem um outro nome, não derivado do da marca, para esse produto. Até mesmo a idéia de que o produto de uma marca que se confunde com o nome do produto deva ser excelente é até certo ponto previsível. Só que não foi isso o que ocorreu no caso em pauta, até porque a marca Brastemp tem vários tipos de produtos, e o seu nome não poderia ser usado simultaneamente para todos eles. O sentido analisado, mesmo se com alguma base motivada, veio a ser criado na verdade como decorrência de um anúncio publicitário amplamente disseminado pela televisâo, e na sua geração teve influência não só tal base motivada, em que o próprio anúncio já se apoiava, mas a frase específica dita no anúncio.

O caráter total ou parcialmente aleatório dos significados lexicais que pode decorrer da influência de fatores histórico-ocasionais é um dos motivos pelos quais, muitas vezes, tais significados, compreensíveis na época de sua formação graças à relevância então apresentada pelos fatores em causa, venham a se tornar completamente opacos, não sugeridos nem pelos processos de formação de lexias existentes na língua nem por uma possível atuação figurada ainda reconhecível de processos motivados cognitivamente. O princípio de formação do significado dos verbos boicotar e linchar, por ex., é o mesmo proposto acima para uma das acepções de malufar: “AGIR COMO X”, sendo X um nome próprio. Em Português, trata-se de empréstimos do Inglês, mas, mesmo em Inglês, quantos falantes se relacionarão, hoje, o sentido desses verbos a Lord Boycott e Lord Lynch, respectivamente?

Outra coisa que é preciso dizer sobre a interação de fatores motivados com outros “de fato” é que se a presença de motivação em si só já pode bastar para suscitar a geração de uma nova lexia ou sentido, ela não basta, normalmente, para garantir a aceitação geral da criação decorrente, sua inclusão na língua comum da comunidade. Isso depende do uso repetido por muitos falantes, o que por sua vez é altamente influenciável por fatores histórico-ocasionais. Ao passo que um uso criativo do João da Silva pode não vir a ser repetido nem pelo próprio João, as criações de uma pessoa pública, um artista de novela, um cantor influente têm muito mais chance de “vingar”. Caso do sentido intensificador do demonstrativo aquele – que embora motivado pelo sentido do demonstrativo, e portanto pelo menos potencialmente previsto, só veio a se disseminar depois da canção Aquele Abraço; caso do uso de baixinho com o significado de criança, e de tantas outras expressões derivadas de bordões de novela.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARONOFF, M. Word Formation in Generative Grammar. Cambridge, MA: The MIT Press, 1976.

BASÍLIO, M. Estruturas Lexicais do Português. Petrópolis: Vozes, 1980.

––––––. O Princípio da Analogia na Constituição do Léxico: Regras são Clichês Lexicais. In Veredas, V. 1, N. 1, p. 9-21. Juiz de Fora: UFJF, 1997a.

BASÍLIO, M. & MARTINS, H. F. Verbos Denominais no Português Falado. In: Koch, I. (org.) Gramática do Português Falado, v. VI: Desenvolvimentos, p. 371-391. Campinas: UNICAMP/FAPESP, 1997b.

MARTINS, H. F. Irregularidade Semântica em Construções Lexicais: Um Estudo de Verbos Parassintéticos no Português. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: PUC-RIO, 1991.


 

[1] Na tradição gerativista, como, aliás, ocorria normalmente em outras tradições antes do advento da Lingüística Cognitivista, a metáfora não era concebida como um processo gerador de regularidades, como ela é tratada neste artigo.

[2] Abreviatura da autora para Regras de Formação de Palavras.

[3] Mecanismo de estabelecimento de relação simultaneamente entre sig­nificantes e significados de n-tuplas de palavras, que condiciona a aplicação do princípio de analogia de Saussure.

[4] A fonte é apenas a minha memória pessoal. Não posso garantir que tal verbo não fosse usado antes disso, nem que não fosse também usado com o sentido mais geral de “votar em Maluf, apoiar Maluf”; o que posso garantir é que, naquela época, seu uso com esse sentido “avaliativo” era bastante disseminado nos meios de esquerda.