O DISCURSO MÍTICO INDÍGENA
SOB O OLHAR DA ANÁLISE DO DISCURSO (AD)

Nara Maria Fiel de Quevedo Sgarbi (UNIGRAN)

 

RESUMO

O texto “O discurso mítico indígena sob o olhar da AD” pretende fazer uma análise discursiva sobre o que perpassa acerca do mito da criação da primeira terra, apresentado por Clastres (1990), observando a originalidade da palavra indígena, com a intenção de apontar uma forma de desvelamento dos elementos constitutivos da brasilidade do índio guarani, a partir da argumentação, dos aspectos coesivos caracterizadores desse mesmo discurso e dos elementos inerentes aos níveis semânticos, pragmático e da manifestação (AD), tomando como bases teóricas as idéias de Pêcheux (1990), Foucault (1969), Brandão (1986) e Habermas (1990), entre outros.

 

Introdução

Pode-se afirmar com Melià (1989: 309) que o guarani[1], em todas as suas instâncias críticas, “define-se a si mesmo em função de uma palavra única e singular que faz o que diz, que, de certa forma, consubstancia a pessoa”. Essa palavra manifesta-se no mito – a experiência mais direta, autêntica, imediata e originária da realidade. Para os guaranis, o mito emerge em rezas, cânticos e relatos aprendidos com os líderes religiosos que, no passado, podem ter participado mística e particularmente, como os escolhidos ou adornados, da palavra, de um ato de contemplação que jamais suplantará a excelência da própria palavra entre os guaranis. Diz-se, de acordo com Heidegger (1995), que a contemplação – como uma palavra presenciada, substantiva – é um estar no caminho para a linguagem. Depois de contemplar o falar anterior à fala dos mortais, o imperativo é dizer, pois no dizer original é que surgem todos os outros dizeres e em cada um deles há um deixar-se mostra que precede o dizer e o mostrar humanos e que se fundam na porção da sabedoria criadora.

Tomou-se em análise a versão do mito da criação da primeira terra apresentada por Clastres (1990), porque, se para os não-índios a linguagem tornou-se exterior, para as culturas primitivas, mais preocupadas em celebrar a linguagem do que em servir-se dela, a linguagem é, em si mesma, uma aliança com o sagrado, um poema natural em que repousa o valor das palavras, um abrigo que a acolhe. Neste mito, é despertado o sonho universal de deixar de ser aquilo que se é – por esse sonho realizar-se tão somente no espaço da linguagem, é o triunfo da palavra. Com o tratamento da identidade étnica, da cultura e, destacadamente, da palavra, como algo mediante o qual os guaranis continuam sendo os mesmos.

 Não se pretende traçar um panorama histórico-antropológico-lingüístico original, mas escutar a originalidade da própria palavra indígena: escutá-la até chegar-se à percepção de que se trata de outra palavra, porque o contexto de quem a diz, o que ela diz e as formas do seu dizer são outros, para, então, detectar de que forma o mito reproduz o modo de pensar a realidade para os guaranis, relacionando o universo guarani ao do não-índio na constituição do processo de brasilidade.

 

Reflexões

Discurso indígena e materialidade da língua

Do contato do índio com os não-índios advêm problemas gerados por enormes diferenças que caracterizam tanto um quanto outro grupo. Ambos sofrem as conseqüências desse contato, mas, certamente, os mais atingidos são os grupos sociais indígenas, com a redução numérica promovida por lutas e doenças adquiridas do branco; com a perda das terras das quais eram legítimos donos; com a imposição de um sistema de propriedade individual em substituição ao coletivo, tipicamente indígena; com a rejeição ao seu povo, a sua cultura e a si próprio.

Em cada um dos diferentes níveis de contato com os não-índios, o índio necessita conhecer e possuir domínio razoável da língua portuguesa, instrumento de intercâmbio lingüístico, que também lhe é imposto, como elemento ideal de comunicação, por ser o idioma dessa sociedade não indígena. A assimilação aos usos e costumes, bem como à língua, dos colonizadores caracterizou-se como a maior violência sofrida pelos povos indígenas, por terem ignoradas a sua concepção de mundo e a sua forma de pensar: a violência dos meios de denominação cultural, social e econômica.

Neste contexto mais amplo, que abrange toda a cultura indígena, insere-se a questão do mito como uma forma de resgatar o universo cultural, religioso e humano de um grupo indígena e de estabelecer as relações língua/cultura, língua/identidade como elementos confluentes no processo de constituição de sua brasilidade. Não obstante essa importância, também o mito, embora representação primeira desse universo, tem sofrido influências e conseqüências desse contato: por mais científico que seja o tratamento dado às traduções de mitos, lendas, fábulas de povos que não possuem a tradição da escrita, haverá sempre a interferência de etnólogos, antropólogos, lingüistas, mesmo que involuntária, nessas traduções; interferências de uma língua sobre a outra, de uma cultura sobre outra, de um grupo social sobre outro.

Para compreender a história de uma cultura sem essa tradição escrita, é necessário chegar aos esquemas culturais, valores e conflitos próprios, internos e específicos de cada povo, que constituem espaços de mediação em que qualquer fala é produzida e lida. Para compreender a história dos guaranis, é necessário chegar até o modo-de-ser dos antepassados, vivo nas palavras da tradição que seguem presentes na memória coletiva do grupo e espelhado no discursos mítico.

Essas palavras são o reflexo de diferentes vozes e do confronto das posições enunciativas presentes por todo o discurso mítico e a contradição e a denegação fazem parte de todo o processo de constituição do sujeito, no caso, da própria forma-sujeito índio. É por isso que fazer referência, no discurso indígena, ao sujeito jurídico é problemático, considerada a dificuldade de se definir, no âmbito da conjuntura nacional, o estatuto da(s) sociedade(s) indígena(s), com suas próprias leis, direitos e deveres. Refere-se, então, à forma-sujeito-índio, que desvela o lugar do índio na sociedade nacional, que não é aquele do cidadão brasileiro. A maneira como a forma-sujeito-índio é interpelada pela ideologia é distinta da maneira como o operário, o patrão, o militar são interpelados. Não se questiona transferir para a sociedade indígena o mesmo painel desenhado pela luta de classes, alicerçada pela questão econômica, mas é possível falar de outra luta – uma luta de etnias – em que o poder se expressa mediante a dominação, da catequese, da disciplinarização do índio, do jogo de interesse pelas terras indígenas que, em última instância, retorna à questão do poder material.

Assim, a análise do discurso indígena não pressupõe a abordagem da questão do juridismo nem da luta de classes, mas pressupõe, necessariamente, a abordagem da materialidade do sentido, viés que possibilita denunciar, por exemplo, a luta entre o mundo do não-índio e o mundo do índio e conduz à visão da forma-sujeito-índio historicamente determinada.

O sentido das palavras é produzido segundo as posições sustentadas por aqueles que delas fazem uso e em referência às formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem. Em cada formação ideológica, há uma formação discursiva que vai determinar tudo aquilo que pode e deve ser dito e é da formação discursiva na qual são produzidas que as palavras e expressões adquirem sentido, a partir de uma dada posição numa determinada conjuntura.

Para Pêcheux (1990: 102), qualquer “formação social implica a existência de posições políticas e ideológicas que não são obra de indivíduos, mas se organizam em formações”, estabelecendo entre si relações de antagonismo, de aliança ou de domínio. A formação discursiva, portanto, designa todo o sistema de regras que alicerçam a unidade de um conjunto de enunciados sócio-historicamente circunscritos; ao tratar de formação discursiva, Maingueneau (1984: 5) parte do princípio de que, para “uma sociedade, uma localização, um momento definido, só uma parte do dizível é acessível, que esse dizível forma sistema e delimita uma identidade”. Na materialidade do discurso e do sentido se instaura a interpelação do indivíduo em sujeito do discurso – interpelado pelas formações discursivas que representam na linguagem as formações ideológicas correspondentes.

No discurso indígena, mais do que tratar a materialidade do discurso, trata-se da materialidade da língua e do sentido, o que, em larga instância, remete à materialidade do discurso. Trata-se das figuras – como marcas da argumentação, da repetição, da contradição, da confirmação e do resgate cultural; trata-se, pragmaticamente, das concepções do divino, da valorização da alma; trata-se dos aspectos coesivos que permitem observar e intencionalidade do discurso. Menos do que revelar um emaranhado de fenômenos lingüísticos (ou não), todas essas formas revelam a língua como fato, como acontecimento discursivo.

Ressalta-se, ainda, que o discurso mítico guarani, sobre o qual trata o texto, é fruto da oralidade e esta, por seu turno, é traço constitutivo da materialidade da língua, na medida em que essa concepção, decorre de um processo natural em que o objeto de análise provém de uma língua de oralidade.

Assim, a existência da oralidade como forma absoluta da linguagem verbal não prevê a revolução tecnológica da gramatização, instaurada com o advento da escrita, mas prevê a revolução numa outra ordem, a da ordem do discurso.

 

Discurso mítico guarani: palavra-alma

No discurso mítico guarani da criação, escolhido como corpus deste trabalho, pode-se constatar a subdivisão da figura mítica de Ñamandu, pai verdadeiro primeiro de Karai, Jakaira e Tupã que, por sua vez, desdobraram-se nas figuras de Karai Grande Coração, guardião das chamas, Jakaira Grande Coração, senhor da bruma das Belas Palavras, e Tupã Grande Coração, emissor da fonte de frescor aos filhos e filhas bem-adornados.

Ñamandu, conhecedor de sua morada e detentor do divino saber, utiliza-se desse saber para, com a ponta de seu bastão-insígnia desdobrar a terra. O bastão aparece na linguagem simbólica sob diversos aspectos, mas essencialmente como arma, como apoio da caminhada do pastor e do peregrino e como eixo do mundo (sentido assumido na versão guarani da criação do mundo).

No discurso mítico guarani, Ñamandufaz com que a terra se vá desdobrando”; para sustentá-la, cinco palmeiras surgem da vontade de Ñamandu; uma no centro da terra e outras quatro nos pontos cardeais: Karai = leste; Tupã = oeste; ventos bons = norte; tempo originário = sul.

Dois aspectos, neste primeiro trecho do mito, apresentam-se significativamente: a cor azul e o número cinco (É no número dos dedos de uma mão / que ele faz surgir as palmeiras azuis (...)). A mais profunda e a mais imaterial das cores, o azul tem nessas qualidades o conjunto de suas aplicações simbólicas. O azul sugere uma idéia de eternidade tranqüila; seu movimento atrai o homem para o infinito e lhe desperta o desejo de pureza e a sua profundidade tem uma gravidade solene, supraterrena, que evoca a idéia de morte (nas paredes das necrópoles egípcias, as cenas dos julgamentos das almas eram geralmente revestidas de um reboco azul-claro). Na cultura guarani, todas as coisas e todos os seres não-mortais que povoam o território celeste do divino são chamados de azuis (ovy).

Quanto ao número cinco, além da já citada relação com os pontos cardeais, é símbolo de união, centro da harmonia e do equilíbrio. É, ainda, o símbolo do homem (braços abertos, o homem parece disposto em cinco partes em forma de cruz); do universo (dois eixos, um vertical e outro horizontal, passando por um mesmo centro); da ordem e da perfeição; e da vontade divina (que não deseja senão a ordem e a perfeição).

Na cultura indígena, a sacralização do número cinco estaria ligada ao processo de germinação do milho, cuja primeira folha irrompe a terra cinco dias depois da semeadura. Segundo alguns grupos, d(D)eus iça o morto pela sua alma no quinto dia, assim também o milho termina seu período de gestação e sai da terra içado por d(D)eus, depois de cinco dias.

Interessante notar que, distintamente da versão bíblica da criação do mundo, o mito guarani não faz referência à criação do dia e da noite ou da separação entre luz e trevas; ausência de referência possivelmente justificada pelo mito do Sol e da Lua, ou dos Gêmeos, tão importante para os índios guaranis que se sobrepõe ao da criação (o primeiro é mais conhecido que o segundo; quando se pede a um índio guarani que narre o mito da criação, o que se ouve muitas vezes é uma versão do mito do Sol e da Lua).

Há na segunda estrofe do discurso, ainda uma vez, uma indicação numérica: sete, o número do firmamento; num primeiro momento, diz-se serem sete as colunas sobre as quais repousam o firmamento e que essas colunas são bastões-insígnias (cruzes), para, em seguida, afirmar-se que Ñamandu havia fixado o firmamento, inicialmente, sobre três colunas e que ele ainda se movia, por isso foram usados os bastões-insígnias nessa sustentação do firmamento, pressupondo uma distinção semântica entre colunas / bastões-insígnias, elementos da sustentação, distinção que não existe na primeira parte do texto.

Na terceira estrofe, há uma referência às águas (Yamai, o girino, é o senhor das águas, aquele que faz as águas); mas, como fica evidente, não se trata de uma criação de Ñamandu, mas algo pré-existente, assim como o verde, floresta e savanas (Quando nosso pai fez a terra, por todos os lados estendia-se a floresta...). Não há menção à criação da luz ou dos luzeiros, há, sim, indicações do surgimento do dia e da noite, da lua e do sol: senhora das trevas: a coruja. E, quanto ao nosso pai, o sol, ele é o senhor da aurora.

A partir deste momento do processo criativo de Ñamandu, registra-se a criação dos seres vivos: seres que povoaram as águas, o céu, a terra. A serpente é o primeiro ser vivo a ser nomeado, o que pode revelar um eco do mito cristão da serpente, não se esquecendo, todavia, de que a serpente tem na mitologia indígena o lugar análogo do perigo, da morte e da sujeira. Foram nomeadas, em seguida, a cigarra, o girino, o gafanhoto (responsável pelo surgimento das savanas, pelo desabrochar dos espaços de relva), o inambu, o tatu e a coruja: todos insetos ou animais de pequeno porte, inofensivos e presentes em lendas e fábulas que povoam a cultura guarani.

Para Cadogan (1959), ao criar o mundo, o intento de Ñamandu era o de que seus filhos e os brancos vivessem juntos e em harmonia; os brancos recusaram-se e exigiram a divisão da terra. Em função disso, Ñamandu destina a mata aos índios e o campo aos brancos, ordenando que cada um vivesse nos seus limites. Essa determinação foi logo transgredida pelos brancos, invadindo as selvas e, assim como o gafanhoto – o´u pa ka’aguy – comeram toda a mata, ou seja, removeram-na para dar lugar aos campos e pastos para o gado.

O discurso guarani não faz referência à criação ou ao surgimento do homem, depois de nomeados os seres vivos e a sua participação no contexto da criação e uma vez retratada a figura da primeira terra, Ñamandu define as funções dos deuses, após ele gerados, mais próximos do homem guarani do que ele, que farão assegurar a manutenção das representações terrestres do divino (grupamento IV): Karai = chama, fogo solar, calor; segundo Clastres (1990), o renascimento do divino como natureza. Seu retorno cíclico garante aos guarani a imortalidade dos deuses. Jakaira = guardião da bruma, que reúne em si a substância divina do humano, as Belas Palavras; por meio da bruma originária, os pajés poderão ouvir os deuses. Tupã = reina sobre o mundo aquático, suas manifestações, a água corrente, os mares, os rios, os riachos; oferece o frescor à terra, sem o qual Karai consumiria os homens.

No grupamento V de versos do discurso mítico guarani, o deus criador Ñamandu, continua delegando tarefas aos deuses Karai, Jakaira e Tupã. À Jakaira compete penetrar no espírito humano (pelo alto da cabeça), permitindo aos homens viver em conformidade com a natureza; à Karai, seguir o mesmo caminho de Jakaira, habitando filhos e filhas favorecidos; e à Tupã compete barrar a desordem, ou seja, promover a moderação, a paciência e a calma no desejo, evitando que seja atingida a solidariedade tribal (mbarayu).

Quatro palavras destacam-se neste trecho do discurso mítico: chama, bruma e água, relacionadas às funções dos deuses, e palavra. Em todas as tradições, a chama é um símbolo de purificação, de iluminação e de amor espirituais. É a imagem do espírito e da transcendência. Bruma é símbolo de uma mescla de água e de fogo, que precede toda consistência, como o caos das origens, antes da criação dos seis dias e da fixação das espécies. São várias as concepções simbólicas para água, a que parece estar relacionada aos símbolos anteriores (chama e bruma) é a de vida espiritual e do Espírito.

Sejam quais forem as crenças e os dogmas, a palavra simboliza de uma maneira geral a manifestação da inteligência na linguagem, na natureza dos seres e na criação contínua do universo; ela é a verdade e a luz do ser. Essa interpretação geral e simbólica em nada exclui uma fé precisa na realidade do Verbo divino e do Verbo encarnado.

Os domínios da natureza, representados pelo sol-chuva-água-trovão-raio, fogo e neblina vivificante, compreendem entidades divinas de primeira ordem que medeiam as forças espirituais supremas no convívio direto com os homens. É de forma cíclica e convincente que os guaranis asseveram o controle do bem-estar e de propriedades divinas, ligados à força e emanação espirituais através desses deuses. Não se destacam como entidades no sentido ético-moral, como ocorre com o ser supremo, mas traduzem meios de comunicação espiritual.

Ñamandu é representativo do sol como alma. Um milagre divino caracterizado como guero-yvara, que significa a incorporação da própria divindade, constituindo, portanto, parte dessa divindade. Ñamandu surge no curso de evolução da Ñanderu, como reflexo da sabedoria divina que se inflama pelos órgãos dos sentidos (olhos, mãos) na criação. Ñanderu vivia nas trevas antes de criar Ñamandu, iluminado pelo reflexo do seu próprio coração.

Para Clastres, Ñamandu é o verdadeiro pai, o primeiro – dado de grande importância como elemento de referência da direção suprema – a primeira personificação do sol, da qual se teria separado posteriormente a figura do filho como herói civilizador. A Terra Nova foi criada por Ñamandu com uma intenção certa de malevolência: instalar os humanos no espaço das imperfeições.

O domínio de Tupã sobre as águas, rios, chuvas, raios impõe-se de forma central e comanda o equilíbrio de forças antagônicas que têm capacidade de colocar ordem e autoridade. Seu domínio ocorre na área oriental, a oeste, onde fica o Tupã amba (= região celestial de Tupã); está ligado ao mar, às suas ramificações e totalidade, sendo Tupã Xy Ete (verdadeira mãe Tupã) a deusa das águas.

Segundo os guaranis, Tupã foi criado por último, tem baixa estatura, cabelos crespos, usa o tukumbo (chicote) e é frequentemente mencionado quando há raios, trovões. Durante as rezas, a área posterior do opy é considerada de influência de Tupã, o que implica vulnerabilidade para os que rezam nesse local. Tupã, por controlar o raio e o trovão e, também, a morte e a destruição, acarreta mais temor do que veneração. Foi por intermédio de Tupã que os missionários ingressaram no universo religioso primitivo; traduzindo-o como coisa sagrada, misteriosa e excelente, eles definiram Tupã como o grande deus.

A neblina, bruma, denominada tataxina, é o símbolo de comunicação de Jakaira. Ao invadir o ambiente na época da primavera, a neblina marca o início do ano novo – Ara Pyau. O sentido da bruma ocupa lugar de destaque na terra imperfeita, como meio de purificação, cura de doenças e de invasões maléficas, sendo invocada como tataxina reko axy, enquanto a designação tataxina kanga traduz a denominação religiosa da bruma e significa literalmente esqueleto da bruma.

O fogo (tata) representa miticamente a força no sentido de carlor energizador das práticas nhembo´e, nhembojerovia. O fogo é a imagem de movimento que adquire ênfase na dança ritual. Ele é personificado como Tataendy Ryapyja, denominação religiosa que sifnifica o dono do trono das chamas. O amba de Jakaira fica à direita (nhandekerovai) e o de Karai à esquerda (nhandekere).

Constata-se que, o pai verdadeiro primeiro, Ñamandu criou as divindades para que elas promovessem sabedoria e soubessem infundir valores através dele mesmo. Assim como Ñamandu criou a si mesmo em meio às trevas primitivas, os deuses herdaram a sua propriedade de criar e infundir valores sagrados, no sentido divino.

Assim o campo espiritual guarani impõe-se pela interioridade divina que se projeta nos homens. A revelação do poder divino chega aos mortais e possibilita o conhecimento místico como meta de ascensão do homem. Os adeptos traduzem a sua ação como uma forma de encontrarem-se com o divino em si mesmos e isto já quer dizer aperfeiçoar-se, purificar-se. Essa dimensão da prática divina não se limita aos extremos das transformações e aperfeiçoamentos, quando a magia traduz os encantos no auge das convicções.

As divindades descem aos homens na sua vida espiritual; elas traduzem idealizações que modelam e recriam o ser na direção transcendental de seu aperfeiçoamento. As hierarquias divinas são fontes de emanação do poder místico que se dirige aos homens. A convicção de que as figuras divinas não encarnam nenhum modelo de pessoa justa e boa, mas destacam-se pela sabedoria, ressalta o poder divino no fluxo espiritual da palavra-alma e da palavra na alma.

 

Reflexões finais

No desenvolvimento deste trabalho, foi determinante considerar que a cada subgrupo guarani correspondem incorporações diferenciadas de elementos coletados em acervo mítico-religioso com origens comuns e que constituem ideologias e práticas distintas. Isso se manifesta nos diferentes dialetos, rituais e concepções religiosas, organização política, cultura material e em outras esferas do social. Há como que um feixe triplo de elementos que forma a identidade guarani.

Essas diferenças acentuam-se face às múltiplas situações regionais ou locais de contato. A cada uma correspondem impulsos e motivações variadas e repostas compatíveis, o que evidencia processos peculiares a cada subgrupo, a cada região e, no limite, a cada tekoha. Assim, apesar de se verificarem padrões regionais de relacionamento e uma homogeneização das especificidades grupais em cada região por parte do não-índio, cada tekoha deve ser invariavelmente considerado em sua individualidade, o que dificulta, em boa medida, a descrição ou análise dos guaranis como totalidade.

Foi necessário compreender, desde logo, para realizar este trabalho analítico que, enquanto o conceito de essência se refere a algo estático, perene, o de identidade é dinâmico, por tratar de algo que se quer encontrar, de uma construção social que, como a própria sociedade, é eternamente mutante. A identidade não se edifica de uma vez por todas, em alguns topos uranos ideais, seu resgate ou sua construção é um acontecimento no tempo, está ocorrendo na história.

A questão da essência indígena é discriminatória e dominadora. Foi cultivada nas obras românticas do passado ou ainda serve para o discurso daqueles que ganham com isso. Ser índio não é um estado de espírito, não é uma coisa dada, ao contrário, são construções, são realizações externas e internas ao grupo, mas, sempre e inequivocamente, realizadas como um trabalho simbólico dele, em sua cultura e com a sua cultura.

Quando se recupera o discurso e as práticas cotidianas da população indígena, observa-se que, em cada contexto ou estrutura organizacional, tem-se operado uma combinação de fatores, de situações e de estratégias políticas que se interpenetram. Tudo faz sentido ou assume sentido na medida em que produz significados diferentes para contextos diferentes. Elementos ambíguos e contraditórios constituem o discurso social e este não está dissociado das condições de vida de seus portadores do interior de uma sociedade dinâmica, independentemente das relações de subordinação e dominação. Sabe-se que, na construção da identidade, existem vários níveis operando ao mesmo tempo: social, cultural e religioso.

Apesar disso, não há como falar do discurso do índio como cidadão, já que a Constituição Nacional, para lhe outorgar a cidadania, destitui-lhe da identidade de índio. Uma identidade que lhe confere o lugar de tutelado, condição que lhe garante terras – visando a sua sobrevivência e a manutenção oficial de sua identidade indígena -, e que lhe garante a brasilidade, mas não a cidadania brasileira.

Analisar o discurso indígena pressupõe, dentre outras coisas, a descrição do lugar da sociedade indígena no território brasileiro – uma sociedade sob tutela que impõe parâmetros à existência do próprio índio – a partir dos pontos de vistas instaurados na enunciação, pressupõe, também, a recuperação no fio da discursividade da história da conversão, do contato, do confronto e das diversas e diferentes formas de dominação. Deve-se conceber o espaço da discursividade como o lugar em que se constrói o discurso do índio sobre o índio, do índio sobre o não-índio, do não-índio sobre o índio, o acontecimento discursivo.

Nesse processo analítico, promover a interação entre os lugares enunciativos e as formações discursivas permite apreender, também, o grau de conscientização do índio sobre o discurso que o não-índio faz a seu respeito, tomados vários aspectos: religião, cultura, costumes, índole. Esses lugares devem ser considerados, ainda, no jogo de projeções internas ao grupo: discurso do índio para o índio, do índio para ou sobre o não-índio. Enfim, permite perceber de que forma os processos de disciplinarização (na língua, na religião etc.) expressam um processo a um só tempo de assimilação e de resistência, por passarem a ser formadores – e fundadores – do próprio discurso indígena, num fluxo interminável de repetição e de individualização: o discurso do não-índio sobre o índio passa a constituir o discurso do índio sobre o próprio índio, revelando não a dominação, mas a resistência, explicitada, no discurso mítico da criação, pela condição humana assumida pelo índio guarani a partir da parcela divina que constitui a sua alma e que o faz escolhido em detrimento ao não-índio, conferindo-lhe uma parcialidade divina e permitindo-lhe compartilhar a linguagem, o amor mútuo e as rezas com as divindades. Segundo a análise processada, os guaranis são os únicos eleitos, capazes de alcançar a perfeição e ascender ao universo das divindades, desde que façam uma boa escolha de vida.

Pôde-se constatar que, na cosmologia guarani, impregnada de teologia e de antropologia, nem as divindades, nem os seres humanos são independentes do mundo indígena – lugar em que se consubstanciam o divino e o humano, revelando a imanência-transparência do divino no humano e no mundo. Compara-se a terra guarani a um corpo murmurante e o mundo origina-se por intermédio da palavra: antes da criação, a palavra já murmurava nas entranhas da matéria que comporia os seres. A palavra cria e torna-se criatura; d(D)eus deposita seu ser criador em todas as criaturas. Outra metáfora que expõe a gênese guarani como uma consubstanciação do divino no mundo afirma que Ñamandu criou o mundo a partir de uma pequena porção de sua sabedoria criadora, em uma linguagem que mantém indiscutível analogia com a tradição sapiencial do Antigo Testamento e que recupera tradições bíblicas e teológicas esquecidas pelo cristianismo.

A análise do discurso mítico da criação guarani aponta uma forma de desvelamento dos elementos constitutivos da brasilidade do índio guarani, já que ficou clara a sua não cidadania, a partir da argumentação, dos aspectos coesivos caracterizadores desse mesmo discurso – aspectos pertinentes à materialidade lingüística – e de elementos inerentes aos níveis semântico, pragmático e da manifestação (AD). O mito guarani apresenta um mundo transparente e recuperável mediante a porção criadora de seu deus, um manancial que brota da terra, que se edifica com palmeiras como sustentáculos e vincula-se com a restauração do dizer. O efeito argumentativo e os fatores coesivos do discurso foram revelados pelo emprego, primeiro, de figuras que resgataram não só o próprio ato criacional, mas toda a cosmologia e a identidade étnico-cultural guarani – deuses, sociedade tribal e homem guarani são apresentados em sua essência existencial – e, depois, de um léxico, dos sentidos, de valores que recuperam o processo criador, a relação homem-índio brasileiro com a sua própria identidade e com a identidade brasileira.

Finalmente, da árvore, que, para os guaranis, é para a palavra o que o leito de um rio é para as águas, dos animais, dos deuses e das tarefas a eles delegadas por Ñamandu, dos escolhidos e adornados advém o fundamento de cada guarani, e a unidade vital, anatômica e fisiológica que o constitui é a palavra.

 

Referências Bibliográficas

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SCHADEN, E. Aculturação indígena: ensaio sobre fatores e tendências de mudança cultural de tipos indígenas em contato com o mundo dos brancos. São Paulo: Pioneira, 1969.


 

[1] Os adjetivos pátrios e similares relativos a nações indígenas, criminosamente, vêm sendo grafados com maiúsculas iniciais, como se estivéssemos submissos à ortografia da língua inglesa dos Estados Unidos, assim como não flexionam, como os adjetivos da língua inglesa. Isto é um crime contra o nosso idioma, largamente praticado por etnólogos, etnógrafos, antropólogos, historiadores e até lingüistas. Não admitimos esta subserviência e alteramos a ortografia dos adjetivos pátrios indígenas e similares porque ainda não adotamos oficialmente a ortografia dos poderosos chefões dos Estados Unidos.

Somos extremamente gratos aos lingüistas, antropólogos, missionários e demais norte-americanos que se dedicam ao estudo de nossa cultura indígena, mas não queremos que as nossas nações indígenas comecem, antes mesmo de deixarem de ser brasileiras, nomeadas e referidas sob a “senha” dos Estados Unidos. [Nota do Editor].