O valor da relatividade entre Bem e Mal
em Joaquim Manuel de Macedo

Renato Nunes Bittencourt (UFRJ)

 

RESUMO

No presente texto faremos uma interpretação do romance A Luneta Mágica, obra de Joaquim Manuel de Macedo publicada em 1869, enfatizando o tema da relatividade dos conceitos morais de Bem e de Mal, problema esse que perpassa grande parte da tradição filosófica do mundo ocidental.

 

Introdução

Existe alguma coisa que podemos considerar de maneira precisa como plenamente boa ou como plenamente má? Esta indagação expressa o cerne da proposta desse ensaio, ao longo do qual veremos algumas associações entre a narrativa de Joaquim Manuel de Macedo ao longo de A Luneta Mágica, e algumas questões filosóficas enunciadas por célebres pensadores, tais como Espinosa, Kant e Nietzsche. Tal empreendimento, na minha perspectiva, somente favorece a valorização deste romance de Macedo, certamente a sua obra de maior profundidade filosófica, curiosamente pouco abordada pelo estudo de Literatura Brasileira no âmbito das nossas redes do Ensino Médio. Todavia, deixaremos algumas considerações sobre essa questão para a parte final desse texto. Iniciemos neste momento nossa investigação filosófica sobre esta obra admirável que é A Luneta Mágica.

 

A miopia física e a miopia moral

Simplício é o protagonista do romance de Macedo, que o descreve como um sujeito portador de uma dupla miopia, a física e a moral (Cf. Macedo, 1995: 11). A miopia física, conforme as características dessa moléstia, impede a Simplício enxergar com nitidez qualquer coisa que se encontre ao seu redor, pois que o seu grau de miopia é muito elevado. Tanto pior, não há engenho humano que permita a confecção de uma lente que possibilite ao pobre personagem ver o mundo circundante de uma maneira mais razoável. A miopia moral, por sua vez, mantém uma analogia com os sintomas da miopia física que afetam a percepção visual de Simplício, pois que essa dita miopia impede nosso personagem de tomar decisões seguras e críticas sobre as coisas, decisões que geralmente são sancionadas por seus familiares, que se posicionam como tutores intelectuais de sua mente atribulada. Mais ainda, Simplício, incapaz de pensar de maneira consistente sobre a realidade cotidiana, acaba por se deixar levar por qualquer nível de argumentação que se lhe apresente, chegando ao ponto de concordar com uma questão que discorda em gênero, número e grau de outra anterior, a qual, no entanto, Simplício havia demonstrado a sua adesão (Cf. Macedo, 1995: 19).

Esse problema sucintamente apresentado permite que se afirme uma coisa terrível: Simplício não sabe pensar por si próprio, independentemente dos juízos apresentados por terceiros. Em linhas gerais, o seu posicionamento diante da realidade é marcado pela heteronomia, pois os critérios axiológicos que determinam a constituição de sua existência são elaborados por outros indivíduos, esses sim plenamente cônscios daquilo que afirmam ou que negam.

Nessas condições, poderíamos desenvolver a seguinte pergunta: qual a vantagem que eu poderia obter em se esforçar para pensar, se existe outra pessoa que pode se dedicar a esse propósito para mim? “Não pense, deixe que nós pensemos por você”, tal poderia ser o mote aplicado pelo sujeito que não desenvolveu o apreço pela arte de pensar conscientemente e de maneira autônoma acerca das conjunturas inerentes ao seu próprio cotidiano.

 Podemos considerar que Simplício age de tal maneira ao longo de sua vida, pois ele próprio desiste de empreender investigações mais profundas sobre o sentido da realidade, pois que se considera completamente inepto para tal prática, transferindo essa atividade para outrem. Como contribuição para essa explanação, é pertinente aproveitarmos a reflexão kantiana sobre a autonomia do pensamento humano diante do estado de sua emancipação intelectual diante da ordem estabelecida, e a alienação da capacidade de pensar, quando um indivíduo qualquer abdica desse exercício pessoal ao transferir essa função para uma autoridade externa, o que caracteriza o estado de menoridade do ser humano (Cf. Kant, 2005: 63-64).

Essa dependência diante de uma inteligência externa torna Simplício como que um ser humano que se encontra nesse citado estado de menoridade descrito por Kant, ainda que fisicamente a sua idade seja a de um adulto (Cf. Macedo, 1995: 26). Essa citada menoridade é do âmbito moral, pois que o personagem, um “puro tolo”, não consegue se posicionar ativamente diante das circunstâncias que determinam o rumo de sua existência e da sua realidade circundante, de maneira que outrem acaba por exercer a tutela sobre a sua vida pessoal, decidindo por ele aquilo que ele próprio não é capaz de decidir.

Como então é possível alguém viver assim e ainda conseguir ser feliz? Ao menos, Simplício não é de todo uma pessoa feliz, pois que esse estado de “miopia moral” o angustia profundamente. Nessas circunstâncias, apesar de viver toda a sua vida diante do suporte oferecido pelas inteligências externas que conduzem o seu existir, Simplício ao menos aspira a um momento em que ele poderia se emancipar do seu apequenamento moral diante do mundo circundante. Uma mentalidade esclarecida é aquela que não depende da imposição da autoridade do conhecimento alheio para viver a sua existência cotidiana, pois é capaz de pensar por si própria. Seria esse o verdadeiro estado de esclarecimento do ser humano, emancipado da prisão do dogmatismo e do medo de pensar de modo independentemente pessoal (Cf. Kant, 2005: 63).

Uma oportunidade concedida pelo destino a Simplício, a fim de que ele possa gozar de um novo posicionamento diante da existência se desencadeia quando lhe apresentam, primeiramente, algumas lentes potentes que talvez lhe permitiriam enxergar melhor o mundo ao redor. Porém, nem a mais poderosa lente pode resolver a moléstia ocular de Simplício. Um momento de desespero, pois todas as esperanças de uma melhor visualização da realidade poderiam se extinguir para Simplício. Eis então quando surge a figura extravagante do mago armênio, um pitoresco auxiliar de trabalho do polidor de lentes, conhecedor das ciências ocultas e mestre na manipulação das forças da natureza para a consecução de objetivos benéficos para os homens (Macedo, 1995: 23).

Simplício adquire do mago armênio não apenas um monóculo que permite a contemplação nítida da realidade, mas também a capacidade de ver a maldade latente em todas as coisas, se porventura o usuário detivesse o seu enfoque por mais de três minutos na coisa observada. Já dizia sabiamente Simplício que é melhor ser cego do que ver demais (Cf. Macedo, 1995: 24). Vale a pena vermos o lado negativo das coisas, ou é melhor se manter os véus da ilusão que encobrem a essência cruel da realidade? Resposta difícil de ser concedida, tendo-se em vista o gozo de uma vida que, mesmo desprovida de uma compreensão emancipadora da verdade, ao menos possibilita a manutenção do indivíduo nesse estado de inocência. Todavia, não é isso que Simplício aspira, pois, movido pela curiosidade e pelo desejo de conhecer a fundo a essência moral de todas as coisas, nosso personagem não levará em consideração as advertências do armênio.

 

A visão do Mal e a visão do Bem.
Qual poderia ser considerada a melhor?

O uso do monóculo mágico ofertado pelo mago armênio faz Simplício viver experiências em que a concessão dos valores morais das coisas varia de acordo com o modo que ele mesmo percebe os acontecimentos. A interpretação da realidade seria uma espécie de caleidoscópio, que proporcionaria ao indivíduo, mediante condições subjetivas e particulares, a formulação de uma compreensão extremamente singular do mundo circundante. Nessas condições, não existiria um “valor em si”, pois tudo aquilo que chamamos de “bom” ou “mau” expressa os nossos próprios critérios avaliativos mediante a maneira pela qual nos relacionamos com uma dada coisa, independentemente de sua própria particularidade específica.

Um mesmo acontecimento pode ser interpretado de diversas maneiras pela subjetividade humana, e em todas as circunstâncias essas interpretações podem e devem ser consideradas válidas. O enfoque humano sobre a realidade é sempre parcial, pois tende a inserir na sua compreensão afetiva e cognitiva elementos pessoais no processo de avaliação das coisas, conforme destacara Espinosa acerca da multiplicidade de valores que podem ser concedidos para uma mesma coisa mediante a circunstância na qual ela é avaliada. Os termos “bom” e mau” nada indicam de positivo se porventura considerados em si mesmos. A música, tão agradável para os melancólicos, é má para aquele que se lamente e indiferente para os surdos (Cf. Espinosa, 1992: 357-358). Esse é um dos motivos que possibilita afirmarmos a característica relativa dos valores concedidos para as coisas. Ao mudarmos a perspectiva pela qual baseávamos as nossas percepções do mundo, mudamos também as nossas interpretações e avaliações acerca do mesmo, pois que podemos modificar todo tipo de compreensão da realidade cotidiana, uma vez que o nosso entendimento não é uma faculdade rígida, que conserva eternamente os mesmos valores adquiridos no decorre da vida.

Como podemos explicar a existência desse relativismo no processo de concessão de valores para as coisas que percebemos usualmente? Uma vez que a vida humana é marcada pelo jogo de constantes transformações e interações, as nossas convicções tendem a se modificar continuamente, de modo que podemos então ver a realidade de outra forma, distinta da qual até então havíamos mantido. Assim como não existe um “valor em si”, também não existe um “fato em si”, encerrado sobre suas próprias particularidades, ou seja, independente da interpretação humana. Somente podemos falar de um “fato” quando nós já o interpretamos, através do lastro de valores que portamos conosco, valores esses que exercerão forte influência no ato de definição do mundo que nos envolve.

Quando Simplício inicia as suas experiências existenciais mediatizadas pela lente do monóculo, não são as coisas em si que ele percebe pelo olhar, mas o mundo percebido mediante o seu olhar. Ressaltemos que é justamente esse fator que leva Simplício a cometer uma série de tolices, pois ele acredita piamente que as coisas que ele até então tinha por virtuosas são na verdade antros de iniquidade (Cf. Macedo, 1995: 38). e que o que ele entendia como perversas são na verdade halos de candura e virtude (Cf. Macedo, 1995: 116-117). Simplício se torna um joguete das pessoas mal-intencionadas, que se divertem e prosperam às custas de sua deficiência de interpretar adequadamente as condições viciosas da sociedade.

Essa situação ainda se torna mais complexa quando o míope Simplício compreende primeiramente uma coisa como má e em seguida como boa, mediante o uso das respectivas lentes da visão do Mal e da visão do Bem. Como basear a sua compreensão do mundo nesses valores flutuantes, se uma coisa primeiramente aparece para a nossa percepção como “má” e em seguida como “boa”? Qual pólo devemos preferir? Simplício adotava ao longo de sua vida ingênua uma compreensão do mundo no qual este possuiria um critério axiológico independente da experiência, no qual o Bem seria proclamado como tal em decorrência de sua própria natureza, mesmo caso a ser aplicado para o Mal. Aliás, há que se ressaltar que algumas vertentes religiosas ou filosóficas apregoam a existência de um Bem Soberano que rege a ordem do universo e de um Mal Radical que luta contra o progresso desse estado divino na Terra.

Todavia, conforme a investigação genealógica de Nietzsche acerca do desenvolvimento da consciência moral do ser humano, a formulação dos termos de Bem e de Mal decorre de um processo histórico influenciado nitidamente pela percepção dos indivíduos das sociedades precedentes em relação ao mundo em que viviam (Cf. Nietzsche, 2000: 20-23). Para a concepção greco-romana, o Bem é a força física, a saúde do corpo, a coragem. Para a civilização judaico-cristã, o Bem é a virtude abstrata da alma, a retidão moral, a perfeição espiritual. O valor do conceito de “Bem”, portanto, varia segundo a determinação intrínseca que movimenta a ordem cultural de uma sociedade (Cf. Nietzsche, 2000: 31-34). Vemos que duas civilizações distintas entre si formularam definições também distintas entre si acerca da classificação do que é o Bem.

Essa separação precisa entre aquilo que é denominado como o “Bem” e aquilo que é denominado como o “Mal” progressivamente se dissolve na mente de Simplício, pois este percebe que nada é aquilo que parece efetivamente ser, de modo que alguma coisa que era vista sob um determinado enfoque, ao receber um parecer individual, pode vir a receber um parecer diferente, mediante a mudança de perspectiva. Daí a importância da lente que proporciona o uso do bom senso na sua avaliação da realidade, pois que a partir de então, aquilo que é “bom” não seria tomado como “mau”, e vice-versa. Mais ainda, haveria a possibilidade de se compreender que nada no mundo é efetivamente bom ou mau plenamente, pois toda a nossa existência é marcada pela complexidade de relações, onde é um tanto difícil delimitarmos exatamente aquilo que pode ser caracterizado como bom ou ruim.


 

Considerações Finais

A obra de Joaquim Manuel de Macedo analisada neste ensaio serve de valoroso estímulo para a nossa reflexão sobre a qualidade das ações humanas, norteadas pelo antagonismo entre os princípios do Bem e do Mal. Na verdade, esse dito antagonismo somente ocorre mediante uma interpretação parcial da realidade, pois que, em um mundo marcado pela relatividade dos seus valores, o que realmente pode ser considerado de maneira categórica e definitiva como do âmbito do “Bem” ou do “Mal”? Essa indagação, no entanto, necessariamente não nos leva a um impasse irresolúvel, pois que, mediante o uso do bom senso, podemos constituir um modelo de vida crítico, no qual avaliamos de modo consciente aquilo que efetivamente nos proporciona algum benefício duradouro, ou, ao contrário, aquilo que nos prejudica. A visão plena do Mal envenena o ânimo do indivíduo, e a visão plena do Bem torna o indivíduo ingênuo diante dos aproveitadores cotidianos.

Quisera então que todos nós pudéssemos utilizar essa lente mágica que proporciona ao indivíduo a visão crítica do mundo. As arbitrariedades das relações políticas, o abuso do poder e a hipocrisia social diminuiriam de forma considerável em nossa sociedade. Quisera então que uma maior quantidade de leitores obtivesse acesso ao romance de Macedo, sobretudo os jovens estudantes brasileiros, que tanto necessitam desenvolver a consciência crítica acerca dos acontecimentos.

 

Referências bibliográficas

ESPINOSA, Baruch.  Ética. Trad. de Joaquim de Carvalho, Joaquim de Ferreira Gomes e António Simões. Lisboa: Relógio d’água, 1992.

KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: que é “esclarecimento”? In Textos Seletos. Trad. de. Raimundo Vier e Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 63-71.

MACEDO, Joaquim Manuel de. A Luneta Mágica. São Paulo: Editora Ática, 1995.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral – uma polêmica. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.