SOBRE O LATIM E OUTROS LATINS:
ALGUMAS REFLEXÕES SOCIOLINGÜÍSTICAS

Leila Teresinha Maraschin (UFSM)

 

RESUMO

Neste trabalho, objetiva-se focalizar a contribuição de concepções sociolingüísticas para o estudo da história do latim, o qual é abordado, deste modo, como um conjunto de variedades lingüísticas relacionadas às classes sociais de seus usuários, desde a sua fase primitiva até a dialetação que originou as línguas românicas. Propõe-se, também, refletir sobre o papel da escrita na Roma antiga, que ajudou tanto a enriquecer a língua culta quanto retirá-la, cada vez mais, da vida diária, afastando-a em definitivo da modalidade popular falada. A consideração de fatores históricos, ideológicos, sociais e políticos, entre outros, contribui para uma análise mais completa da evolução do latim vulgar e sua conseqüente transformação em novas línguas.

 

INTRODUÇÃO

Não é fato recente o reconhecimento da relação entre língua e sociedade por parte de estudiosos tanto da lingüística quanto da sociologia. No final do século XIX, os dialetólogos começaram a registrar as falas populares através de inquéritos, fazendo observações sobretudo de aspectos regionalistas e, em menor escala, de variações sociais e individuais (Ilari, 1992: 25-32). Contudo, pesquisas de maior interesse e contribuição desenvolveram-se a partir de 1950 e 1960, nos Estados Unidos, com o destaque de William Labov, que, utilizando um método sofisticado de entrevista, associou variações fonológicas a dados extralingüísticos dos falantes, como nível de escolaridade, profissão, renda e status social. (Labov, 1976: 45-126)

Trabalhos como estes colocaram os estudos sociolingüísticos em uma posição relevante, ao lado das demais ciências que têm a linguagem como objeto de estudo. No entanto, quando se trata de línguas clássicas, como o latim, não mais usado na fala cotidiana há vários séculos, inicialmente a questão parece fugir ao campo da abordagem sociolingüística. Por outro lado, deve-se levar em conta que, paralelo ao latim clássico, havia também o latim vulgar, que constituía a modalidade falada, coloquial, da língua de Roma, a qual só se conhece através de fragmentos escritos. Haveria, então, uma possibilidade de analisar a fala por meio da escrita. E, no caso, não só a fala das elites, mas também a das camadas populares.

 

LÍNGUA ESCRITA E LÍNGUA FALADA

Sabe-se que a escrita surgiu na história da humanidade muito tempo depois da comunicação oral. Seu papel principal, entre outros, é o de fixar, conservar, transmitir e normatizar a língua. Para os romanos antigos, a escrita era concebida quase como uma obra divina, possuindo um papel civilizador e ordenador na evolução da humanidade, como se linguagem articulada e escrita fossem uma coisa única, conforme este fragmento de Cícero:

O mesmo [espírito], tendo encontrado os homens que balbuciavam apenas e confusamente sons informes, dividiu esses sons e os articulou, imprimiu às coisas as palavras como sinais e uniu os homens, até aí dispersos, pelo laço tão suave das trocas de palavras. Um espírito semelhante inventou um pequeno número de sinais que permitiam marcar e representar os sons da voz que pareciam inumeráveis, sinais graças aos quais seria possível entreter-se com os ausentes, fazer conhecer suas vontades e guardar a lembrança das coisas passadas. (Desbordes, 1995: 69)

Esse lugar eminente ocupado pela escrita na Roma clássica fez com que a língua literária fosse o foco de atenção dos estudiosos da época, ficando os falares populares esquecidos e, não raro, menosprezados.

Quando um grupo social quer eleger seu dialeto como padrão, a escrita pode ser um fator importante para que isso se estabeleça, uma vez que a representação gráfica oferece maiores possibilidades de servir de modelo e de se tornar estável. Os primeiros dicionários e gramáticas, que depois constituíram exemplos a serem seguidos, foram baseados em documentos escritos. Assim, enquanto a língua falada continua sofrendo modificações, a língua escrita, por manter a tradição de preservar as formas tidas como corretas, impede que as alterações da pronúncia se traduzam graficamente. É por essa razão que, muitas vezes, a escrita e a fala seguem caminhos diferentes.

Em se tratando do latim, muitos problemas surgem em função da dicotomia fala/escrita. Quanto ao latim de Cícero, se for chamado clássico, parece que está adequado, pois era a língua da escola, da tradição, dos grupos conservadores. Já se for chamado literário como equivalente à língua escrita, em oposição ao latim vulgar, começam a surgir discussões, pois as fragmentárias fontes que deste se conhecem são também escritas. O que se pode fazer, então, é analisar como é essa escrita, que arranjos a tornam mais, ou menos, artística, que características fazem com que ela seja vista como representativa da linguagem de um ou de outro grupo.

A língua, ao ser utilizada pela literatura, pode estar sendo condenada à ‘morte’, no sentido em que se descontextualiza da vida cotidiana, como aconteceu com o latim clássico. Mas ela também pode revelar hábitos lingüísticos e contribuir para a mudança destes. Segundo Preti (1994: 61), “em todas as épocas, a língua literária, de uma forma ou de outra, com maior ou menor intensidade, não perdeu sua ligação com a realidade falada.”

De fato, essa contribuição da literatura não deve ser desprezada. Hoje os pesquisadores dispõem de recursos modernos para registrar dados da fala de qualquer comunidade, como, por exemplo, gravadores e filmadoras. Já um lingüista que queira realizar um estudo em épocas passadas poderá contar apenas com o corpus oferecido pelos documentos escritos.

Na literatura brasileira, há um grande número de obras significativas para compor esse tipo de corpus, desde o período romântico até o modernismo (Preti, 1994: 75). O mesmo ocorre na Europa medieval e posterior, em que a riqueza de documentos escritos tem despertado o interesse de pesquisadores atuais para estudos sobre a conversação nessas épocas (Burke, 1995: 35).

Na Grécia antiga, há as comédias de Aristófanes, cujas personagens revelam, através da fala, a linguagem de Atenas em seus diversos matizes. Em Roma, são as obras de Plauto, a novela de Petrônio e, sobretudo, as inscrições pompeianas e fragmentos de textos que fornecem subsídios para a documentação do latim popular, confirmando a existência da variação lingüística.

 

LATIM CLÁSSICO E LATIM VULGAR

Definir o latim vulgar sempre foi um problema que causou inúmeras discussões entre os romanistas. No século XIX, quando os gramáticos comparatistas pensavam ter reconstruído o proto-indo-europeu, chegar ao latim pré-romance parecia tarefa fácil. Muitas foram as reconstituições feitas, por vezes cheias de exageros, o que levou muitos filólogos a protestarem e até mesmo a considerarem o latim vulgar uma invenção.

No início do século XX, estudiosos da Romanística retomaram a questão. Grandgent (1952) propôs um panorama geral da língua latina, considerando-a em quatro divisões: 1) latim culto ou literário (urbano); 2) latim dos bairros pobres; 3) latim vulgar (língua da classe média); 4) latim dos campos. Mais tarde, Maurer Jr. (1962: 53-4) distinguia três tipos de latim, os quais julgava serem mais importantes: 1) a língua literária, dos discursos de Cícero e das obras dos escritores clássicos; 2) a língua coloquial urbana, usada pela sociedade aristocrática de Roma e pelos gêneros literários epistolar, satírico e cômico; 3) latim vulgar, a língua da plebe romana. A língua literária e a coloquial urbana, segundo o autor, constituiriam as duas faces do latim culto (língua e fala), o latim vulgar seria a língua do povo em sentido lato. Ele explica as variações da língua associando-as à evolução das classes sociais romanas. Segundo ele, latim clássico era a forma escrita da língua da sociedade mais refinada de Roma, usual nas classes média e alta. Pouco a pouco, pelo trabalho artístico dos escritores, o latim clássico se tornou uma língua cada vez mais artificial e de uso limitado, a qual só os letrados tinham acesso, enquanto o latim vulgar, que era uma variante simplificada do mesmo latim, continuou a se transformar. E assim também as classes que o falavam variaram com o passar do tempo. Se, no início, o latim vulgar era a língua apenas dos camponeses e da plebe urbana, durante a época imperial, muitos elementos dessa língua penetraram nas camadas sociais mais cultas, sobretudo nas províncias, onde, ao lado das influências das línguas dos povos conquistados, evoluiu até tomar o lugar do clássico no uso. É claro que esse foi um processo lento, que só se completou depois que as línguas românicas ganharam a forma literária.

De acordo com Maurer Jr. (1962: 57), o que caracterizava a aristocracia romana não eram os laços de sangue e sim os costumes e a educação. Estrangeiros, escravos e elementos da antiga plebe entravam para o convívio da elite social e apegavam-se às tradições desta, de maneira artificial. A língua, então, era o seu meio de distinção, por isso a conservavam pura e rigidamente correta. Já a classe popular romana não possuía ligação nem familiar, nem por meio de um passado cultural e lingüístico; crescia constantemente pela agregação de camponeses, trabalhadores e pequenos mercadores que vinham das províncias conquistadas. A língua dessa classe era o latim falado de Roma, sem nenhuma preocupação artística e conservadora. Isso ficava para o latim clássico, que cada vez mais se tornava a língua da nobreza, à qual pertenciam os escritores mais prestigiados. Daí a importância da escrita como instrumento de distinção entre os romanos.

Spaggiari (1992: 81) define latim vulgar como tendências da língua falada que se afastam do latim clássico. Enquanto registro do cotidiano, é “expressão de oralidade, instrumento de comunicação, língua informal de intercâmbio dos habitantes de Roma e do Império”. Essas tendências compreenderiam também as variações situacionais, apresentando graus de uso ligados a estilos diversos. Assim, não só os estratos inferiores usariam o latim vulgar, mas também as classes sociais mais elevadas, em situações informais. O latim clássico seria uma modalidade de língua trabalhada artisticamente pelos escritores. Em outros termos, a língua popular filtrada e enriquecida de construções sofisticadas.

Para Silva Neto (1946), o latim vulgar é o único e verdadeiro latim, a língua viva e corrente, da qual a cultura romana criou a língua artística. Desse modo, seria o latim clássico um desvio do latim autêntico, o qual existiu desde os primórdios da civilização romana, anterior ao século VIII a.C. Esse latim primitivo, de estrutura simples e léxico reduzido, entretanto, era suficiente para a comunicação cotidiana da vida rural.

Cardoso (1989: 12) apresenta uma lista das palavras latinas mais antigas, as quais se referem à vida: “uiuere” (viver), “nasci” (nascer),”genus” (origem), aos sentidos “uidere” (ver), às partes do corpo “pes” (pé), “genu” (joelho), às relações de parentesco “pater” (pai), “mater” (mãe),”frater” (irmão), aos animais “equus” (cavalo), “ovis” (ovelha), à alimentação “coquere” (cozinhar), “bibere”(beber), ao vestuário, aos fenômenos naturais e às quantidades numéricas “lana” (lã),” lux” (luz),”duo” (dois). Tempos depois, à medida em que a sociedade foi se desenvolvendo e aumentando suas relações com outros povos, juntaram-se elementos vocabulares das mais diversas origens, como gregos, orientais, célticos, germânicos e, ainda, novas palavras se formaram por derivação.

A escrita latina é posterior ao uso da língua falada. A partir das obras literárias se depreenderam os fenômenos gramaticais com o intuito de transmitir nas escolas um latim considerado modelo. Se os romanos detinham o poder de conquistar o mundo, deveriam possuir também um poder lingüístico, uma literatura grandiosa e exemplar para legar às gerações futuras. Assim, sua língua se transformou em monumento para além dos séculos, mas seu uso foi ficando cada vez mais restrito àqueles que tinham acesso aos bens culturais, as classes dominantes.

Com a expansão do império, o latim, em todas as suas variedades, foi levado às regiões conquistadas, onde o modo de administração dos romanos favorecia a difusão da língua. Os romanos construíam, nas províncias, centros de irradiação cultural, as civitas, para a assimilação estratégica dos povos nativos. Ofereciam-lhes a cidadania, que lhes dava direito a casamento, herança, comércio e carreiras de serviço público, por isso todos se interessavam em aprender latim nas escolas romanas (Silva Neto, 1988).

Todavia, enquanto o latim clássico era ensinado nas escolas, a língua vulgar, falada por soldados, comerciantes, camponeses e a população em geral, cada vez mais se diversificava e incorporava características regionais. Com as invasões germânicas, o enfraquecimento e a conseqüente queda do Império Romano, o latim clássico iniciou sua retirada definitiva para os tabelionatos e mosteiros, onde se refugiou durante a Idade Média, ao passo que

Os latins falados em diferentes regiões principais foram o lugar de intensa atividade de mudança lingüística. Fonética, morfologia e léxico foram afetados a tal ponto que, rapidamente e ao menos a partir do século 6, não convém mais falar de formas regionais do latim, mas efetivamente de ancestrais de nossas línguas românicas. (Cerquilini, 1988)

Ainda assim, de um ponto de vista diacrônico, é possível conceber o latim como a fase atual de qualquer uma das línguas românicas, porque mudar é próprio da atividade lingüística concreta. Conforme Coseriu (1979: 31),

A língua muda para continuar funcionando como tal. O latim de Cícero deixou de funcionar como língua histórica justamente porque deixou de mudar; e neste sentido é uma língua morta, ainda que possa continuar funcionando indefinidamente como código.

O autor define código como língua que carece de historicidade, como as línguas artificiais. A utilização do latim como língua auxiliar internacional é que o teria transformado em código nesse sentido. O latim clássico, no período medieval e na Renascença, ainda que um tanto modificado, continuou sendo a língua de prestígio usada pelas classes instruídas. Burke (1995) efetuou um levantamento dos usos do latim na Europa, onde constatou uma série de surpreendentes empregos, o que o levou a afirmar que o latim permaneceu uma língua viva até o século XIX.

Na Igreja Católica, nas Universidades e mesmo em diversos usos práticos, enquanto língua internacional, o latim foi o veículo da cultura das elites, para as quais os romanos serviam de modelo em seu poder de conquista. Assim, expressar-se em latim seria como pertencer àquele passado glorioso. E ainda mais quando somente grupos restritos eram capazes de fazê-lo. Isso era garantia de status. Para os que se opunham à Igreja de Roma e à filosofia escolástica, o latim era visto como uma recordação amarga; já para os instruídos, defensores do monopólio das elites, o latim era símbolo de majestade. De acordo com a conclusão de Burke (1995: 88), o “latim era amado e odiado, não por aquilo que facilitava ou dificultava, mas também por suas associações, por aquilo que simbolizava.”

Sobre os diferentes contextos em que o latim ainda foi utilizado depois de 1500 muito se poderia discorrer, mas, devido à extensão do assunto, decidiu-se delimitar o estudo do latim na sociedade anterior ao surgimento das línguas românicas.

 

AS FONTES DO LATIM VULGAR:
REPRESENTAÇÕES DA FALA NA ESCRITA

Ao definir latim vulgar como língua falada, um problema que surge de imediato é o de como apresentar provas dessa fala de tantos séculos atrás. Numa época em que não havia os meios de que hoje se dispõe para registrar variedades lingüísticas populares, e nem interesse em fazê-lo, de que maneira se poderia dispor de uma amostra composta de obras do latim vulgar? Para Maurer Jr. (1962: 16), é possível admitir a existência de um latim do povo “mesmo sem provas documentais diretas, pela simples razão de sabermos que uma língua viva é sempre diferente nas diversas camadas da sociedade e que a língua falada se distingue necessariamente do estilo mais ou menos elaborado dos textos literários”. Contudo, parece mais adequada a afirmação de Spaggiari (1992: 90), de que “não existem, nem poderiam existir, obras escritas em latim vulgar, porque este é por definição uma língua falada”. Com a falta de obras a autora não quer dizer que não haja comprovações escritas, pois distingue dois tipos de meios de expressão: o literário, culto ou oficial, no qual se inserem as obras propriamente ditas, e o não-literário, que compreende inscrições informais, epígrafes funerárias, documentos privados e oficiais redigidos por pessoas que não possuíam domínio completo do latim clássico, e ainda textos históricos, técnico-científicos e gramaticais que ressaltam o uso do latim correto, como o ”Appendix Probi, que veremos em seguida. Tais textos registraram, sem pretender, as formas populares.

Este material fragmentário que foi conservado constitui as chamadas fontes do latim vulgar, cuja característica principal é o desvio da norma culta representado pelos plebeísmos presentes nos textos. Há vulgarismos que aparecem nas comédias de Plauto, nas sátiras de Horácio e no Satyricon de Petrônio. Outros aparecem também em autores cristãos, como Santo Agostinho que, mesmo tendo formação clássica, admite formas populares em seus escritos (Maurer Jr., 1962: 18).

São considerados vulgarismos espontâneos as palavras que aparecem nos textos dos gramáticos, os quais citam-nas como formas incorretas da língua, sem a preocupação em descrevê-las e estudá-las como variedades. Ao contrário, a vontade desses autores era a de escrever respeitando as regras do latim clássico, por isso censuravam os usos populares. Exemplo limite desse tipo de crítica é o Appendix Probi, escrito possivelmente no século III d.C. e encontrado junto aos textos do gramático Probo. Consiste em uma espécie de correção das palavras utilizadas pelos elementos da plebe. Silva Neto (1946: 221) apresenta-o na íntegra, totalizando 227 correções. Transcrevemos, aqui, apenas algumas expressões:

ansa non asa (asa)

articulus non articlus (artigo)

auris non oricla (orelha)

equus non ecus (cavalo)

pauper mulier non paupera mulier (mulher pobre)

socrus non socra (sogra)

speculum non speclum (espelho)

Também constituem fontes da língua popular os “grafitos de Pompéia, que são fragmentos rabiscados a carvão nos muros da cidade por volta de 79 a.C., quando a mesma foi soterrada pela erupção do Vesúvio; e as tábuas de esconjuro, inscrições funerárias populares de caráter mágico, usadas para recomendar um inimigo a uma divindade maligna. Transcrevemos dois exemplos apresentados por Spaggiari (1992: 85-7):

Quisquis ama, valia, peria qui nosci amare. Bis tanti peria, quisquis amare vota. (Viva quem ama, morra quem não sabe amar. Duas vezes morra quem impede de amar. (Poema epigráfico de Pompéia)

Te rogo qui infernales partes tenes, commendo tib Iulia Faustilla, Marii filia, ut eam celerius abducas et ibi in numerum tu aias. (Te invoco, que governas o reino dos infernos, a ti confio Júlia Faustila, filha de Mario, para que a leves contigo sem demora e acolha-a entre os teus (Tábua execratória).

Esses são alguns dos textos integrantes do Corpus inscriptionum latinarum, compilados no século XIX, em dezesseis volumes e que se encontram atualmente na Academia de Berlim. Há ainda outros tantos fragmentos escritos que se podem juntar às fontes do latim vulgar, como papiros antigos, tratados técnicos de diversas áreas, relatos de peregrinações, bem como glossários, textos cristãos e fórmulas legais e notariais mais tardios. (Bassetto, 2001: 135)

Como complemento das fontes fragmentárias do latim vulgar, também considera-se de grande valor o conjunto das línguas românicas. A reconstituição feita pelos comparatistas muito contribuiu para confirmar diversas formas até então duvidosas. O método comparativo, entretanto, é assunto para ser tratado à parte, devido às várias discussões polêmicas que gerou entre os romanistas. Preferiu-se manter a delimitação do presente trabalho apenas à questão referente ao latim vulgar e seus textos.


 

CONCLUSÃO

Seguindo o percurso do latim, desde a sua fase primitiva até a sua dialetação, ou início das línguas românicas, embora de maneira superficial como foi feito aqui, pode-se perceber uma série de questões difíceis de resolver. Possivelmente, a origem do problema do latim vulgar esteja relacionada ao fato de que os estudiosos antigos rejeitavam as manifestações lingüísticas populares. Só com o desenvolvimento das pesquisas sobre a língua falada, questões como essas começam a ganhar importância. No século XIX, quando aumenta o interesse dos estudiosos pelos dialetos vivos e as variações populares, a língua de Roma já não existe senão na forma escrita, predominante em obras literárias artísticas e normativas. Por outro lado, pequenos textos, dispersos e fragmentários, também escritos, mas com características que fogem aos padrões clássicos, chamam a atenção pela maneira como foram construídos, tanto em aspectos fonéticos quanto lexicais ou morfossintáticos.

Como vimos anteriormente, tais formas lingüísticas são hoje reconhecidas pelos estudiosos como pertencentes à fala popular, mas essa consideração só foi possível com o auxílio de ciências como a História, a Dialetologia e a Sociolingüística, que permitem analisar os fatores externos que influem nas mudanças do sistema da língua. Assim, através da análise de questões históricas, ideológicas, sociais e políticas, entre outras, o fenômeno da transformação do latim vulgar nas línguas românicas pode ser mais compreensível.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASSETTO, Bruno Fregni. Elementos de filologia românica: história externa das línguas. São Paulo: EDUSP, 2001.

BURKE, Peter. A arte da conversação. São Paulo: UNESP, 1995.

CARDOSO, Zélia de Almeida. Iniciação ao latim. São Paulo: Ática, 1989.

CERQUILINI, Bernard. O laboratório das línguas românicas. Folha de São Paulo. 23 jul. 1988. (Folhetim)

COSERIU, Eugenio. Sincronia, diacronia e história. Petrópolis: Vozes, 1980.

DESBORDES, Françoise. Concepções sobre a escrita na Roma antiga. São Paulo: Ática, 1995.

GRANDGENT, C. H. Introducción al latín vulgar. 2ª ed. Madri: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1952.

ILARI, Rodolfo. Lingüística românica. São Paulo: Ática, 1992.

LABOV, William. Sociolinguistique. Paris: Minuit, 1976.

MAURER JR., Theodoro Henrique. O problema do latim vulgar. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1962.

PRETI, Dino. Sociolingüística: os níveis de fala. 7ª ed. São Paulo: EDUSP, 1994.

SILVA NETO, Serafim da. Fontes do latim vulgar. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946.

__. História da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Presença, 1988.

SPAGGIARI, Barbara. Il latino volgare. In: CAVALLO, G., LEONARDI, C., MENESTÓ, E. (Org). Lo Spazio Letterario del Medioevo I. Il medioevo latino, v. 1, La produzione del testo. Roma: Salerno, 1992, p. 81-119.