A ORIGEM DAS FRASES FEITAS USADAS POR DRUMMOND

(contribuições para sua história e etimologia)

 

 

A língua é uma religião que se fortalece pela explicação de seus mistérios.

(Diógenes da Cunha Lima Filho)

É fácil acusar a existência de um lugar-comum, mas nem todos sabem
dizer em que consiste a verdade que o inspirou.

(Fernando Sabino)

1 – INTRODUÇÃO:

Embora a Paremiologia não tenha definido ainda com perfeição os diversos tipos de manifestações lingüísticas que constituem o objeto de suas investigações, sentimos a necessidade de estabelecer o que entendemos por frase feita, para que possamos estabelecer os limites de nossa pesquisa.

Esclarecemos, em primeiro lugar, que as frases feitas, no sentido que pretendemos estudar não levam em conta o fato de serem ou não usadas na linguagem corrente atual e geral, embora o sejam quase sempre. É que nosso trabalho pretende ser filológico e não folclórico.

Dando uma definição mais precisa de frases feitas do que o fizemos no trabalho A Fraseologia nas Crônicas de Carlos Drummond de Andrade: Subsídios para um Dicionário Básico, como começamos por observar que elas constituem abreviações ou paráfrases do provérbios, adágios, rifões, etc., ou meras alusões a tais expressões proverbiais. As frases feitas se caracterizam por sua subordinação e adaptação à construção da frase corrente, na qual se integram. Diferentemente dos provérbios, não constituem necessariamente, unidades completas e independentes, como ensina Amadeu Amaral.

Os provérbios, além de constituírem unidades completas e independentes, são construídos em forma concisa e pitoresca, revelando uma sabedoria feita de experiência.

Voltando às frases feitas, lembramos que todas as frases "fossilizadas em sua forma e seu sentido e usadas no discurso à maneira de uma locução" são objeto de estudo da Fraseologia , mesmo se usadas apenas na linguagem literária e erudita.

Como as pesquisas em Ciências Humanas não podem ter um nível de comprovação de suas hipóteses semelhantes ao que têm as Ciências Físicas e Biológicas, os etimologistas, e os filólogos em geral, satisfazem-se em analisar a sua "mostra", compará-la com variantes documentadas, analisar conjeturas já formuladas por outros especialistas e estabelecer novas hipóteses. Raramente se estabelecem verdades consideradas definitivas durante muito tempo.

É lamentável, mas não é outra coisa o que fizeram Antenor Nascentes, José Pedro Machado, Antônio Geraldo Cunha, João Ribeiro, Luís da Câmara Cascudo e todos os outros que se embrenharam por este caminho. Neste caso, só se pode falar em prováveis exceções em relação a alguns verbetes. Jamais para toda a obra de um autor.

As frases feitas estudadas aqui foram extraídas das crônicas de Carlos Drummond de Andrade. Pretendemos esclarecer a origem de algumas dessas construções proverbiais e indicar pistas que possam levar a tal esclarecimento das restantes. Contribuiremos, assim, para compreensão do seu verdadeiro sentido. Evitaremos repetir as abonações drummondianas e os seus significados, visto que isto já foi feito no trabalho que citamos acima.

Quanto aos estudos sobre este mesmo tema, registramos sua escassez e sua infância. Embora tenham surgido trabalhos de real valor, como os de J. Ribeiro e os de L. da Câmara Cascudo, por exemplo, poucos foram os trabalhos desta natureza que tenham merecido a referência da crítica especializada. Além disso, não conseguimos registrar trabalhos merecedor de crítica sobre o nosso tema anterior ao badaladíssimo Origens de Anexins, etc., de A. de Castro Lopes, que ainda não comemorou seu centenário.

Indicamos na Bibliografia, além das obras por nós consultadas, os trabalhos de Antônio de Castro Lopes, Lindolfo Gomes, Monsenhor Vicente Lustosa e Tomás Antônio Pires, que são peças importantes no desenvolvimento desta pesquisa, mas não puderam ser manuseadas.

Seguimos, grosso modo, a orientação metodológica de João Ribeiro, em suas Frases Feitas, e Luís da Câmara Cascudo, em suas Locuções Tradicionais no Brasil, redigindo todo o trabalho em forma de artiguetes.

Quanto à disposição dos artiguetes ou verbetes, seguimos a ordem alfabética das palavras chaves, orientando-nos por Antenor Nascentes e por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.

Quanto às normas de redação e datilografia, seguimos o que ensina o nosso Mestre, Mário Camarinha da Silva.

Registramos todas as variantes encontradas, seja quanto à forma, seja quanto ao sentido, mesmo quando nada pudéssemos concluir a respeito. As variantes em língua estrangeira só foram anotadas quando parecia muito provável uma filiação ou qualquer forma de parentesco próximo.

Este é o terceiro de uma série de trabalhos sobre Fraseologia que têm como corpus as crônicas de Carlos Drummond de Andrade. Os dois anteriores foram: A Fraseologia nas Crônicas de Carlos Drummond de Andrade: Subsídios para um Dicionário Básico e A Estrutura das Frases Feitas. No próximo semestre pretendemos desenvolver um estudo comparativo das frases feitas nas línguas românicas modernas, considerando-se sob o ponto de vista da convergência morfossemântica, e tomando como ponto de partida a Fraseologia Brasileira.

 

Rio de Janeiro, fevereiro de 1985.

José Pereira da Silva

 

2 – UMA INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA E ETIMOLÓGICA DAS FRASES FEITAS.

2.1. – Não se Dar por Achado

João Ribeiro afirma que "ACHAR é voz arábica que não tinha o sentido, corrente hoje, de descobrir ou encontrar," de onde imagina derivar as palavras achaque, enxaqueca, etc., que equivalem a doenças, mal-estar, defeito ou moléstia.

Enfim, "achar está por achacar e restou penas na locução proposta, tornando-se voz obsoleta nos demais casos. Dar-se por achado é dar-se por achacado e ofendido."

A forma e o sentido da frase já era o mesmo no Cancioneiro Geral, já sendo freqüente nos quinhentistas.

A explicação de João Ribeiro não satisfaz, pois é muito pequena a probabilidade de ter havido o processo fonético que resultaria achar a partir do árabe /as& -s& aka" / ou achaque.

Inclusive, João Ribeiro não persistiu na defesa de sua conjetura nem tentou rebater as críticas de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, como recorda Luís da Câmara Cascudo.

O correspondente etimológico de achar, em castelhano, é ajar e não hallar, opina ainda João Ribeiro, visto que "ajar /é/ maltratar de palabra a alguno para humirllarle", segundo os léxicos castelhanos.

Seria achar um derivado de achanar=achaar=achar?

Esta hipótese, sugerida por Carolina Michaëlis de Vasconcelos, não é de todo improvável. Afinal de contas, esta palavra é um arcaísmo que se revitalizou no Brasil, principalmente no Nordeste e que significa "reduzir ou aniquilar moralmente; abater, humilhar, achatar;" e ainda "dominar, subjugar: Apesar de sua força o adversário terminou achanando-o".

Sendo assim, não se dar por achado pode ser não se dar por achanado, o que parece até mais lógico.

O que é certo é que o verbo achar, em seu significado atual em português, nada tem a ver com a frase em questão.

2.2. Sem Dizer Água Vai

Esta locução é antiga e sua explicação é conhecida. Ela provém dos tempos em que ainda havia esgotos nas cidades.

Os moradores lançavam normalmente a água usada pelas janelas, usando sempre o indispensável grito de alerta aos transeuntes: Água vai!...

É compreensível a intolerância às pessoas que costumavam lançar seus dejetos à rua sem o costumeiro grito.

Com o sistema de esgotos, o velho costume desapareceu, mas a expressão sobreviveu com um significado bastante próximo do original.

2.3. Pôr a Alma pela Boca

As idéias de alma e sopro ou corrente de ar expelida dos pulmões, desde os tempos bíblicos, estão em estreita relação.

Foi com um sopro que Deus infundiu a vida ao primeiro homem, conforme a versão de Gênesis 2:7.

Pôr a alma pela boca, a partir desta interpretação, passa a sugerir a idéia de perder a vida ou parte da vida, o que normalmente acontece com o cansaço ou sofrimento excessivo.

Raimundo Magalhães Júnior registra a variante deitar a alma pela boca, já documentado na Feira de Anexins, de D. Francisco Manuel de Melo.

2.4. Debaixo desse Angu tem Carne

Angu é uma alimentação barata, cujo elemento básico é o fubá de milho ou farinha de mandioca. Foi largamente utilizado na alimentação dos escravos negros no Brasil.

Como as cozinheiras também eram escravas, freqüentemente se encontravam pedaços de carne que deveriam ser reservados aos feitores escondidos debaixo do angu de determinados escravos protegidos pela cozinheira ou por outra pessoa, geralmente o transportador dos alimentos ou seu distribuidor.

Por isso, se fosse observado que determinado escravo estava muito cuidadoso com sua porção de angu ou se houvesse preferência por uma outra, desconfiava-se sempre dessa diferença de tratamento. E todos pensavam que debaixo daquele angu devia haver carne.

Até bem pouco tempo ainda se costumava fazer dessas trapaças com os "companheiros" de trabalho, reservando-se uma marmita ou caldeirão especial para o dono do serviço. Este se afastava um pouco de seu grupo para saborear sua refeição de maneira escondida dos outros. Debaixo do angu, a cozinheira botava a carne ou torresmo, que não existia nas marmitas dos outros.

Leonardo Mota registra uma variante: ‘Debaixo desse angu tem torresmo", que tem o mesmo valor semântico e origem semelhante. A pequena diferença está no grau ou intensidade da discriminação entre os tratamentos dispensados, lembrando-se a decadência dos todos-poderosos senhores de escravos e de outras elites.

A extensão do significado fez esquecer o antigo costume e aplicar a expressão a qualquer tipo de disfarce para transportar qualquer tipo de coisa de maior valor que o aparente.

2.5. Arrastar a Asa.

Arrastar a asa é a forma de um galo cortejar a galinha.

É da observação deste fato que surgiu a frase feita que indica o seu correspondente entre os humanos, ou seja, o cortejo do homem a uma mulher.

Como o galo é o símbolo do macho dominador, subentende-se que arrastar asa inclui a demonstração de habilidades de macho ou mesmo de machista.

Muitas outras expressões proverbiais em trono do galo ressaltam estua sua característica, comparando-o ao homem machista e dominador. Vejamos: Cada galo canta no seu poleiro, e o bom no seu e no alheio; Folgai, galinhas, que é morto o galo; Galo que fora de horas canta, faca na garganta; Na casa de Gonçalo, canta a galinha e o falo; Onde canta galo não canta galinha; Onde há galo não canta galinha; Triste é a casa onde a galinha canta e o galo canta; Onde o galo canta, aí janta; Galo, antes de cantar, bate as asas três vezes; Galo cantando, à boca da noite, é sinal de que estão furtando moça; Como canta o galo velho, assim cantará o novo; Todo galo é valentão para galinha e capão; A pinta que o galo tem o pinto nasce com ela: Cantiga que o pinto canta o galo já cantou; Galo no seu poleiro briga com o mundo inteiro; Franga que canta chama galo: Galo velho; Galo de um terreiro só; O galo daqui sou eu; Cantar de galo; Quando o galo canta fora de hora é moça roubada que vai dando o fora; Baixar a crista; Cada galo em seu terreiro; Depressa que só trepada de galo.

2.6. Ficar Debaixo do Balaio

A expressão lembra o processo caseiro, ainda usado no interior de Minas Gerais, de fazerem que as galinhas percam o choco. O processo consiste em prender a galinha choca sob um balaio e sobre uma poça d’água, de modo que ela não possa deitar-se, na posição normal de chocar. (Galinha não se deita sobre água.) Desta maneira aparentemente cruel, a galinha se esquece plenamente do seu instinto de chocadeira, voltando naturalmente aos eu período de postura.

Aplicada aos namorados, ficar debaixo do balaio é uma situação idêntica, em que eles têm de esquecer o parceiro ou a parceira desejada e procurar outra, recomeçando, forçadamente, todo o ciclo que já iniciaram.

2.7. Plantar Bananeira

O que é característico e marca o ridículo de tal ato é aspecto visual, a partir do qual se criaram várias metáforas. Tais metáforas, sugeridas pelas naturais substituições dos nomes das partes pudendas do corpo humano por nomes relacionados com animais, plantas ou objetos, são conseqüências dos tabus lingüísticos que cercam, principalmente, órgãos sexuais.

Quem planta bananeira, ficando de pernas para cima e de cabeça em direção ao solo (senão posta ao solo) cria a imagem de uma bananeira, com um cacho, com banana, com umbigo, comas folhas representadas pelas pernas, tudo isto muito exposto e aumentado o aspeco ridículo com o fato de ser a posição oposta à que normalmente o ser humano posa.

A idéia de ridículo deste ato, portanto, está relacionado com um aspecto psíquico da linguagem, que se estabelece por comparação ou associação de imagens.

2.8 Matar o bicho

Este é um processo usado pelos beberrões há mais de quatro séculos para tomar de vez em quando o seu gole de bebida forte.

Inicialmente, e até bem pouco tempo, o pretexto medicinal rezava que um gole de bebida alcoólica de alto teor, ingerida pela manhã em jejum, surpreende o bicho que deve existir dentro do beberrão, combatendo-o.

A história de Madame La Vernade, filha de um general francês, que morreu em 1519 e que tinha um verme atravessado no coração, resistindo a todos os tóxicos, parece ter dado início a esta crença, que mais parece uma desculpa.

Conta-se que Madame La Vernade, falecendo subitamente, foi autopsiada, tendo-se encontrado tal verme atravessado em seu coração. Não morrendo com aplicação de todos os tóxicos disponíveis, os médicos embeberam um pedaço de pão em vinho forte, colocando sobre o pão umedecido o resistente verme. Foi o suficiente para que ele morresse imediatamente.

A partir de então, os médicos passaram a aconselhar que se quebrasse o jejum com pão e vinho.

Os beberrões, no entanto, não se contentaram com o pão e o vinho. Começaram a tomar bebida mais forte e, depois, aboliram o pão. Atualmente, mata-se o bicho a qualquer hora, e o vinho foi substituído pela cachaça, de preferência.

A fraseologia brasileira relacionada com a cachaça é das mais ricas que temos. Com o significado idêntico ao de matar o bicho temos as seguintes, além de outra: Morder a batata; Dobrar o cotovelo; Quebrar a munheca; Acender a lamparina; Alertar as idéias; Molhar a palavra; Molhar o bico; Mudar a camisa; Tomar um oito; Mudar o colarinho; Salgar o galo.

2.9. Matar o Bicho do Ouvido

É tradicional a crença de que a cera do ouvido é retirada por um bicho, que é o responsável pela audição, pois do contrário o ouvido seria entupido de cerúmen. Como o excesso de ruído causa a surdez, acredita-se que o bicho do ouvido morre ou adoece toda vez que houver mais ruído do que o suportável, seja quanto à intensidade, seja quanto à continuidade.

Falar demais ou muito alto com alguém é uma forma de matar o bicho do ouvido de quem for obrigado a ouvir tal falador exagerado.

2.10. Fazer Boca-de-siri

Como diversas frases feitas por nós estudadas, esta também é resultado da observação da natureza. O siri, ao prender alguma coisa com a "boca", que é uma de suas garras, não solta nem mesmo depois de morto. Ora, como fechar a boca implica ficar calado, fazer boca-de-siri passou a substituir uma explicação muito mais extensa que pudesse indicar o ato de calar-se ou fazer segredo rigoroso.

Há diversas outras formas de sugerir idéia de segredo através da palavra "boca", que se pode fechar de vários modos: Em boca fechada não entra mosquito; Boca calada é remédio; Boca cheia não conversa; Boca que fala não mastiga; Minha boca é um túmulo; Minha boca é um botão; A boca pequena; De boca em boca.

O provérbio: Em bica fechada não entra mosquito, que é uma forma ameaçadora de prevenir os delatores contra prováveis conseqüências de sua indiscrição, tem versões em latim, espanhol, francês, italiano e inglês. Destas formas, destacam-se pela semelhança com a nossa, a francesa: En bouche serée n’entrent des mouches e a espanhola: En boca cerrada non entra mosca.

2.11. Dar Bode

É evidente o significado de dar, que corresponde a resultar ou ter por resultado. Mas o que vem a ser bode?

Lembramos que bode sempre esteve ligado às forças diabólicas, como lembra Câmara Cascudo, em seu Coisas que o Povo Diz: "Qualquer velha bruxa de outrora, sabedora de orações e remédios fortes, informava do poder do Bode, sinônimo diabólico, temido e respeitado na ambivalência natural."

Aliás, segundo a tradição judaica, o bode era o animal escolhido para carregar todos os pecados de seu povo e, por isso, ser abandonado num deserto. Representando todo o mal, o bode expiatório era ao mesmo tempo vítima e réu.

Dar bode é resultar numa situação infernal, indesejável, confusa.

Embora o bode esteja quase sempre relacionado com a atividade sexual masculina, em diversos provérbios e expressões populares, não há probalidade de haver conotações desta natureza na frase feita em questão.

Relacionada com a idéia de vítima, conheço o seguinte anexim com a palavra bode: Quem menos pode é quem paga o bode.

Vide também: Bode preto; Bode amarrado; Bode expiatório.

2.12. De Maus Bofes

Segundo a crença popular, os bofes, entranhas ou vísceras, são responsáveis pelo bom ou mau humor das pessoas. Até se costuma dizer que quem sofre do fígado está sempre de mau humor. Daí expressões com antipatia visceral ou inimigo fidagal ou de bofe inchado, que é o mesmo que excessivamente irado.

2.13. Dar Bola

Surgiu certamente com o jogo de futebol. Neste esporte, os atletas devem dar a bola aos companheiros de equipe em situações estratégicas mais vantajosas para que se atinja o objetivo, que é o gol, o mais rápido possível.

É claro que não se dá bola para quem estiver em situações menos favoráveis, como por exemplo, marcado por adversário muito forte.

Também existe a expressão dar pelota, que tem a mesma origem e significado.

2.14 Dar com os Burros n’água

Antônio José da Silva, o Judeu, tem o seguinte passo, na voz do Escudeiro: "-Ah burro do meu coração! Bem te entendo o que queres dizer nesse zurro; mas não te posso ser bom; tem paciência, que bem sei, que deixar-te, dei com os burros na água!"

A outra abonação antiga que possuímos é de Gregório de Matos: "- Que de tudo o que tem vítima faz,

E dá com os burros n’água desta vez."

Acreditamos que a frase provém de um conto popular vulgarizado oralmente no interior do Brasil. Lembro-me de tê-lo ouvido há uns 25 ou 30 anos em Minas Gerais.

Conta-se que dois tropeiros foram incumbidos de realizar a façanha de transportar com suas respectivas tropas uma carga qualquer até um determinado lugar, onde estaria a pessoa que pagaria com um prêmio o que primeiro chegasse com a sua carga.

Acontece que o caminho era desconhecido, e ambos tiveram o direito de escolher a mercadora que desejavam para que a viagem se tornasse mais fácil.

O primeiro escolheu uma carga de algodão, porque era mais leve. O segundo escolheu uma carga de sal, por que era mais volumosa.

Seguindo caminhos diferentes, no entanto, ambos tiveram que passar a vau por um rio, que surgiu inesperado.

O primeiro, ao tentar passar, umedeceu sua carga e os quase morreram afogados, saindo a custo do rio, onde a carga ficou perdida, com um peso insuportável.

Ao tentar passar, o segundo tropeiro teve toda a sua carga de sal derretida, chegando na outra margem apenas com a sua tropa descarregada.

Deste modo, ao dar com os burros n’água, os dois tropeiros tiveram fracassadas as suas empresas, não logrando o desejado prêmio.

Existem outras variantes, em que apenas um dos tropeiros dá com os burros n’água, enquanto o outro consegue passar com a carga e receber o prêmio, conforme relato do Prof. Edwaldo Cafezeiro, da Profa. Guaciara e outros colegas a quem consultei sobre tal conto popular.

2.15. Bom Cabrito Não Berra

Segundo Tomé Cabral, cabrito é o mesmo que garoto atrevido. Sendo a forma de diminutivo masculino de cabra, é natural que tenha herdado a base semântica da forma primitiva, que corresponde a capanga, criminoso, pistoleiro ou membro subalterno de grupo de cangaceiros.

É nesse sentido que se usa a palavra cabra nas expressões seguintes: Cabra do Cariri mata pra "istruir"; Cabra e obra...; Não há doce ruim nem cabra bom; Cabra valente não deixa semente; Para o primeiro cabra bom falta um; O cabra bom nasceu morto.

Embora seja também usado como gíria de marginais, esta frase feita não deve ter-se originado entre os marginais do Rio de Janeiro, nem tão recentemente. Se muito recente, deve ter sido da época em que o cangaço constituiu uma frente política no Nordeste, onde houve muito cabra de respeito e até hoje se fala de cabra macho, como sendo um título com que todos os homens simples pretendem ser distinguidos.

R. Magalhães Jr. Explica que "a ética dos criminosos lhes impõe a solução dos seus problemas, mas sem delações à polícia, ficando tudo entre eles mesmos. Berrar é sinônimo de delatar e bom cabrito é o criminoso que adere rigorosamente àquela norma de conduta."

Ora a expressão em questão deve ter considerado que o bom cabrito é aquele garoto atrevido que se submete a uma norma de vida, embora não seja a norma da lei oficial. E esta norma consiste em não berrar ou não delatar os companheiros.

2.16. Amarrar Cachorro com Lingüiça

É provável que esta frase venha do texto do Decamerom, de Boccacio, que descreve uma terra maravilhosa de gargantões, onde as montanhas todas de queijo parmezão grattugiato e macheroni e pavioli faziam água na boca. Nesta terra, Bengodi, é que se via o costume extraordinário que ainda hoje a frase relembra, pois lá se amarravam os cães com lingüiça.

A terra de cucanha ou reino de cucanha, de que existem referências na literatura popular de todos os países do ocidente, é a origem mais remota dessa frase feita.

Vejamos o que diz João Ribeiro a respeito:

Desta circunstância de serem na terra da Cucanha amarrados os cães com lingüiça e de haver um deles, por menos tolo, devorado os grilhões, é que no anedotário picaresco e popular se formou a história de um edito do rei dos cães ordenando que farejassem todos os adventícios em certos lugar, a fim de verificar se tinham comido a lingüiça, a lei que não tendo sido revogada ainda hoje dos cães se cumpre. A anedota poderia passar por um mito verbal sugerido pelas palavras terra ou reino de Cucanha (Cu-canis)...

Relacionado com este fato, que resulta da observação da natureza, existem outros provérbios e dizeres tais como: Costume de cachorro é cheirar toco e lamber o traseiro; Cachorro não cheira flor mas cheira o cu do outro.

2.17. Meter-se em Calças Pardas

Embora o significado atual desta expressão seja idêntico ao de meter-se em camisa de onze varas, sua origem é seguramente diferente.

Certamente a forma de uma dessas expressões influenciou na outra, fazendo o seu sentido também tornar-se idêntico.

João Ribeiro acha que esta expressão se aplica principalmente "à ousadia donjuanesca dos sedutores de mulheres". Neste caso, calças conservou o sentido arcaico de meias; e pardo é uma palavra que indica ou sugere a idéia de que os nobres faziam questão de serem os primeiros a romper as barreiras da virgindade de suas vassalas.

Se houvesse algum documento que comprovasse que as calças de tal cor fossem insígnias da virgindade, facilmente se resolveria o caso. Mas isto não passa de probalidade remota.

O registro mais antigo da expressão, lembrado por João Ribeiro, é do século XVIII, o que mostra probabilidade de haver influência quanto à forma e quanto ao sentido de...

2.18. Meter-se em Camisa de Onze Varas

Duas explicações me parecem interessantes e prováveis. O que ensinou João Ribeiro e o que ensinou Luís da Câmara Cascudo. No entanto, prevalece a dúvida.

João Ribeiro pretende analisar a origem de camisa e varas a partir de dois parônimos árabes: /al-kándara/ e /alkandur/. Alcândara ou alcândora era o poleiro, o pau ou a vara em que descansava o falcão ou descansa o papagaio moderno, ou poleiro para ave de rapina.

A forma /al-kandur/ não se registrou em português, tendo dado "alcandora" em espanhol, que significa camisa longa e talar, a camisa de dormir.

Com as duas idéias reunidas em alcândor ou alcândora, fundiu-se a noção de roupa longa ou camisa longa e o de vara longa. Talvez isto seja uma boa explicação da subsistência das palavras camisa e varas na mesma frase feita.

Quanto ao numeral onze, deve ser um número indefinido com o que aparece em locuções como: língua de onze palmos, onze mil virgens, etc. Afinal de contas, nunca houve uma camisa de onze varas, ou seja, de mais de doze metros.

A relação entre a camisa de onze varas e a túnica dos enforcados foi lembrada por Gonçalves Viana e retomada freqüentemente, inclusive com a hipótese de que tais varas podem ser uma alusão ao antigo feixe de varas dos juizes.

A explicação de Câmara Cascudo tem como base ou argumento mais forte os Estatutos da Confraria de Santa Maria do Castelo de Thomar, de 1388. Diz, a certa altura, este estatuto:

Se algum Confrade ferir outro Confrade com espada ou com coytello, entre em camisa em XXX tagantes. Aquele que a seu Confrade der punhada, ou lhe messar a barba, entre em camisa a sinco tagantes.

Sabendo-se que tagante é o choque do açoite, meter-se em camisas de onze varas é o mesmo que entrar em camisa a onze tagantes.

Como lembra Cascudo, "a pena seria rápida e pouco dolorosa", mas se tornava humilhante por ser apregoada e pública. Daí ser tão temida.

As chicotadas por cima da camisa, além disso, lembravam que o sentenciado ou condenado era um fraco, que não resistiria os açoites sobre a pele, comparado a uma mulher torpe.

2.19. Entrar pelo Cano

Magalhães Jr. acredita que o "o cano", nesta expressão, é o cano do esgoto, o que parece ser a verdade. Além disso, ele nos lembra que entrar bem é uma variante de entrar pelo cano, com o sentido de entrar profundamente pelo cano, ou seja, acrescentando-lhe a idéia de intensidade, com a elipse de cano.

Acrescentamos mais uma variante muito comum, que é entrar mal. Entrar mal é entrar pelo cano de uma maneira desastrosa. Mal, nesta expressão, é advérbio de modo redundante, visto que entrar pelo cano jamais poderia ser entrar de maneira agradável.

A hipótese de origem inglesa da expressão, com adaptação em português, não me parece ter fundamentos sólidos. Entrar pelo cano, em inglês, é To go down the drain, que se traduz melhor como Ir por água abaixo ou Dar em nada, segundo o Professor Oswaldo Serpa.

Aliás, o mesmo lexicógrafo registrou Entrar pelo cano igual a come a cropper, fail, be an unsuccessful flop, get in hot water.

2.20 Embarcar em Canoa Furada

Embarcar, que deveria ser o ato de entrar ou colocar alguma mercadoria num barco ou numa barca, pode indicar tal ato em relação a qualquer meio de transporte aquático, terrestre ou aéreo.

Um outro fato muito interessante no uso e na evolução da linguagem é o de que uma característica ou um determinante muito forte pode obscurecer o determinado, tomando o seu lugar.

Foi, por exemplo, o que aconteceu com burro (asinus burrus) e com maçã (mala matiana), além de muitos outros.

Não há nada de tão marcante em embarcar numa canoa que possa tornar a expressão uma frase feita. Mas embarcar em canoa furada constitui prenúncio quase certo de uma tragédia. Portanto, é o furo, ou a característica de estar furada essa canoa, que chama a atenção.

Daí as naturais derivações: Entrar numa fria e Entrar ou Embarcar em canoa furada. Se a canoa está furada, estará molhada e, obviamente, fria.

Outro fato que nos leva a esta origem das expressões elípticas acima é a concordância feminina de furada e fria.

A troca de embarcar por entrar dispensa explicações, vista a origem metafórica de embarcar.

Veja que ninguém diz embarcar numa bicicleta, ou num cavalo, ou num pára-quedas, ou numa asa delta.

Embarcar é o mesmo que entrar, em se tratando de meios de transporte.

2.21. Dar as Caras

Assim como a flexão facilita a interpretação nas variantes acima, suponho ter descoberto a origem desta frase feita a partir do plural, que parece estranho ao significado normal ou à associação que fazemos com a idéia de rosto da pessoa que dá as caras.

Como as pessoas não têm mais de uma cara, a expressão deveria ser dar a cara, se estivesse relacionada com rosto ou cara da pessoa que aparece, dando as caras.

Só por associação vem-nos a idéia de caras, correspondentes às cartas de baralho de maior valor em vários jogos. Dar as caras, que não é expressão dos jogos de cartas, associa-se a dar as cartas quanto à forma morfossintática e fonética, e a mostrar o jogo quanto ao significado.

Como as caras das pessoas não podem aparecer sem que as próprias pessoas apareçam, dar as caras passou a significar "aparecer, fazer uma visita".

O cruzamento semântico proveio da semelhança dos elementos componentes das expressões dar as cartas e dar as caras.

2.22. Botar as Cartas na Mesa

A expressão tem origem no jogo de baralho.

Dar as cartas ou botar as cartas na mesa são expressões que indicam o ato de comando que inicia o jogo.

Quem dá as cartas ou bota as cartas na mesa é responsável pela sorte dos demais jogadores.

No jogo-de-cartas com a pretensão de adivinhar o futuro (cartomancia), a superioridade de quem bota ou põe as cartas na mesa não acaba com este ato, continuando durante o desenrolar da ação que aí começa. É mesmo provável que esteja especificamente neste tipo de jogo-de-cartas a origem da expressão.

2.23 Casa da Mãe Joana

João Ribeiro pensa que a expressão, em sua forma crua e nua, é Cu da mãe Joana.

E acrescenta: "Esta pobre da Mãe Joana é o simples vocábulo árabe damchan que significa garrafão, e como verbo, meter uma coisa em outra: e é dedução perfeita porque os garrafões servem para que neles se lance alguma coisa e sempre são por sua vez metidos em palhas ou gigos abertos e protetores. De Damchan o espanhol fez damajuana, e o francês dame-jeanne também a tem com o mesmo sentido de vaso grande de cristal ou garrafão."

Daí a expressão casa de Mãe Joana, formada por etimologia popular.

Sem ao menos fazer alusão às conjeturas de João Ribeiro, Luís da Câmara Cascudo vê a origem da frase em questão sob um outro ângulo, mais aceitável e menos conjectural:

Joana, rainha de Nápoles e condessa de Provença (1326-1382), em sua tumultuosa existência, refugiou-se no Avignon em 1346. No ano seguinte, regulamentando os bordéis da cidade, aprovou um estatuto que dizia em um de seus artigos: "- et que siegs une porto... dou todas las gens entraron." Ou seja, ... e que tenha uma porta por onde todas as pessoas possam entrar.

O prostíbulo se tornou o Paço da Mãe Joana, nome que se divulgou em Portugal.

Aliás. Teófilo Braga informa:

-Paço da Mãe Joana com que se designa a casa que está aberta para toda a gente. Nos açores é muito usual para dizer que uma porta está escancarada - É como o Paço da Mãe Joana!

No Brasil, paço não é vocábulo popular. Tornou-se casa e, às vezes, com nome mais repugnante e feio.

2.24 Casa de Orates

Orate é o mesmo que louco, tendo chegado ao português através do espanhol orate, que vem do catalão orati, de uma forma do latim tardio ora ou oura.

Segundo J. P. Machado, foi o romance do latim aura, "ar, vento", que deu a forma portuguesa orate, e não os vocábulos indicados por Magalhães Jr.

Ligando-se diretamente ao vocábulo oura, que significa "tontura de cabeça, vertigem", casa de orates é um ambiente de tumulto, desordem, balbúrdia, pelo menos no Brasil.

Em Portugal, por irreverência, andaram chamando os conventos, diz Magalhães Jr., de casa de orate frates, num jogo de palavras facilitado pela flexão do verbo orare, na expressão latina orate, frates! (orai, irmãos!).

2.25. Dar o Cavaco

Há três expressões com a palavra cavaco que parecem tomar tal palavra com sentido bem diferente um do outro: Dar o cavaco (lamentar, culpando alguém); Dar o cavaco por (gostar muito) e Catar cavaco (desequilibrar-se para frente e tentar equilibrar-se novamente, correndo com as mãos preparadas para proteger o corpo da queda iminente).

A primeira expressão (dar o cavaco), mostra ser cavaco algo indesejável por que o recebe. Suponho ter havido um cruzamento de sovaco com cavaca.

Sovaco ou sobaco são palavras de origem desconhecida, tendo chegado ao português, provavelmente, através do espanhol. Como é mais comum a forma sobaco, justapondo-se sob (debaixo) e aco ou aca (fedorento), de origens latina e tupi, respectivamente, a preferência popular por esta forma deve estar relacionada com essa falsa etimologia, pois a forma sovaco, já antiga na língua, elimina tal correlação.

Aliás, aca, cheiro desagradável, "é a terminação de alguma palavra, porque isoladamente tem, em tupi, significado inteiramente diverso, sem nenhuma relação olfativa. Inhaca já de há muito registrado, transformou-se em iaca, no Maranhão e aca no Ceará".

Cavaco ou cavaca, que são variantes de uma mesma palavra, constituem-se de cava (buraco) e aco ou aca (fedorento; cheiro desagradável).

Certamente por coincidência, mas possivelmente de propósito, o exemplo que colhemos em Carlos Drummond de Andrade sugere tais correlações: "Ganhar vidro de cheiro marca barbante, isso não: a mocinha dava o cavaco."

A segunda expressão (dar o cavaco por ou dar o cavaquinho por) parece ter tomado a palavra cavaco (cavaca) ou cavaquinho com o sentido de instrumento musical, cuja variedade mais conhecida e popular é o cavaquinho, já que tem sentido positivo, ou seja, de coisa desejável. Dar o cavaco (ou o cavaquinho) por alguma coisa é demonstrar que gosta muito desta coisa. Logo, o cavaco ou cavaquinho só pode ser algo de valor ou de estimação.

A palavra cavaco, neste sentido, é formada por metáfora a partir de cavaco, no sentido que veremos a seguir.

A terceira expressão (catar cavaco, ou sair de cata cavaco) leva em consideração a posição arqueada do corpo de quem sai de cata cavaco ou catando cavaco, comparando esta posição com a de quem estivesse catando cavacos, ou seja, pequenas estilhas ou lascas de madeira, pelo chão.

2.26. Tirar o Cavalo da Chuva

Ainda é costume, no interior, onde o cavalo é o meio de transporte mais comum, amarrar-se o cavalo na frente da casa. Amarrá-lo sob a varanda ou em algum lugar protegido do sol é indício de que o visitante pretende demorar, o que se considera uma indiscrição pouco desculpável.

Tirar o cavalo da chuva seria amarrá-lo na varanda ou alguma outra proteção, para que o visitante pudesse demorar-se calmamente.

Quando este esboça um gesto de partir, o dono da casa diz logo: - Pode tirar o cavalo da chuva, ou seja, pode desistir dessa pressa de partir.

A ampliação de sentido para desistir de alguma coisa, ou simplesmente desistir, é uma conseqüência do uso muito freqüente da expressão.

Amadeu Amaral afirma que não existe em português nem noutra língua um correspondente exato deste adágio.

2.27 Andar por Ceca e Meca

Andar de ceca-e-meca em ceca-e-meca; andar de ceca em meca; andar ceca e meca e clivais de santarém; correr ceca e meca; correr ceca e meca e clivais de santarém; correr de ceca em meca; etc. são todas variantes igualmente usadas.

Ceca é o nome da mesquita de Córdova, a mais importante do maometismo no ocidente, nome que significa Casa da Moeda, em árabe, língua de que se origina.

Meca é o mais importante centro da religião do oriente.

Ir de um a outro desses centros de peregrinação religiosa era correr ceca e meca.

Ora, com o tempo, a expressão perdeu seu significado específico, desaparecendo-se o sentido das palavras básicas: ceca e meca. Deste modo é que passou a significar: andar por toda parte; andar de um lado para outro; correr mundo; andar de déu em déu; etc.

Tanto em Portugal quanto na Espanha, onde a frase se tornou popular antes de viajar para o Brasil, existem lugares com os nomes de Ceca (Seca ou Asseca) e Meca. Sendo assim, a origem precisa da frase continua obscura, de um certo modo, pois não sabe se a expressão surgiu em Portugal ou na Espanha, ou caso se refira a cidades daquele país ou aos centros de cultura religiosa dos mouros.

A probalidade de ser uma criação dos mouros e de se referir à casa de romaria islâmica de Córdova e à cidade sagrada do Islamismo, na Arábia, é, sem dúvida, a maior.

Quanto à origem do vocábulo ceca, explica Said Ali, pouco importa.

Basta que sirva de rima antecipada a Meca, com o que se fica entendendo que a pessoa viaja muito, percorrendo grandes regiões e em todos os sentidos. (...)

Faz-se aqui uso de um meio de expressão em que se repete parte de um vocábulo, da sílaba acentuada em diante. Esta repetição parcial produz efeito análogo ao da repetição total. Deixa no espírito do ouvinte a impressão de reforço, de um conceito levado ao grau extremo, ou de cousas contrárias ou pontos extremos, quando os termos rimantes pela natureza da frase devem denotar cousas muito diferentes.

2.28 Chá de Casca de Vaca

Chá é uma infusão que se toma para combater alguns males, como remédio. Casca de vaca é o couro com que se fabricam, entre outras coisas, as talas e os chicotes, objetos de suplício de largo emprego.

O couro, ou a casca de vaca passaram se confundir com a surra ou com o objeto suplício com que a vítima é surrada, respectivamente. Chá de casca de vaca corresponde a surra ou couro, no sentido da expressão tomar couro ou levar couro ou dar couro.

Como o que motiva uma surra é sempre considerado um mal, aconselha-se um chá para a cura deste mal. E o chá mais recomendado é feito de couro de boi, ou seja, casca de vaca.

As expressões seguintes são provas de que o chá de casca de vaca é muito recomendado como método de educação familiar: Menino e sino só com pancada; Pé de galinha não mata pinto; De pequenino se torce o pepino; Surra grande, meizinha é; Criste e não castigaste? Não criaste.

A frase feita Tomar chá em criança só pode ser facilmente interpretada se chá for o chá de casca de vaca. É a prova da crença de que só tem boa educação quem toma chá quando ainda é criança.

2.29 Fazer Chacrinha

Locução corrente no meio radiofônico, com o sentido de formar grupos para comentar desfavoravelmente os colegas de trabalho.

Embora pareça ser o diminutivo de chacra ou chácara, de proveniência quíchua (chajra), com o sentido de pequena propriedade rural, é mais fácil relacioná-la com o indo-europeu correspondente aos sânscrito chakra, chakkram em malaiala.

O sentido da palavra em sânscrito, chakra=roda, está bem claro na expressão brasileira fazer chacrinha, ou seja, fazer uma rodinha de amigos para fofocar ou bater um papo.

Com o sucesso dos programas televisionados do Chacrinha, Abelardo Barbosa Chacrinha, pretende-se relacionar a expressão com as características dos programas deste artista, com o sentido de promover uma reunião ao mesmo tempo festiva e aparentemente desorganizada, bagunçada. É um uso modernizado da expressão, que é anterior ao aparecimento do Chacrinha.

Embora a palavra chacra ou chácara, de origem quíchua, seja a única forma viva em português, ao menos no Brasil, não é visível a relação entre o seu diminutivo (chacrinha) e a frase feita fazer chacrinha.

2.30. A Sete Chaves.

Sete é um número indefinido, um número que indica grande quantidade e que sempre seduziu a imaginação popular. A expressão fechado a chave ou simplesmente a chave já significa bem fechado. Com o determinante quantitativo, intensificou-se indefinidamente o ato de bem estar.

Como fato real, existiram arcas fechadas a quatro chaves, como a que se encontra no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Cada uma das chaves ficava com um alto funcionário, com o que se garantia a total reserva na responsabilidade do segredo guardado.

2.31 Nem Aqui nem na China

O fato de ser a China um país distante, onde vivem nossos antípodas, deve ter contribuído para fixar a expressão e talvez até para criá-la.

Vejamos estas duas variantes usadas por Drummond: "Isto nunca foi chá, nem aqui nem na Índia." Neste caso, Índia faz associação com chá, que é também chamado de chá-da-Índia. "Isto não é bacalhau à Gomes de Sá nem aqui nem em Macau." Aqui, a rima é um dos motivos da escolha do ponto de referência. No entanto, a grande distância e a posição oposta cultural e geograficamente são fatores muito importantes, visto que é comum pensar que tudo que está em posição oposta deve estar de algum modo invertido.

A China, a Índia e a província portuguesa de Macau se encontram no hemisfério norte-oriental e nós no hemisfério sul-ocidental; quando lá é dia aqui é noite; quando lá é inverno aqui é verão; enquanto aqui é tudo novo e recém-descoberto, lá é tudo velho e milenar. Assim, o que não existe ou não acontece aqui, pode muito bem existir e estar acontecendo por lá.

O que não existe ou não acontece nem aqui nem na China é, realmente, uma coisa muito rara.

Certamente esta frase deve ter surgido logo após as grandes descobertas dos portugueses no Oriente.

2.32. Nem Chus nem Bus

A expressão já é encontrada nos mais antigos documentos da língua, assim como a sua variante nem chus nem mus, que tem maior semelhança fonética com a expressão sinônima não tugir nem mugir.

Além da rima, que caracteriza todas essas expressões, a forma sempre negativa formando dois blocos sônicos metricamente equivalentes fá-las muito semelhantes.

João Ribeiro afirma que buge, bus e mus e muge só podem ser derivadas de basium e bucca.

Como se usam separadamente os elementos chus e bus: "Não dizer chus" e "Não dizer (ou não fazer) bus", compreendo-se que o sentido de chus é o de mais no latim plus, palavra de que derivou. Não dizer chus é não dizer mais, ficar calado.

Bus, no dialeto cigano, é igual a mais. Em castelhano, entretanto, significa beijo.

Como o muxoxo (do quimbundo muxoxu) é uma forma de beijo para indicar negação, desprezo ou desdém, é possível que haja alguma relação entre bus e mus com a palavra basium, conforme lembrou João Ribeiro.

Tugir (falar baixinho) é palavra de origem obscura, enquanto mugir (berrar, gritar) provém do latim mugire. Logo, a expressão nem tugir nem mugir ou não tugir nem mugir se torna bastante transparente, visto que com ela se exige silêncio absoluto.

2.33 Dizer Cobras e Lagartos.

Eugênio Pacheco e Carolina Michaëlis de Vasconcelos acreditavam que cobras, nesta frase feita, é uma forma antiga de coplas; donde dizer cobras significa satirizar ou zombar através de versos de escárnio.

A necessidade de fazer a frase redonda fez juntar-se a cobras, já com o sentido obliterado, a palavra lagartos, criando-se uma expressão simétrica, de quatro mais quatro sílabas.

João Ribeiro acredita, no entanto, que a estrutura desta frase já estava determinada na literatura bíblica, não sendo criada arbitrariamente, como supôs Eugênio Pacheco. Cobras e lagartos corresponde ao texto que é do salmo XC: "sobre o áspido e basilisco andarás", onde áspido e basilisco corresponde, mais ou menos a cobra e lagartos.

Luís da Câmara Cascudo acredita que a origem da frase esteja na imaginação popular, habituada à velha e feroz animosidade dos dois animais, assistida ao vivo ou narrada nos contos populares. Reuni-los na imagem de agressividade verbal seria conservar os elementos antagônicos como expressão viva de debate e guerra, de inferioridade cruel.

De qualquer maneira, o problema da estrutura métrica existe, assim como a rima aparece noutras expressões entre as que estudamos. No mínimo, ela facilitou a conservação da frase.

2.34- A Coisa Está Preta

A cor preta simboliza algumas das piores coisas, entre as quais se encontra o luto.

Segundo Luís da Câmara Cascudo, no entanto, "o luto negro só tomou maior popularidade em Portugal no séc. XVI. Antes o burel (branco) competia com o dó (negro) como cores dedicadas ao luto. Nas antigas missas de sétimo dia quem não possuía preto ia de branco."

Acreditamos ter nascido daí a expressão a coisa está preta, pintadinha de branco. Supõe-se uma situação ainda pior do que aquela em que a coisa está preta, pois carrega o agravante da pobreza, que impossibilitou a compra de um luto, ou seja, da roupa de cor preta.

Costuma-se dizer também que a coisa está ruça, equivalendo a a coisa está preta. Ora, também o ruço supõe o preto e o branco. No mínimo, é um preto desbotado. Tratando de roupa, a cor desbotada supõe um longo uso, e, neste caso de luto, o prolongamento de uma situação muito desagradável.

A coisa, o estado-de-coisas ou a situação está ficando preta quando as pessoas enlutadas começam a se aglomerar. É uma imagem visual do indesejável, do que é ruim.

O preto talvez tenha predominado com o sentido de luto a partir do séc. XVI, conforme vimos, por analogia à situação miserável da escravidão imposta aos africanos negros a partir daquela época na Europa e transportados, posteriormente, para o Brasil.

2.35. Não Dizer Coisa com Coisa

A coerência quanto ao que se faz ou diz só pode ser aferida por comparação. Se o que alguém disse ou fez há algum tempo e o que diz ou faz atualmente não se ajusta, tal pessoa não está dizendo coisa com coisa.

Ao contrário dos modismos que indicam a disparidade ou a extravagância e contradição de objetos que acaso ou a propósito se defrontam, suas formas primitivas são de identificação de coisas que se enumeram seguidamente e aos pares, como coisa com coisa, que dever ser a mais primitiva.

As frases: que tem o cu com as calça? Que tem o cós com as calças? ou que tem uma coisa com a outra? são todas variantes cujo núcleo é coisa com coisa.

Aliás, a própria palavra cós tem alguma analogia fonética com coisa

2.36 Dar uma Colher de Chá

O chá é dado aso doentes, como remédio, mas não apenas uma colher. Uma colher de chá seria insuficiente para curar qualquer tipo de doença. Mas não deixa de ser uma pequena oportunidade, a partir da qual se poderá avaliar a conveniência ou não-conveniência em prosseguir com ajuda.

Quem aproveita uma colher de chá poderá receber mais ajuda. Mas há quem não dá colher de chá a ninguém. E, não dar uma colher de chá, quase sempre é considerado um ato execrando, a menos que a primeira não tenha sido aproveitada.

2.37. Meter a Colher

Meter a colher; meter a colher de pau; meter a colher enferrujada; meter o bedelho; meter o nariz; meter a catana, são variantes da mesma expressão.

Naquelas em que entra a palavra colher não há dúvidas de que a origem está na cozinha. Certamente, isto acontecer quando alguém, assumindo a responsabilidade da execução de um prato, não quis ceder às opiniões ou interferência de outra pessoa. Os determinantes de pau ou enferrujada têm a pretensão de desprestigiar as opiniões emitidas, os palpites dados.

Bedelho é uma carta de pequeno valor nos jogos de baralho. E meter o bedelho é intrometer-se inopinadamente em conversa ou assunto que não lhe diz respeito. Neste caso, o que se leva em consideração é o valor ou o peso da opinião, comparada a um bedelho, que é um trunfo menor.

Meter o nariz não significa uma interferência necessariamente ativa, podendo consistir em olhar de perto e atentamente, quase por mera curiosidade, interferindo passivamente nos negócios ou assuntos alheios. Meter o nariz onde não é chamado é a forma desenvolvida de meter o nariz

Sendo a catana uma espada afiada e longa, usada no Japão no século XVI, quando o vocábulo surgiu em Portugal, houve uma símile entre a espada afiada e a língua ferina. Por isso é que meter a catana tem a mais o sentido de ferir, falando contra alguém ou comentando fatos reprovativos.

2.38 Dar Coluna do Meio

Coluna do meio, na loteria esportiva, é aquela em que se marcam os empates, ou seja, quando não houve decisão a favor de um clube nem de outro.

Generalizada, a expressão passou a indicar qualquer situação em que se espera uma decisão favorável para um ou outro lado e acontece um impasse ou indecisão.

Dar coluna do meio é não haver vencedor, enquanto ser coluna do meio é ser homossexual.

Como os resultados da loteria esportiva, desde os primeiros testes, são anunciados na televisão por uma zebrinha, dar zebra passou a significar um resultado oposto ao esperado.

2.39. Fechar-se em Copas

Magalhães Jr. garante que a expressão teve origem no voltarete, que foi um jogo de cartas muito popular no século passado.

O fato de copas estar no plural é um ponto importante a favor da hipótese de se referir a algum tipo de jogo de cartas. Só não sabemos se seria seguro afirmar é o tipo de jogo de cartas que lhe deu origem.

Existe também a variante fazer-se em copas, com o mesmo significado de guardar um segredo. A origem é a mesma, ou seja, um jogo de cartas em que os naipes de copa são muito importantes para o resultado final do jogo.

2.40. Elevar aos Cornos da Lua

Cornos ou cúspides são as extremidades, em forma de pontas, na região iluminada de um planeta ou satélite. Por sua semelhança visual com a forma dos cornos ou chifres, que são as partes mais elevadas dos animais que os possuem, com raras exceções.

Elevar aos cornos da Lua ou pôr nos cornos da Lua são expressões sinônimas de pôr ou colocar nas nuvens, sendo menos difundidas e menos populares que estas.

Como a Lua é um lugar-comum na poesia romântica, suponho que a expressão tenha uma origem literária, embora desconheça a sua fonte precisa. Além do mais, tanto as nuvens quanto a Lua estão em grandes alturas em relação aos homens. Como as alturas foram sempre os sonhos dos homens, colocar nas alturas é uma forma de elogiar, seja em alturas indefinidas, seja nas nuvens, seja ainda nos cornos da Lua, a romântica Lua dos namorados, dos poetas e dos boêmios.

2.41. Tirar o Corpo Fora

No futebol, de onde deve ter vindo esta expressão, é muito freqüente a ação de tirar o corpo fora para evitar a responsabilidade por um lance arriscado. A diferença é que, neste caso, é o corpo mesmo que se tira fora da direção que vem a bola.

Na situação do jogo é justificável o pleonasmo tirar fora, visto que é a emoção que domina os torcedores e os atletas durante o jogo, principalmente nos momentos de perigo.

A ênfase ficaria na palavra corpo, se o grito fosse tira o corpo! Gritando-se tira o corpo fora! a ênfase se transfere para a palavra fora, sendo que o verbo mal seria ouvido no grito do torcedor.

Generalizando-se o seu sentido, a expressão passou a significar a fuga a qualquer responsabilidade arriscada ou que já teve resultado não satisfatório.

2.42. Ir pras Cucuias

Cucuias é o nome de algum lugar, se não real, ao menos imaginário. Provavelmente, uma região maranhense entre os rios Panamá e Marapi, onde vive um subgrupo dos índios pianocotós denominado de cucuianas.

S e esta é a origem da expressão, corresponde estrutural e semanticamente com ir pra caixa-prego ou ir pra cabrobó, que são nomes de lugares reais, localizados na Bahia e em Pernambuco, respectivamente.

José Pedro Machado, no entanto, aponta origem malaiala para o termo cucuia, que provém do verbo ku) kkuka, que significa bradar ou dar rebate. O grito de rebate, dando sinal de inimigo, ou, entre os navegantes, dando sinal de terra, denomina-se cucuiada, que é uma palavra derivada de cucuia.

Embora não seja fácil a explicação, nesta linha de pensamento, visto que grito não poderia ser um lugar para onde se possa ir, imaginamos um lugar onde haja muitos gritos, um lugar onde o medo e a dor predominam. Aí devem ser as cucuais. Um lugar imaginário. Neste caso a expressão corresponde a ir para os infernos ou ir para as profundezas dos infernos, etc.

2.43. De Cutiliquê

A expressão original, razões de cutiliquê, simplificada em seu determinante, perdeu o sentido primitivo de razões breves ou pequenas.

Cutiliquê origina-se da soletração da abreviatura q) , que se lia ku-til=quê, "... pois esta q tem tão perversa natureza além do mau nome, que se não ajunta às lêteras vogais, se não mediante esta, u, que lhe é semelhante."

Na locução proposta, q) era a abreviatura de que e podia significar o mesmo que razões de cutiliquê ou simplesmente de cutiliquê.

Ainda no século XVI, como se pode ver em Duarte Nunes de Lião, o nome da letra q passa a ter o nome que hoje lhe damos, razão por que a locução se tornou opaca.

2.44. Dar uma de

Dar uma de e tirar uma de são expressões sinônimas, mas não têm a mesma origem. Ambas significam fingir, imitando ou tentando passar-se por. Por exemplo: Dar uma de doido é fingir que está doido, tentar iludir a outrem de que é ou está doido.

Essas locuções se tornarão mais claras quando descobrimos quais foram as palavras que se elidiram.

Na frase feita Dar uma de, a palavra que falta é impressão, donde se vê que a expressão original era Dar uma impressão de.

Tirar uma de proveito da gíria da juventude, onde a palavra onda tomou significados muito abrangentes. Tirar uma onda, ou estar na crista da onda, vieram diretamente dos esportes aquáticos, não sendo difícil formara a locução tirar uma onda de para substituir a sua sinônima dar uma impressão de.

Embora a expressão mais nova já fosse curta, resolveram encurtá-la ainda mais com a elipse do substantivo dispensável, o que é um processo natural que está na deriva da língua.

Aliás, estar na crista da onda, para o surfista, é o mesmo que atirar uma bola a gol, no futebol. A posição em que o surfista é mais admirado por seus torcedores é exatamente na crista da onda. Ora, como as praias cariocas são pontos de lançamentos das modas mais avançadas da costura brasileira, a relação com a moda foi natural. Estar na crista da onda significa também estar atualizado com a moda mais avançada.

2. 45 -Para Dar e Vender

Observe-se que o que se tem para dar não é para ser vendido, nem deve ser dado o que é para ser vendido. O que se tem para dar e vender, no entanto, é o que se tem em grande quantidade.

Embora não tenha nenhum mistério, esta expressão é interessante pela sua estrutura. São dois vocábulos que se opõem quanto ao sentido e se ligam por uma aditiva, indicando fatos que se somam.

Há inúmeras frases feitas com esta estrutura. Por exemplo: para o que der e vier; não feder nem cheirar; dizer cobras e lagartos; nas idas e venidas; sem eira nem beira; por locas e bibocas; com uma mão atrás e outra adiante; sem pé nem cabeça; sem tirte nem guarte; sem mugir; quem te viu e quem te vê; etc.

Em muitas dessas expressões, pode-se retirar um dos termos sem dificultar o entendimento do sentido. Foi um simples acréscimo para arredondar a locução, como vimos ao estudar a expressão dizer cobras e lagartos, em 2.32.

2.46 Ficar Cheio de Dedos

Há dois aspectos interessantes a observar nesta frase feita: o uso da expressão cheio de e o significado de dedos.

Não é pequeno o número de frases feitas que começam com cheio de, onde este adjetivo significa excesso ou abundância.

Vejamos: cheio de chove-não-molha; cheio de frescura; cheio de história; cheio de ipisilones; cheio de merda; cheio de n ove horas; cheio de si; cheio de vento; etc.

Dedos, além de instrumentos de trabalho, são os principais instrumentos de defesa do ser humano. O medo ou o susto são capazes de nos fazer armar psicologicamente de muito mais dedos do que os que possuímos, como um caranguejo acuado.

Ficar cheio de dedos é uma descrição desse nosso estado de espírito que assim se arma quando nos sentimos ameaçados.

Não é por acaso que as pessoas, quando se sentem nervosas, movimentam os dedos descontroladamente, como estes estivessem maiores que o normal ou como se houvesse alguns dedos em excessos.

2.47. Dia de São Nunca de Tarde

A locução normal é dia de São Nunca. O acréscimo do circunstancial de tarde é uma tentativa de adiar ainda mais a idéia deste dia nunca chegará.

A marcação do calendário popular está sempre relacionado com o calendário litúrgico ou com a realização de alguma coisa extraordinária.

É deste costume que surgiram expressões como desde o outro carnaval ou até o outro carnaval; no dia que o macaco deu bom dia; no dia que a galinha nascer dente e, também, dia de São nunca, que deveria estar no calendário litúrgico.

Como existe um Dia de Todos os Santos, dia 1º de novembro, costuma-se dizer que este é o dia de se pagarem as dívidas que ficaram para o Dia de São Nunca. Mas, como não existe este santo, a dívida continua sendo adiada.

2.48. Vá para o Diabo que o Carregue

Nesta construção houve um cruzamento de duas frases feitas preexistentes: vá para o diabo que o carregue. Por sua vez, vá para o diabo deve ser uma variante de vá para o inferno, visto que diabo nunca foi lugar para onde se possa mandar alguém. Do mesmo modo o diabo que o carregue, no mínimo, é uma inversão da frase normal, que deveria ser que o diabo o carregue, como é normal a construção de optativas.

Vá para o diabo que o carregue deve corresponder à idéia de que o amaldiçoado seja levado para o inferno pelo diabo. Ou seja vá para o inferno e que o diabo o carregue para lá.

As variantes desta natureza são inúmeras. Vejamos: mandar para o diabo; mandar para o diabo que o carregue; que o leve o diabo; diabos o levem; ir para a casa do diabo; etc.

2.49 Acabou-se o que Era Doce

Como toda criança gosta de doce, essa expressão deve corresponder a uma forma disfêmica de negar às crianças aquilo que elas pedirem. Esta deve ter sido a origem da expressão. É menos agressivo alegar que o objeto solicitado não existe do que negá-lo pura e simplesmente com um não.

Variante sintética muito comum é o já era. Um pouco menos, aparece o era uma vez, nascido dos contos populares e das histórias infantis.

Acabou-se o que era doce corresponde a acabou-se o que você queria. O doce como sinônimo de coisa saborosa e desejada parece constantemente nas músicas populares, nas conversas românticas de namorados, não estando muito afastado nem mesmo da fraseologia. Vejamos alguns casos: dar os doces; dar um doce se acertar; quando serão os doces? ser um doce; etc.

A sabedoria popular nordestina registrou a excelência indiscutível do doce neste provérbio: não há doce ruim nem cabra bom.

Continuação - 2.50 Dose para Leão