Carta[1] dirigida ao governador e capitão-general João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres [sobre os aldeamentos dos índios guaicurus e a escravização que estes fizeram com duas negras fugitivas de uma rebelião de escravos numa fazenda dos arredores de Cuiabá] por Alexandre Rodrigues Ferreira. 1791.

 

Ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor[2] João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, Alexandre Rodrigues Ferreira, em carta de 5 de maio de 1791.

Quanto ao gentio, persuado-me que pode V. Excia. aceitar as devidas felicitações, pelo vantajoso princípio que tem dado o sargento-mor Joaquim José Ferreira ao importante negócio da redução do guaicuru; redução em que tão grande serviço faz ele a Deus, como a Sua Majestade e ao bem público. A Deus pelo considerável número de almas que, mediante o batismo, podem ser chamadas ao grêmio da sua igreja; a Sua Majestade, por mais aqueles vassalos que reduz à sua obediência, antes que contra nós os revoltem os espanhóis, que em toda a parte são muito maus vizinhos; ultimamente ao bem público, pela segurança e liberdade do comércio [interno] e da navegação mercantil desde os portos[3] de beira-mar para estas minas.

Porque, suposto que além daquele gentio, outros muitos infestam as margens destes rios, como são os guanaãs[4], paiaguás, quatós, coroiás[5] e outros, contudo de entre todos eles, os guaicurus são, sem dúvida, os mais audazes e belicosos. Com eles estão aliados os guanaãs; os paiaguás por temor que lhe têm, cuidam muito em lhes não desmerecer a sua amizade. Todos os mais cotidianamente são presas suas, que eles reduzem à escravidão.

Ali tive o gosto de vê-los, quando cheguei, que eram onze por todos, entre seis homens e cinco mulheres. No número dos homens, vinha incluído um cacique seu, que entre eles se chama Caimá e, entre nós, João Qucima d'Albuquerque, o qual vinha acompanhado de uma formosa tapuia, sua mulher, então denominada D. Joaquina Ferreira de Albuquerque. E de si dizia o referido cacique, que era governador geral de todo o guaicuru. a esse tempo o tinha o sargento-mor fardado de encarnado, para o pôr nos termos de ser decentemente apresentado a V. Excia., quando for servido condescender com o gosto que disso mostra aquele cacique, para, das mãos de V. Excia. receber (diz ele)[6], o bastão de chefe da sua gente. Ficava da mesma sorte vestida sua mulher e toda a mais comitiva, proporcionalmente à representação de cada pessoa; e todos uniformemente dizem que querem aldear-se nas margens deste rio, segundo se exprime uma negra crioula nossa, que eles cativaram quando rapariga e presentemente serve de língua. É incrível a voracidade com que comem; se bem que nada tem de bárbaras as maneiras com que, à mesa do sargento-mor, se comporta aquele cacique. Em uma palavra, está aquele negócio nos termos de ser por V. Excia. dirigido e ampliado do modo possível, ficando V. Excia. na certeza de que a nenhuma cautela se poupa o sargento-mor, principalmente tratando ele com uma qualidade de gente que, em seus sinistros projetos, sabe constantemente guardar a insidiosa máxima de um impenetrável segredo e uma refinada dissimulação. Sabe Vossa Excia. que não de outra sorte se reduziram os muras, que infestavam as margens do Amazonas, Solimões e Madeira; no que fez S. Excia. o Sr.[7] João Pereira Caldas um tão aceito serviço, que das reais mãos de Sua Majestade têm os referidos muras recebido uma significante prova de sua liberdade.

Sabe que este tem sido, em todos os tempos, o principal objeto de suas reais ordens e recomendações e, ultimamente, sabe que esta é a paixão favorita do iluminado ministro da repartição de ultramar.

E porque, tendo falado deste gentio, que eu ali vi e observei, e de quem me deu uma exata informação o reverendo capelão do presídio, João José Gomes da Costa, que pessoalmente tinha ido visitá-lo aos seus alojamentos. Não será fora de propósito dar eu dele a V. Excia. uma circunstanciada relação.

muitos anos que ele costuma infestar as margens dos rios Cuiabá, São Lourenço ou Porrudos, Paraguai, Embeleteú[8] ou Mondego, Taquari e Cochim e até, ultimamente, infestou as de Camapuã. Do que não tem deixado de receber graves danos, tanto as canoas de comércio que navegam por aqueles rios, como alguns estabelecimentos nossos, que nele temos experimentado de uns por outros anos, as suas costumadas hostilidades.

Comandava aquele presídio o sargento-mor Marcelino Rodrigues Camponês quando, na manhã de 6 de janeiro de 1779 praticavam eles com 54 praças da sua guarnição, a perfídia de as convidarem para uma permutação mercantil de alguns cavalos e carneiros que trouxeram. E depois que as viram fora da estacada, desarmadas, como se elas puseram e baralhadas com eles, quase à vista do comandante, aleivosamente as assassinaram e se retiraram impunes. De então para , parece que se recearam de castigo. Sim, algumas mortes têm feito nas vizinhanças do mesmo destacamento; porém em todas elas deve-se igualmente culpar da nossa parte a facilidade e o descuido; por que eles o mais que têm feito, é aproximarem-se a nós e observarem-nos a seu salvo, quando podem; porém nunca jamais se-nos dirigiram debaixo de outro algum pretexto senão, ultimamente, que as circunstâncias emergentes facilitaram de parte a parte uma acautelada comunicação.

Tendo ali chegado a 17 de dezembro do ano próximo passado, o referido sargento-mor Joaquim José Ferreira não deixou de reparar que, depois da sua vinda, nem um deles aparecia. Suspeitou que talvez teriam os espanhóis urdido com eles algum estratagema contra nós e, querendo tirar-se daquela dúvida, tomou o expediente de lhes enviar uma escolta e, pelo cabo dela, mandou falar aos caciques, protestando-lhes a sua amizade e pedindo-lhes que [lhe] viessem falar. Com efeito receberam bem aos soldados e os agasalharam melhor; deram-lhes uma rês para comerem e, despedindo-se o cabo, por ele responderam ao comandante que cedo iriam visitá-lo, como lhes pedia. Contudo não o executaram tão prontamente, que não concebesse ele segunda suspeita, de ter sido paliativa a sua resposta; de maneira que não sossegou, sem lhes enviar segundo recado. então, mandaram visitá-lo por três escravos, que voltaram bem comidos e vestidos, pelo que se resolveu a vir pessoalmente o cacique Caimá, acompanhado de três soldados seus e dous escravos. Conduzido à presença do comandante, vinha tão assustado, que nem falar podia. Porém, tanto que se tranqüilizou o seu espírito com as boas palavras que lhe ele[9] disse e com os donativos, que lhe fez, levantando-se em o cacique e abraçando-o muito estreitamente, lhe disse de uma voz arrogante: "Amigo Caimá!"

Repetidas vezes se tem ido aos seus alojamentos e, na carreira de os conduzir e reconduzir, ainda o soldado Antônio Batista da Silva, que é o que mais ele[10] lhes caiu em graça, por se acomodar aos seus gestos e maneiras. Tanto se têm eles familiarizado com a nossa gente, que até consigo trazem as suas próprias mulheres. Porém, mostram um tão grande zelo da fidelidade conjugal, que em nenhum caso e por nenhum motivo se apartam delas, ou seja, que se eles queira lavar, ou que vão passear, caçar, pescar. Em uma palavra: para qualquer parte que vão, e façam eles o que fizerem, a mulher acompanha fielmente a[11] seu marido. Aquelas mesmas operações naturais, que sem um recíproco pejo e grande incômodo dos sentidos, se não podem fazer de companhia, e que, por essa razão, entre nós, cada um trata de as recatar quanto pode, eles as fazem na presença um do outro. E o mais é que, sem de parte a parte se mostrar o menor sinal de ressentimento. Triste condição dos homens que, como diz um filósofo, são animais de costume e quanti, quanti sunt, educatione debentur.

De uma daquelas vezes que se-lhes dirigiu, de ordem do sargento-mor, uma escolta nossa de 45 praças, resolveu-se a acompanhá-la o sobredito padre João José Gomes da Costa, que o que entre eles viu, fielmente mo[12] comunicou. Saiu a 13 de fevereiro próximo passado e, tendo navegado água abaixo dous dias e meio de viagem, desembarcou em um porto da margem oriental do rio, onde montou a cavalo e seguiu viagem pela terra dentro, cousa de 14 de légua[13], e ali achou o primeiro alojamento. Dali marchou oito léguas à leste, até onde estava o segundo, que se denominava dos Guanaãs. Andadas mais cinco léguas ao mesmo rumo, chegou ao terceiro, que era dos guaicurus.

 

Guanaãs

Pouca diferença têm dos guaicurus, de quem são vizinhos, amigos e aliados. Casam entre si e, reciprocamente, se auxiliam sempre que assim o pede alguma urgência pública ou particular. Porém não se arrancham em tijupares, como ele[s]. Antes, dão às suas palhoças uma figura oval, com as cumeeiras muito altas e todas elas cobertas desta espécie de grama, que por aqui se chama sapé. Também são menos ociosos que eles, porque fazem roças onde plantam milho, feijão[14], batatas, canas etc.[15] Algumas frutas cultivam, principalmente papaias ou mamões; bananas, abóboras, melancias e, quando chega o tempo da colheita do arroz bravo, fazem a esse fim diversas excursões pelos lagos e pantanais onde se ele cria. São grandes criadores de cavalos; e nisto se conformam com os guaicurus. De algumas palavras que proferem, evidentemente se conclui[16] que a sua língua primitiva foi a geral do Brasil; porém eles a têm desfigurado de maneira que, para distinguir-lhe as feições não basta uma mediana perspicácia. De Deus e da religião cristã, algum conhecimento mostram ter. E um deles, que foi ao presídio, vendo uma imagem de Cristo, a beijou. Provavelmente, assim viu fazerem os espanhóis, com quem se comunicam e de cuja língua proferem algumas palavras, como são capitán, cristiano, cristianista, Santa Cruz etc.

 

Guaicurus

O quam contenta res est homo nisi supra umana se evexerit.

Habitam os terrenos que formam a margem oriental do rio Paraguai, pelo dilatado espaço de quase cem léguas, que correm nortesul desde o rio Mondego ou, por outro nome, Embeteteú[17], até a margem boreal do Ipané, compreendendo-se, entre estes, outros muitos rios, que são o Mboimboi, o Iereri, o Guac[o]ri[18], o Tepoti, o que parece ser o rio das Correntes, o Barrique ou Mboeri, o Piraí e o Cambanupá. Todos deságuam no Paraguai, para cuja margem ocidental atravessam os guaicurus no tempo da vazante por diferentes passagens que então lhes facilita o rio; sendo que, de todas elas, tão somente duas conhecemos: a primeira, na distância de quatro léguas abaixo do sobredito presídio[19]; e a segunda, defronte da foz do Piraí. Tem alentados homens entre si, os quais, com todo o conflito, sabem manejar destramente as faculdades ativas da natureza. De todos quantos vi, nenhum tinha de altura menos de 8 palmos e meio. Setenta polegadas contava o cacique Caimá, que é dos mais altos tapuias que até [a]gora tenho visto. Porém, todos eles eram igualmente espadaúdos [e quadrados, com os peitos largos e fornidos], o ventre plano, o dorso e os braços musculosos. A sua vida é de corso, tanto em terra como pelos rios, com a diferença que, em terra, andam montados a cavalo, donde lhes vem o nome de cavaleiros, e, pelos rios, navegam em ligeiras canoas, que remam com incrível celeridade. Tem cada remo seu, dezoito palmos de comprimento, a saber: seis de e doze de haste pont[i]aguda, para lhes servir de remo e de lança.

Não se ocupam em construir palhoças, como os guanaãs; se bem que alguns alojamentos têm que são fixos, e eles vão situá-los nas serras circunvizinhas, quando, com a enchente do rio, se inundam as campanhas adjacentes. Servem-lhes de quartéis de inverno, para onde se retiram os decrépitos, os inválidos, as mulheres pejadas e as paridas que têm de criar a seus filhos. Tudo o mais, pelo tempo de verão, são alde[i]as errantes, que se estabelecem onde favorece o tempo e o lugar. Ali se abrigam debaixo de tijupares de esteiras de periperi, horizontalmente estendidas. Todos dormem no chão, sobre couros de boi [ou] peles de onças, de veados, porcos do mato e ariranhas, coberto cada um com um grande cobertor de pano de algodão listrado, de branco, vermelho escuro e negro. Recolhida uma turma a um tijupar, os casados dormem a uma parte[20] e os solteiros a outra. Ajuntam-se em matrimônio como os animais, voltando a mulher as costas a seu marido. Todos são polígamos, se bem que comumente cada homem não tem mais de três até quatro mulheres. O marido não leva a mulher para o seu tijupar; ela fica, como estava dantes, em companhia de seus pais, onde o marido a procura e a sustenta do que lhe leva. Ora, como eles andam vagando de uns para outros alojamentos, em cada um deles tem cada marido uma mulher, a quem leva o que caça ou o que pesca. Amam-se ternamente. E os maridos, como disse, zelam quanto podem, a fidelidade conjugal. Com o mesmo afeto e ternura amam as mães os primeiros dous até três filhos e guardam-nos como as meninas dos seus olhos. Porém, em concebendo mais, lembram-lhes vivamente os trabalhos que os filhos têm de dar e passar, para se conduzirem da infância à virilidade; e a impressão daquela lembrança sufoca a voz da natureza e faz as mães insensíveis às mais vivas emoções do amor materno. Porque, então, o mais seguro expediente de as mães se livrarem a si da mortificação de pari-los e de criá-los; e a eles, de, em toda a sua vida, passarem pelas necessidades e trabalhos que consigo traz a vida selvagem, é o de abortá-los logo que os sentem gerados. O regimento da mulher pejada consiste em comer pouco; e a razão é (dizem elas) que, para não crescer muito o feto e com o seu volume dificultar o parto. Aproximando-se este, tem o marido o cuidado de prevenir para sua mulher uma pequena palhoça, bem reparada do ar. E nela se ajuntam as parteiras que, tudo quanto executam da sua arte de partejar consiste em comprimir-lhe o ventre e ajeitá-lo de modo que se-lhe facilite o parto.

Também estes gentios desenham na pele diversas listras e figuras, pintando a face de urucu, de tabatinga e de jenipapo, que é o com que tingem[21] de preto as mãos e os pés, os lábios e as orelhas. E como todos andam a cavalo, tanto homens, como mulheres, cada mulher traz em uma perna um sinal, que é o da marca do seu cavalo. As mulheres são geralmente bem feitas, de pequeno e delicado. O mais comum é andarem nuas, cobrindo as partes vergonhosas com umas ligeiras tangas[22]. Outras andam enfaixadas com um longo cobertor de pano de algodão listrado, que lhes cobre os corpos desde os peitos até meia perna. Todas, enquanto solteiras, têm a parte anterior da cabeça povoada de cabelo descido sobre a testa, como as donzelas inglesas, e pela posterior o tem curto, porque o cortam. As casadas trazem a cabeça rapada, deixando-lhe na parte anterior tão somente um topete longitudinal que, pela sua posição e figura, representa a crista de um mutum. Servem-lhes de navalhas, com que rapam as cabeças, as conchas fluviáteis, que são os instrumentos cortantes, de que originariamente se servem. Uns e outros nem mais um cabelo consentem em seus corpos. Tudo arrancam. Até as mesmas pestanas e sobrancelhas.

Postos a caminho, os homens marcham nus como andam. Uns montados em pêlo e recuados para as ancas dos cavalos, e outros, em lombilhos que fazem de dous pequenos feixes de grama atados um ao outro, para servirem de suadouros, sobre os quais costumam estender primeiramente uma esteira de folhas de palmeira e, em cima dela, alguma pele de carneiro ou de veado, ou algum couro de boi. Este é o seu pelego, como dizem os espanhóis americanos; é a sua cama e a sua pelota, onde embarcam os móveis, que se não devem molhar, quando atravessam algum rio ou lagoa. Como a referida pelota é o mesmo couro ajeitado ao feitio de um barco, em que se pode[23] transportar o seu trem, embarcado ele, assenta cada qual sobre a sua carga a[24] seu filho e, puxando por ela, ou a nado ou de cavalo, a conduz para onde quer. Para a mulher poder montar, é ajudada por seu marido que, pregando-lhe com a mão direita no artelho do esquerdo, em seu pulso lhe oferece o estrivo[25], em que ela se firma, para se pôr a cavalo, sobre algum lombilho; e ela, estendendo as pernas a procurar as espáduas do cavalo, o conduz tão destramente como qualquer homem, mediante um simples barbicacho de cordão de fio de algodão, ou simples ou entretecido com ou cabelo, servindo-lhe a extremidade do cordão de chicote, com que o fustiga.

A abundância que os guaicurus têm de cavalos, uns criados por eles e outros furtados aos espanhóis, faz com que nenhum um passo, que nãomontado. Esta é a sua principal criação; que o que eles têm de gado vacum e ovelhum é cousa muito insignificante. Também criam [perus], galinhas [etc.]; porém delas não comem senão os ovos; e a maior parte deles depois de terem pintos. A palmeira mocajuba lhes subministra o principal sustento: comem-lhe o palmito e os coquinhos[26], ou crus, ou assados, ou cozidos. O mesmo âmago da referida palmeira, quando nova, lhes serve de alimento porque, sendo ele suculento e doce, ou o chupam, como se faz à cana de açúcar, ou o assam ou o reduzem a farinha, para a comerem seca ou cozida. Ela lhes serve de pão, que, de conduto, servem as cobras, os jacarés, onças, veados, antas, capivaras e tudo quanto caçam ou pescam. As mulheres casadas não comem anta nem capivara.

De entre todos os seus bens, os que eles mais apreciam são os seus escravos, as suas armas e os seus cavalos. Sabe-se, pelo que deles transpira sobre a sua conduta com os escravos, que estes são humanamente tratados por seus senhores. Nós os chamamos bárbaros; porém eles, nesta parte, não desonram tanto a humanidade, como as mais polidas nações da Europa que, sem embargo de terem a razão exercitada pela filosofia e iluminada pela revelação, em se estabelecendo na América, parece que de propósito escogitam os meios de fazer mais pesado o jugo da escravidão dos negros. Porém, o certo é que, quanto menos interessados os senhores, tanto mais humanos são e mais indulgentes com os escravos. Nenhuma cousa há tão rara, como ver contentes o interesse e a avareza. Os guaicurus não a têm e, conseqüentemente, não tratam de enriquecer-se à proporção do trabalho de seus escravos. Tratam-nos[27] indulgentemente. Comem com eles. E[28] cada senhor se contenta de que, como tal, o reconheça o seu escravo. Eis aqui a mais dura pensão que entre eles tem o cativeiro; que as ociosas distinções que fazem as nossas constituições políticas são, felizmente, desconhecidas de semelhante qualidade de senhores.

As suas armas de tiro são as suas frechas. Dizem que também usam de bolas e de laço. Para combaterem de perto, usam de lanças e de porretes. Alguns terçados têm, havidos dos espanhóis por via de comércio. De entre os brancos ou negros, que por desgraça sua lhes caem nas mãos, se algumque lhes mereça quartel, são tão somente as mulheres e as crianças. Raros são os homens que gozam de semelhante graça. Comumente os degolam despois de mortos, para de suas cabeças fazerem os seus troféus. De muitas tiranias destas poderia eu referir muitos exemplos. Porém, neste caso, a história desta pequena parte do gênero humano seria a história da desumanidade, de trucidações, de ódios e de horrores.

Quanto à religião, diz a referida crioula, que eles trazem por língua[29], que o que neles tem visto é, em certos tempos do ano, fazerem um baile festivo em honra do Sete Estrelo. Das cerimônias e práticas religiosas que constituem a superstição deste baile e, semelhantemente, da música instrumental e vocal, são encarregados os seus médicos, que servem eles mesmos de cirurgiões, de filósofos e de estadistas das suas tribos. A medicina, entre esta casta de gente, é a arte de adivinhar. Os seus médicos, pelo que respeita às enfermidades internas, de que não conhecem as causas são uma[s] espécie[s] de mágicos, que da ocasião da aflição e dos temores quiméricos em que eles mesmos constituem os minguados espíritos dos enfermos, sabem aproveitar-se destramente para lhes inspirarem uma confiança cega na eficácia dos seus encantos e na certeza das suas predições. A cirurgia não é tão embusteira como a medicina. Sabe-se que freqüentemente praticam a amputação, a sucção e o cautério, e que a diversas feridas e chagas aplicam eles diversas ervas, raízes e gomas com que ao menos paliativamente remedeiam até os mesmos bubões e úlceras venéreas, de que hoje[30] estão infetados. É certo que, sendo a queixa grave, vem finalmente a morte a triunfar da impostura; mas, nem ainda nesse caso, cessa a influência de seus embustes, porque, demitindo logo o assistente o emprego que exercitou, de médico, investe o ministério de sacerdote e, como tal, é o que dispõe o enterro e os ofícios sepulcrais. Estendido o cadáver, pinta-se-lhe a face de urucu, de tabatinga e de jenipapo e, amortalhado ele em o seu cobertor, traz-se-lhe o seu cavalo, onde monta algum parente do defunto e o leva reclinado ao seu peito. Marcha igualmente montado o concurso que o acompanha e, sendo cacique o defunto, não fica vassalo seu que lhe não tribute naquela última demonstração de amor e de respeito, consagrando-lhe a nação inteira toda a qualidade de lágrimas eqüestres[31] e plebé[i]as. Chegados ao lugar destinado para as sepulturas dos mortos (que é um grande tijupar que serve de cemitério) abre-se, com paus agudos, uma cova de 6 [até] 7 palmos de altura, para não ser o cadáver facilmente desenterrado pelas onças; e, estendida uma esteira no fundo, sobre ela se deita ao comprido o cadáver, cobrindo-o de terra fofa e sem ser calcada, até encher-se a cova, que também por cima se cobre com outra esteira. Finca-se-lhe à cabeceira uma forquilha, onde se-lhe deixam dependuradas as suas armas, os seus móveis e utensis domésticos. Perto da sua sepultura se abre outra para o seu cavalo, que a recompensa que ali recebe de ter servido ao defunto é a de ser morto a lançadas, para continuar a servi-lo[32] no outro mundo. Segue-se o luto dos parentes que, enquanto estão enojados, por 6 até 8 dias, não saem de dentro de suas palhoças. As mulheres se deixam estar sentadas com as cabeças cobertas. Não comem, não se lavam nem se pintam. Tudo ali são lágrimas e outras demonstrações de tristeza.

Poucos velhos tem visto a nossa gente, de todas as vezes que tem ido aos seus alojamentos; porém muita criança e homens de armas. Também se-lhes viram dous negros e três negras que, uma delas, é a sobredita crioula Vitória, a qual era, em outro tempo, cativa de D. Ana de Morais, assistente na vila do Cuiabá, e deles foi cativada, sendo ela roubada de uns negros[33] seus parceiros, que mataram seu senhor e desceram fugidos pelo Paraguai, onde caíram nas mãos dos guaicurus, que a todos eles mataram e tão somente a ela e a uma irmã sua concederam a vida e a reduziram à escravidão.

Da boca do canal de fora da lagoa da Uberava, em viagem pelo rio Paraguai, aos 5 de maio de 1791.

 


[1] Chamaremos de A, nas notas seguintes, o códice 21,2,39,10 e de B o códice 21,2,39,4 da Biblioteca Nacional. Por economia, colocaremos entre colchetes tudo o que ocorrer no códice B.

[2] B substitui “Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor por Governador e Capitão-General”.

[3] B: “dos pontos por desde os portos.

[4] B apresenta sempreguanaãsporguanãas”.

[5] B: “coraiás” porcoroiás”.

[6] A tem aqui uma conjunção "que", absolutamente desnecessária.

[7] B: “o Governador e Capitão-General” porS. Excia. o Sr.”

[8] B: “Embeleten” por “Embeleteú”.

[9] B: ele lhesporlhe ele.

[10] Este pronome reto constitui hoje um pleonasmo desagradável.

[11] B:”é fiel satélite deporacompanha fielmente a”.

[12] B: “a viagem que fez, fielmente ma” poro que entre eles viu, fielmente mo”.

[13] Não seria 1/4 de légua?

[14] B omite “feijão.

[15] Em B se consegue ler cana,” registrando-se uma lacuna onde A registrou cana etc.”

[16] B: “conheceporconclui”.

[17] B: “Embetetu” por “Embeteteú”.

[18] B: “Teveri, o Guac[o]ni” porIereri, o Guac[o]ri”.

[19] B: presídio da Nova Coimbra” porsobredito presídio.

[20] B omite escuro e negro. Recolhida uma turma a um tejupar, os casados dormem a uma parte

[21] B: “tinhamportingem”.

[22] B: “com ligeiras tangas tão somente as partes vergonhosas” poras partes vergonhosas com umas ligeiras tangas”.

[23] B omite “pode”.

[24] B omite esta preposição a.

[25] B: estribo porestrivo”.

[26] B: “coquilhos” porcoquinhos”.

[27] B: alheio. Trata-os” porde seus escravos. Tratam-nos”.

[28] Aparece aqui, no códice A, o pronome eles.

[29] B omite que eles trazem por língua.

[30] B: “venenosas, de que todos eles porvenéreas, de que hoje”.

[31] B: “ilustrespor eqüestres.

[32] A: “o continuar a ser visto porcontinuar a servi-lo”.

[33] A acrescenta aqui seus parentes.