EDIÇÃO DO "CODEX UNICUS"

DAS QUESTOENS APOLOGETICAS

 

 

 

 

  José Pereira da Silva

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

 

 

 

 

DEFINIÇÃO E OBJETIVOS

          Pretendemos fazer aqui a síntese do que mostramos em nossa dissertação de mestrado, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1987, que constituiu, basicamente, na edição diplomático-interpretativa do códice 7,1,19 da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, único exemplar conhecido das Questoens Apologeticas(1).
          O documento, de longo título, é de grande importância para a história política e religiosa da Amazônia, mostrando concretamente, com a ansiedade de quem está correndo o risco de ser condenado, que o seu poderosíssimo governante não pode desejar aquilo que dele está exigindo.
          O seu tema principal é o aspecto mortal da imposição da língua portuguesa aos índios do Pará através da catequese, em cujo desenvolvimento o autor faz uma profunda análise dos artigos do Directorio dos Índios(2) que tratam da catequese e da educação dos índios através dos missionários e párocos. Na interpretação dos representantes do Marquês de Pombal, os missionários teriam de catequisar os índios em português, mesmo se eles não entendessem nada do que lhes fosse ensinado.
          O título sinótico dispensa explicações sobre o seu conteúdo: QUESTOENS APOLOGETICAS enucliadas e dirigidas a mostrar que em nada peca o pároco que, na língua vulgar dos índios os instrui espiritualmente, não sabendo eles nem entendendo a portuguesa, que, por ordem real, se-lhes deve introduzir; nem o que persuade as índias à compostura de calçado e manto ou mantilha, e à reforma juntamente de suas camisas decotadas, nem o que disser que prega o que o Espírito Santo lhe dita e nem o que, na igreja, repreender alguém em particular por causa pública.
          Esse manuscrito é a versão portuguesa, reduzida ou simplificada, do texto latino que constituiu a peça de defesa do autor perante o Tribunal da Inquisição, ao qual havia sido acusado e incriminado por ensinar a doutrina cristã aos índios na língua vulgar deles, apesar de ser entendida por eles a língua portuguesa.
          As Questoens Apologeticas constituem o mais volumoso e consistente documento histórico sobre a imposição da língua portuguesa aos indígenas brasileiros. Por isso é que fizemos dele uma edição diplomático-interpretativa(na terminologia de Segismundo Spinu) (3), com a qual facilitamos os trabalhos dos historiadores sem prejuízo para o trabalho dos lingüistas e filólogos.
          Situada no auge da fase pombalina de nossa história, a obra destaca a figura dos governadores Francisco Xavier de Mendonça Furtado (irmão do marquês de Pombal) e Fernando da Costa de Ataíde e Teive (sobrinho do marquês de Pombal), do Bispo D. Fr. Miguel de Bulhões, do Inquisidor Dr. Geraldo José de Abranches e do Vigário Geral e Visitador Pe. Dr. José Monteiro de Noronha, os mais fiéis companheiros do seu partido.
          Mas, apesar de estar, aparentemente, afrontando os poderes constituídos e apesar dos rigores da Inquisição, este documento é uma peça que convenceu as autoridades quanto à justeza e santidade das doutrinas e princípios que o seu autor defendia contra as políticas oficiais. Com esta defesa, o autor não só foi absolvido das acusações que lhe foram feitas, mas ainda não foi premiado com uma paróquia de índios e de elogios ao conteúdo de sua obra, que consiste na bem fundamentada solução apresentada às seguintes questões entre outras.

  1. Em que língua deve o pároco instruir aos índios que à sua direção espiritual estão cometidos?
  2. Os primitivos párocos, que foram os Santos Apóstolos, instruíram e língua vulgar às suas ovelhas?
  3. Depois dos Santos Apóstolos, outros quaisquer têm instruído paroquialmente aos índio com a mesma liberdade de línguas?
  4. E verdade que prego aos índios e os instruo espiritualmente em sua língua vulgar?
  5. Ainda agora e daqui por diante, pode e deve o pároco instruir aos índios em a língua vulgar deles?
  6. Pecam os párocos contra a Lei de Deus, instruindo aos índios, seus fregueses, em a língua vulgar deles?
  7. Peca o pároco contra a Igreja Romana, instruindo aos índios em a língua vulgar deles?
  8. Peca o pároco contra as determinações dos prelados diocesanos, instruindo aos índios em a língua vulgar deles?
  9. Peca o pároco contra o nosso Rei, instruindo aos índios em a língua vulgar deles?
  10. Peca o pároco, ensinando em a língua vulgar, havendo necessidade, o padre nosso, a ave maria, o credo, os atos teologais, os da contrição e atrição, o preâmbulo da confissão, os mistérios divinos, os sacramentos, os preceitos de Deus e da Igreja e, ainda o sinal da cruz?
  11. Para responder a estas questões, computamos 1940 linhas, sendo que mais da metade das quais constitui a questão número 9, que trata da obediência ao Rei no que diz respeito à imposição da língua portuguesa aos índios. Quanto aos demais assuntos tratados, respondendo a mais oito questões, pouco interesse Têm para os estudos lingüísticos, a não ser a própria forma do texto.

ATRIBUIÇÃO DE AUTORIA

          O manuscrito não traz o nome do autor nem marca alguma de que o identifique. Mas, apesar de ser um nome absolutamente desconhecido, esperamos ter provado que ele é o Pe. Manoel da Penha do Rosário ou, conforme sua biografia castelhana, Pe. Manoel de la Peña del Rosario, da Ordem de Nossa Senhora de Mercês.
          Como faltam os códices as suas primeiras 139 folhas, acreditamos que tais e folhas constituiriam o texto latino, perdido juntamente com a folha de rosto e todas as informações que deveria trazer quanto à autoria, à datação, etc.
          Foi uma casual referência à Igreja de Mercês de, de Belém, determinada com o possessivo "nossa", que nos levou à descoberta do autor. Sabendo que a dita igreja pertencia aos Mercedários, passamos a investigar as biografias de todos os padres dessa ordem que pudessem ter vivido naquela região na segunda metade do século XVIII. Descoberto o Mercedarios Ilustres, do Frei Guillermo Vásquez Núñez, publicado em Madri em 1966, lá encontramos o que buscávamos, o "Venerable Padre Manoel de la Peña", falecido por volta de 1970. O confronto dessa biografia com os dados internos do texto, apesar de escassos, é suficiente para provar que o autor das Questoens Apologeticas é o Pe. Manoel da Penha do Rosário, português de nascimento e pertencente à Ordem das Mercês.

A escassez do espaço não nos permite refazer este confronto. Mas, vá lá pelo menos um:

Que não faltou quem impugnasse suas doutrinas; porém, à imitação do Beato Alano, escreveu uma apologia com 104 questões teológicas e suas respostas. E em dois manuscritos, um latino e outro português, trata da santidade destas doutrinas, com cujo trabalho triunfou de seus êmulos.

(Vásquez Núñez, p. 623)

Logo no início do § 89 da Questoens Apologeticas podemos ler o seguinte:

Até aqui tenho questionado para mostrar que não peca o pároco que pela língua vulgar instrui aos índios, havendo necessidade, e para me defender da censura com que se-me reprova o tê-lo feito.

(cf. linhas 1936-41).

Dirigindo suas respostas aos "contrários" e "contradicentes", a eles se refere dezenas de vezes como seus censores.

          Sobre estas obras, diz ainda Frei Guillermo Vásquez Núñez, p. 623 de seu Mercedarios Ilustres, "que não deu à luz estas obras, embora se persuada de que teriam rápida aceitação, porque não pretende ser lembrado, mas esquecido pelo mundo, etc."
          Ora, fica evidente que o autor estava persuadindo de que sua obra teria rápida aceitação. Basta ler o que ele transcreveu de uma carta de seu prelado, às linhas 1623-7:

Elas contêm matérias de suma importância e de admirável disciplina eclesiástica, e toda bem fundamentalmente estabelecida, sendo dignas de irem às mãos de todos, para com elas ficarem instruídos.

Aliás, é da mesma carta que ele colheu a expressão para indicar o motivo para se manter inédito e desconhecido o seu nome: "E o desejo totalmente desconhecido, como nome que não merece ser lembrado". (Cf. linhas 1631-3).
          Estas e numerosas outras coincidências mostram que o biografado do Frei Guillermo é o autor de nosso texto.

DATAÇÃO DO MANUSCRITO

          Considerando que o manuscrito em questão corresponde a uma versão reduzida de uma obra mais avultada, escrita em latim, seria importante que pudéssemos datar também a versão original latina. No entanto, o máximo que temos de certo é que a obra já estava concluída no segundo semestre de 1770, quando foi apresentada ao Senhor Inquisidor e Vigário Capitular de Belém como peça de defesa do autor contra as acusações que lhe foram feitas.
          À imitação de Solórzano (4), o autor produziu uma obra, mas reduzida a menos erudita, na língua original de seu povo, de modo que a versão portuguesa não é uma tradução do texto produzido em latim. Esta segunda e importante obra do Pe. Penha é de 1773, ou mais rigorosamente, posterior a novembro de 1772 e anterior ao segundo semestre de 1774.
          Como seria quase absolutamente impossível a um pároco de índios produzir uma obra de tamanha responsabilidade moral em apenas um mês de dezembro(quando de sobrecarregam os párocos de compromissos de seu ofício) e como há dados suficientes para datar o texto em 1773, excluímos o rigor de colocar o documento entre os limites cronológicos que podem ser provados pela crítica interna do texto, provando matematicamente com os dados do texto que também se pode excluir aquele primeiro semestre de 1774 colocado na margem de segurança.
          Às linhas 259-61, Diz o texto: "pois seis anos há que assim o tenho percebido a cada passo, com a própria experiência". Noutras palavras, o autor declara que há seis anos que este trabalho como pároco de índios, engajado na tarefa de cristianizá-los e aprendendo tudo aquilo que declara nas linhas anteriores, não por informação de terceiros, mas com a própria experiência".
          "Seis anos há". Esta é uma informação importante.
          Conforme se pode ver às linhas 1573-6 e 1607-11, o Venerável Mercedário escreveu esta apologia depois do governo de Fernando da Costa de Ataíde e Teive e do governo diocesano de Vigário Capitular Dr. Geraldo José de Abranches, ou seja, depois de novembro de 1772, quando foram substituídos.
          No § 71 (linhas 1514-35), o autor transcreve uma carta do governador Fernando da Costa de Ataíde e Teive, datada de 16 de janeiro de 1767, e notifica que o réu, Eugênio Álvares da Câmara "não foi absolvido até agora há sete anos" nota à linha 1516).
          Ora, as "desordens" referidas pelo governo devem ter ocorrido no final de 1766, pois 18 dias seriam insuficiente para que ele pudesse tomar conhecimento detalhado dos fatos e tomar uma decisão prejudicaria a todos os vigários de seu Estado. Por isso concluímos que o manuscrito é de 1773. É apenas uma questão de cálculo: 1766 (ocorrência da "desordem") + 7 = 1773.
          Como o pároco-autor, ao chegar à não-identificada vila, já encontrara a referida carta circular, datada de janeiro de 1767, só poderia ter ali chegado em data posterior a essa, começando então o seu primeiro paroquiado.
          Ora, se ele começou aquele seu paroquiado em 1767, os seis anos de experiência referidos, somados a esta data levam-nos ao mesmo ano de 1773. Ou seja, 1767 (início do seu paroquiado) = 6 (anos de experiência) = 1773 (ano em que escreve as Questoens Apologeticas).

AUTENTICIDADE E ORIGINALIDADE DO DOCUMENTO

          Apesar de não termos aprovado a autenticidade e a originalidade do texto editado, não há motivos para se descrer que o códice 7,1,19 da Biblioteca Nacional é o original do autor. E como os indícios favoráveis a nossa tese são dificilmente contestáveis, afirmamos, até prova em contrário, que editamos o original autêntico das Questoens Apologeticas.
          Terminando, gostaríamos de sugerir aos interesses que procurasse ler o documento aqui apresentado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, volume 148, número 355, páginas 230-281, do qual há uma introdução às páginas 164-177.

 

NOTAS

  1. SILVA, 1987
  2. DIRECTORIO, MDCCLVIII.
  3. SPINA, [1977] P. 79.
  4. SOLORZANO escreveu em latim a obra que lhe deu fama, mas fez dela, mais tarde, uma versão na língua vernácula de seu povo, para que suas idéias fossem melhor divulgadas.

BIBLIOGRAFIA

DIRECTORIO que se deve observar nas povoaçoens dos índios do Pará e Maranhão, em quanto Sua Magestade não mandar o contrário. Lisboa, na Officina de Miguel Rodrigues, impressor do Eminentíssimo Senhor Cardial Patriarca, MDCCLVIII. 41p.

ROSÁRIO, Manoel da Penha do, Padre. Questoens Apologeticas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 148(355): 230-281, abr./jun. 1987.

SILVA, José Pereira da. Questoens Apologeticas: edição crítica. Dissertação de Mestrado apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 292fl. 1987.

______________. A imposição da língua portuguesa aos índios e as Questoens Apologeticas do Pe. Manoel da Penha do Rosário. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 148(355): 164-177, abr./jun. 1987.

SOLORZANO [Pereira], Juan. De Indiarum Jure Disputatione. Madri, 1605.

______________. Política Indiana. Madri, 1647.

SPINA, Segismundo. Introdução à edótica: crítica textual. São Paulo, Cultrix/Universidade de São Paulo 153p. 1997.

VÁSQUEZ NÚÑEZ, Guillermo, Fr. Mercedários Ilustres. Madrid, Revista Estudios, XV + 777p. 1966.