DIÁRIO DA VIAGEM FILOSÓFICA[1]

PELA

CAPITANIA DE SÃO JOSÉ DO RIO-NEGRO

COM A

INFORMAÇÃO DO ESTUDO PRESENTE

PELO DR. ALEXANDRE RODRIGUES FERREIRA

Naturalista, empregado na expedição filosófica do Estado

 

 

16º Gentios que habitaram e habitam nele,
pela ordem dos rios indicados no tit. 15º

Note-se, primeiramente, que os manaus foram os gentios dominantes na parte inferior, assim como os barés na superior; donde vem, que estas são as duas línguas que falam os índios aldeados, sendo cada uma delas a geral do seu distrito. Dos primeiros escreveu o autor do Roteiro de Viagem para a Capitania de S. José do Rio Negro.

 

(a)

Que foram poderosos e valentes, ainda que antropófagos no estado da sua infelicidade, assim como ainda hoje o são os uerequenas, e em outro tempo o foram quase todos, excetuados tão-somente os uaupés.

 

(b)

Que invadiam as aldeias dos outros gentios, situados nas margens do Rio-Negro e capitaneados pelo facinoroso principal Ajuricaba, subiam pelo Rio-Branco a vender os índios que cativavam aos holandeses de Suriname, com os quais se comunicavam, vencendo com jornada de meio dia o espaço de terra, queentre o Tacutu e a parte superior do Ruponuri[2], que deságua no Esequibe, e este no mar do norte.

 

(c)

Que enquanto a religião, criam com uma espécie de maniqueísmo, que haviam dois deuses, um chamado Mauari, autor de todo o bem, outro por nome Sarauá, autor de todo o mal.

 

(d)

Que estes e todos os mais gentis do Rio-Negro não tinham sinais ou deformidades industriais, à exceção dos das nações uerequenas e uaupé.

 

(e)

Que a todos era comum o uso do arco e flecha, e lanças envenenadas, e paus semelhantes aos cuidarus e tamaranas, que eram as armas da sua primitiva invenção.

Digo da sua invenção, porque o grande número de armas de fogo, com que alguns deles, pelo tempo adiante, faziam a guerra aos brancos e índios situados nas aldeias deste distrito, foi sem dúvida adquirido dos europeus, dos quais as houveram, ou por despojos de algumas surpresas, ou por via de comércio, particularmente com os holandeses. Elas eram tantas e tão vulgares, ao tempo que governava o Estado o Sr. Cristóvão da Costa Freire, que da ordem (resolução), que (ele se viu obrigado a tomar a este respeito, fica dito o que basta na memória do ano de 1716, especificada no tit. 3º passo a especificar os gentios. O asterisco denota as nações desertadas ou extintas nos rios da sua habitação como foi a dos tarumãs), em forma de regimento, expedido na data de 17 de julho de 1716 ao coronel José da Cunha da Eça, encarregado de subir aos sertões dos rios das Amazonas, Negro, Solimões e Madeira, para prender o grande número de soldados desertores das capitanias do Pará e do Maranhão, que nos referidos sertões se haviam refugiado, e neles cometiam impunemente muitas violência e desordens, consta o disposto no 3º parágrafo, pelo teor seguinte:

E porque os índios da nação manaus, xapuenas e matiuenas, tem grande número de armas de fogo, com que tem feito algumas mortes e se deve recear, façam maiores absurdos, destruindo as aldeias dos índios domésticos e matando alguns dos religiosos do Carmo, como tem feito, que são os que tem a seu cargo as aldeias daquele distrito, fará todo o possível por resgatar algumas destas armas, de sorte que não faça dano aos índios, nem lhes ocasião a se levantarem, porque nesta parte terá o maior cuidado e para fazer os tais resgates de armas, lhe mandará dar o capitão-mor José Velho de Azevedo oitenta peças de machados e facões; o que tudo se entregará ao sargento, que leva em sua companhia, Antônio Barbosa, para dar conta destas peças de ferramentas, e do mais que se lhe entregar na forma acima declarada.

Passo a especificar os gentios.  O asterístico[3] * denota as nações desertadas ou extintas nos rios da sua habitação, como foram os gentios tarumas.

Os rios são os seguintes

Ditos dos norte

No rio Ananiné: Os aroaquis.

No Jauapiri: Ditos.

No Queceuene ou Rio-Branco: Os paurauanas, ditos aroaquis, parauás, aturaís, pauxianas, guaiumasás, tapicaris, saparás, uajurus, xaperus, uapixanas, sucuris, jaricunas, carapis, uaicás, macuxis, caripunas, amaribás, arinas, quiúaos, pericotos e alguns macus dispersos.

No Uaranacua: Os uaranacuacenas* e parauanas.

No Uaracá: Os quinanas*

No Uereré: Os carajaís e uariúnas*

No Padauiri: Os omanaus, uanás e uariúnas

Nos riachos antes do Marauiá: Os manaus*

Dito Marauiá: Os curanaos* poderosos inimigos dos manaus, e os ujanas*

No Cauaburis: Os damacuris, madauacás e outros,

No Miuá: Ditos demacuris*

Nos riachos da fronteira: Os ariinis* e marapitanas*, hoje marabitena

 

Ditos do sul

Nos rios Jaú e Anani: Antigamente os caraiais, que foram expulsos e destruídos pelos muras.

No Cauauri: Os cauauricenas* e caraiais*

No Uarirá: Os manaus, que ocupavam uma e outra margem do Rio Negro, e dos rios seus colaterais, até a ponta inferior da ilha de Timoni, fronteira à barra do rio Xiuará.

No Mariá: Os mepuris e macus.

No Curicuriaú: Ditos e mais os maiapenas.

No Ucaiari ou Uaupés: Os cojanas, uaupés, cuenacans, arapassus, mueinos, paicoenas, araras, iauaras, banibas, ucaiaris, uananás, cuduiaris, cequenas, cuererus, cueuanas, burenaris, mamangas, panenuás e vários macus dispersos.

No Içana: Os banibas, tumaiaris, dicanas, puetonas, urequenas, e outros.

No Ixié: Ditos banibas, xapuenas, uerequenas, mendós e outros.

N.B. -Que nas povoações deste rio estão incorporados com os índios das sobreditas nações outros muitos, que têm sido descidos de rios e sertões diversos.

O que aos olhos de todo qualquer espectador oferece uma admirável variedade de objetos, com que entreter a sua curiosidade, enquanto os gentios pela civilização que se lhe introduz se não uniformam ao método de pensar e de obrar que observam nos índios aldeados.

Em uma aldeia se falam tantas línguas diversas quantas são as diferentes tribos de gentios que a povoam.  A superstição de todas elas, seus diferentes costumes, extravagância no vestir e em se ornarem, as suas festas e bailes, os seus instrumentos marciais e festivos, as suas armas e utensílios domésticos, tudo isto apresenta um dilatado campo de observações, pelo qual não farei mais do que correr ligeiramente em ordem a deixar algum rastro que indique a minha marcha.

 

SUPERSTIÇÃO

Ainda que ele tenha um mando absoluto na maior parte dos pensamentos e das obras dos gentios, não se pode contudo asseverar tão decididamente como tenho ouvido que eles nem pensam, nem obram coisa alguma, que lhes não seja sugerida pelo demônio.  Os missionários, que tem sido entre nós as pessoas encarregadas de espreitar as suas opiniões e práticas religiosas, desconfiam de tudo quanto os vêem falar e obrar, principalmente se entre os seus usos e costumes chegam a descobrir algum que se lhes representa ser da maior veneração.  Se se inclinam a desconfiar, digo, em tudo quanto obram os gentios, não vêem senão obras do demônio;  se a conciliá-los com o cristianismo, passam de um a outro extremo: porque desde logo lhes atribuem idéias, que eles, sim, são capazes de adquirir, como os outros homens, porém que ainda não as tem.

E daqui procede estarem alguns dos ditos missionários descobrindo em muitas ações dos gentios bem profundos vestígios dos mais sublimes mistérios, interpretando a seu jeito certas expressões e cerimônias, que eles não entendem, e transformando tudo quanto vêem, do que verdadeiramente é para os que se lhes representa ser.  É certo que, entre os diversos princípios da religião, que alguns deles professam, um deles é o de sustentarem quedeuses autores dos males que afligem a espécie humana.  A estes representam os gentios debaixo de formas as mais horrendas;  e todo o culto que lhes dão, o dirigem ao fim de aplacarem a cólera destas terríveis divindades.  Crêem como os antropomórfitas, que os seus deuses têm forma humana, porém com uma natureza superior à do homem;  e sobre as qualidades e operações destes deuses, imaginam fábulas as mais absurdas e incoerentes que se pode imaginar.

Mas estes mesmos nenhuma forma têm de culto público, não erigem templos em honra das suas divindades, não tem ministros especialmente consagrados ao seu serviço porque os pajés, que são os seus feiticeiros e sacerdotes, também são os médicos, os filósofos e os estadistas de cada tribo.  O entusiasmo supre a ciência do feiticeiro.  Os gentios fáceis em crer tudo quanto lhes parece maravilhoso, pelo temor em que os põe o seu sacerdote, se dispõem a estar pelo que lhes ele diz; explica-lhes os sonhos, observa os presságios e intima-lhes a atenção ao canto, e ao vôo das aves, e aos gritos dos outros animais.

Todas estas circunstâncias (lhes adverte) são prognósticos do futuro, e se de alguma delas prenuncia, que lhes é desfavorável, não se executa o que estava deliberado.

 

COSTUMES

Falo dos morais entre os quais além de ser ímpia a antropofagia, que ainda hoje praticam os uerequenas, é igualmente ímpio o comportamento de quase todos os gentios pela ocasião da guerra.

De outros muitos gentios se conta, como eram os ingaíbas, tapixaras e mamaianás, que na ocasião do conflito, e nos transportes do seu maior furor, mordiam as carnes dos cadáveres dos inimigos e abocanhavam algumas delas;  tocavam à chamada e festejavam a vitória com gaitas das tíbias das pernas dos vencidos;  bebiam e davam a beber água e os seus vinhos em crânios serrados e raspados à maneira das suas cuias;  esfolavam e rompiam os cadáveres, arrancando-lhes os dentes, para deles fazerem as suas gargantilhas;  cortavam-lhes as cabeças para as pendurarem como troféus, pelas paredes das suas palhoças porém todas estas barbaridades, que todos eles cometem durante o furor da guerra, são as que o uerequena pratica de sangue frio com os prisioneiros, que aplica para o seu sustento longo tempo depois de concluída a guerra.

Viram em outro tempo os cabos das nossas tropas, que eles tinham currais de gentios prisioneiros, assim como nós os temos de gado para os açougues.  Deles se conta o mesmo de outras muitas nações da América se escreve, que praticam o extraordinário costume, de em algum deles chegando ou a envelhecer, ou a padecer alguma daquelas enfermidades, que a sua grosseira medicina não sabe remediar, os mesmos pais e filhos têm o cuidado de lhe antecipar a morte, não para se aliviarem a si do fardo de tratar deles durante a impertinência da moléstia, mas também para o aliviarem a ele das dores e tormentos que passa, enquanto se lhe retarda a morte, que é a porta que se lhe abre para escaparem das misérias da vida.

Eis aqui um rasgo de piedade entre eles, que entre nós é uma impiedadePor este se pode julgar dos outros costumes, com relação às virtudes da continência, da sobriedade, da mansidão, da honestidade, etc.

 

VESTIDOS E ORNATOS

Parece (diz o inglês Robertson), que a mesma natureza se descuidou de ensinar aos desta parte da América quanto lhes era indecente o aparecerem nus Porém, como eles, debaixo de um céu benigno, nenhuma necessidade sentem de reparar as suas carnes contra as injúrias do tempo, antes a sua mesma indolência os convida a pouparem-se a toda qualquer espécie de trabalho, que lhes não é ordenado por uma extrema necessidadetodos ou quase todos se deixam ficar no estado de uma quase absoluta nudez.  Contentam-se com umas ligeiras tangas da entrecasca de alguma árvore, se é, que se querem dar à mortificação de trazerem cobertas as partes vergonhosas.

Pelo que neles se observa, bem se pode, quanto ao princípio e progressos que tem feito entre os homens a arte de vestir e de trajar, subir desde a sua infância até o seu estado atual, discorrendo que os homens primeiramente andaram todos nus pouco depois trataram de cobrir somente as suas partes vergonhosas;  donde se originaram as tangas, em que uma experiência e gosto mais tardio foi aperfeiçoando a matéria e a forma.  Cresceu o desejo, e em alguns países os obrigou a necessidade a reparar os seus corpos, passando eles a usar de roupas abertas, que primeiramente as fizeram de folhas, e depois, das entrecascas das árvores;  e pelo tempo adiante das penas das aves e das peles dos outros animais.

Fecharam-se ainda mais tarde as roupas, principiando em forma de casulos, abertas pelos lados e sem mangas;  donde foram tomando por um longo lapso de tempo os feitios e as matérias de que hoje as fazem, depois que conheceram a , o linho, o algodão e a seda;  e depois que a arte ensinou a conhecer, cultivar, recolher, preparar, fiar e tecer cada uma destas substâncias;  de lhes embelezar a matéria se encarregaram os tintureiros, os bordadores, e outros artistascom a mera forma se ocuparam os alfaiates, proporcionando-as, cortando-as e cosendo-as segundo o gosto e a necessidade dos homens.

Os mesmos gentios, ainda que andam nus, nunca dispensam os ornamentos e enfeites, com que ornam os braços, as pernas e os cabelos;  trazendo penduradas neles, ou algumas folhetas de metais, ou fragmentos de conchas, de cristais, de palhas, que também trazem pendentes nos narizes, nos lábios e nas orelhas.

Outros desenham na pele uma multidão de listras e de figuras diversas, custando-lhes estas pinturas muitas dores, muito tempo e muito trabalhoOutros andam sempre tintos de urucu ou carajuru;  assim como dos antigos bretões se escreve, que se tingiam com o pastel, para assim incutirem maior terror ao inimigo, e também apresentarem as suas pessoas em um ar mais bizarro.  Na memória de 20 de fevereiro de 1787, sobre os gentios jurupixunas, fiz menção do costume que eles têm de pintarem a face em diferença dos outros.

Porém outros há, que não são os do Rio Negro, porque deles disse que, excetuados os uerequenas e os uaupés, nenhum mais praticava deformidades industriais, não se esmeram em adquiriraperfeiçoar os seus poucos ornamentos, mas também sentem um peso e inclinação natural a alterar as formas naturais de seus corpos.

Os antigos cambebas, como eu escrevi na memória a que eles deram assunto, datada em 17 de setembro do referido ano, imprensavam entre duas talas as cabeças das crianças, para se fazerem chatas, outros lhes davam uma figura cônica e outros quadrada.  O uerequena, como deixo escrito na memória de 29 de agosto, rasga e distende as extremidades das orelhas.  O mura, como também escrevi na memória de 30 do mesmo mês, e outros muitos gentios furam ambos os lábios e trazem introduzidos nos furos, ou os batoques, os quais parecem marcas de coquilho, ou fragmentos de ossos e de pedras.  Os mauás, como fica explicado em outra memória, também de 20 de fevereiro de 1787, andam sempre espartilhados à imitação das damas da Europa.

Para se adquirirem semelhantes formas, arriscam as suas vidas e as de seus filhos, fazendo-os logo passar desde o berço pelos mais dolorosos transes, não se dirigindo eles a outro fim mais do que ao desordenarem o plano da natureza, debaixo do vão pretexto de aperfeiçoarem as suas obras Porém o certo é que o principal fim a que tendem estes diferentes caprichos não é tanto para embelezarem os seus corpos, quanto para lhes darem um ar impostor, que com a sua presença e deformidade aterre o inimigo.

 

BAILES

Esta é a paixão favorita dos selvagens desta parte do globoAssim escreveu na sua História da América o citado inglês, e eu o tenho observado, há três anos, nos gentios de dentro e de fora deste rio.  Sendo eles por natureza uns verdadeiros quietistas, que a maior parte do seu tempo a consomem em um estado de lanquidez e de indolência sem ocupação alguma que os possa animar e entreter, quando cessam as guerras e as caçadas, gostam de um exercício que lhes põem em ação as faculdades ativas da natureza.

É verdade que entre eles a dança se não deve chamar divertimento, antes é uma ocupação muito séria e importante, que se envolve em todas as circunstâncias da sua vida pública e particular, e de que depende o princípio, e o fim de todas as suas deliberações.  Se é necessário entenderem-se entre si duas aldeias, dançando é que se apresentam os embaixadores, e entregam o emblema da paz.  Se se declara a guerra ao inimigo, por outra dança é que de parte a parte se principia a exprimir o seu ressentimento e a vingança que se medita.  Então esta dança é uma verdadeira cena em que se representa a campanha dos gentios.

Parece que se está vendo a saída do exército, a sua marcha pelo país do inimigo,  as precauções com que acampa,  a ardileza com que se vão emboscando alguns destacamentos,  o modo de surpreender o inimigo.  O tumulto e ferocidade do combate e o triunfo da vitória.  Os atores, que figuram na cena, correm a ocupar os seus postos com tanto calor e entusiasmo, com tantos gestos e visagens, e com as vozes tão prontas e apropriadas à rapidez e à celeridade das sua evoluções, que aos europeus, que presenciam[4] o baile, custa bem a crer, que aquela é uma mera cena de ensaio e não um combate real.

Se se trata de consultar os oráculos, para se lhes revelar o mistério que indica alguma fome geral, alguma inundação repentina, alguma praga de ratos ou de formigas que lhes devoram as roças, algum canto das aves, ou grito dos animais do seu agouro, o pajé ou o feiticeiro dispõe a dança, e dela e das diferentes coisas que pede em nome do oráculo (que sempre são as que ele deseja para si) faz depender a revelação do mistério.

Se adoece algum deles, como os seus pajés atribuem a origem das enfermidades à influências sobrenaturais, eles mesmos prescrevem certas cerimônias misteriosas em que fazem consistir o remédio do enfermo.  Neste sentido a dança é um dos mais eficazes medicamentos que lhe receitam semelhantes médicos, e se o doente não pode suportar a fadiga do exercício, o seu médico a suporta por ele.

Enfim se eles querem aplacar a cólera dos deuses (que nunca estão bem com os gentios, quando eles estão mal com os seus pajés, ou quando se descuidam do seu sustento e regalo[5]);  se pretendem celebrar algum dos seus benefícios, ou testemunhar a sua alegria pelo nascimento de algum filho, de algum parente, de algum amigo, ou a sua tristeza e enojo pela morte de algum deles;  se tratam de festejar algum casamento, ou mesmo a declaração do mênstruo em suas filhas, pela primeira vez que são assistidas, se celebram alguma grande caçada, ou pescaria, alguma colheita de frutos da sua estimação, para os seus vinhos e bebidas eles têm danças e farsas próprias, para significarem os diferentes motivos da sua alegria ou tristeza.  Se a caçada, por exemplo, foi bem sucedida, conforme é a espécie do animal que eles caçaram, assim é a máscara que fazem para o baile.

O festejo por causa de uma boa caçada de porcos se faz com uma máscara que representa a cabeça de um porco.

O da pescaria de um peixe boi, com outra máscara que o representa.  Veja-se a este respeito a memória de 31 de agosto de 1787.

Uma dançatão bárbara, que toda a cerimônia consiste em se flagelarem uns aos outros com azorragues ou de corda de pita, ou de couro de peixe boi, os quais têm apenso na extremidade algum sólido que fira, como osso ou pedra, flagelando-se com ele, até ficarem esvaídos[6] em sangue, segundo eu expliquei em outra memória de 13 de fevereiro de 1786, onde fiz menção do uso dos instrumentos e da festa chamada do paricá.

 

INSTRUMENTOS MARCIAIS E FESTIVOS

São os trocanos, tamborinhos, trombetas, torés, membis, gaitas feitas de cana, de ossos de animais, e de bicos de aves;  cascavéis nos pulsos, nos joelhos e nas tabocas que lhes servem de bengalas, com que batem no chão e determinam o compasso das danças;  o que tudo produz uma música horríssona aos ouvidos, sem harmonia qualquer que ela seja, ou instrumental ou vocal Porém ela não é a que mais os inflama e anima para a dança, porque o espírito dela é o dos licores fortes, cujo abuso faz que não haja baile, que não seja uma verdadeira bacanal.

Como ignoram a arte que têm os europeus de dar aos licores pela fermentação uma força de embebedar, obtêm o mesmo efeito por diferentes meios.  Lançam de infusão em água grandes quantidades de uns bolos chatos de mandioca (a que chamam beijus) depois de mastigados pelas velhas.  A saliva excita neles uma fermentação vigorosa, e dentro em poucos dias fica um licor de um sabor e furtum forte para a sua bebida.

As mulheres por nenhuma forma são admitidas à dança antes bem se pode guardar de ser vista a que for espreitar, porque corre risco de pedir o pajé que a matem.  Com os movimentos  e agitações dos corpos, durante o baile, mais se refina a crápula, e para não caírem de todo, em eles principiando a cambalear, encadeiam-se uns com os outros, abraçando-se pelos pescoçosEm semelhante estado é que eles cometem as maiores perfídias e impiedades;  e é certo que rara é a dança que acaba sem efusão de sangue.  No entanto eles deixam de beber, em se lhes esgotando a última gota dos seus vinhos.

 

SUAS ARMAS

Elas nos fazem reflexionar que as primeiras armas ofensivas foram sem dúvida as que ministrou o acaso e que os primeiros esforços da arte para as aperfeiçoar foram muito simples e grosseiros.

Isto se nessas pequenas massas de pau pesado a que se dá o nome de braçangas, as quais são as suas armas curtas, que contundem e cortam com os sabres;  as lanças de madeira simples ou tostada ao fogo para lhes comunicar maior dureza;  e os piques armados na ponta ou com algum fragmento de ferro, ou de pedra, ou de osso aguçado, aos quais, segundo a sua diferença, se dão os nomes de murucus e cuidarus.  Porém todas estas servem para combater de perto.  Os homens escogitaram depois um meio de ofender de longe.

A esta idéia se deve a invenção dos arcos e das flechas que, ou são simplesmente umas flechas com alguma ponta de madeira aguçada ou de taquara, ou são ervadas e tomam o nome de curaís.

Também se devem as palhetas e as zarabatanas que, depois de flechas, foram as segundas armas de tiro, que então se inventaram e que ainda hoje são as únicas que possuem os povos que vivem na infância da sociedade.

A funda, contudo, não é conhecida entre estes gentios Com as sobreditas armas fazem a guerra;  e ela, segundo a contemplou o citado Robertson, oferece para se contemplarem:

I      Os motivos para ela

II     A ferocidade com que a fazem

III    A perpetuidade em que a conservam

IV   O modo de a fazerem

V     A conduta com os prisioneiros.

Quanto aos motivos, é certo que um deles costuma ser o da usurpação dos frutos, das caças e dos pescados dos rios e das terras do território alheioCada aldeia se julga independente da outra que confina com ela;  e sobretudo quanto há no território imediato ao da sua situação, se atribui um direito inteiro e exclusivo, que a autoriza, pelo título de possuidora, a repelir com a força a usurpação que se lhe faz.  Porém também é certo, que a idéia de propriedade não é o mais freqüente, nem ainda mesmo o mais forte de todos os motivos para as suas contínuas hostilidades.

O espírito da vingança é o maior de todos, ou seja, que eles se arroguem com preferência aos outros uma indisputável elevação, que atiça a inveja e a emulação dos vizinhos, ou que tenham recebido alguma injúria e lesão, a diuturnidade do tempo que lhes não risca a lembrança dela.

Ainda que a injúria não tenha sido feita a todos, basta que um a receba para que o ódio e o ressentimento de todos seja tão implacável como o indivíduo ofendido.

O desejo de se vingarem é tão cego e abrutado como o das feras;  mordem as pedras que se lhes atira e as retorquem contra os mesmo que as atirou;  arrancam de seus corpos as flechas que os atravessam e com elas fazem tiro ao inimigo, cortam as cabeças dos mortos e fazem outras barbaridades, donde se pode inferir a ferocidade das suas guerras Eles não as fazem para conquistar, mas sim para destruirmatar, queimar tudo é a sua maior glória militar.

Consultados os pajés e os velhos, o principal da nação dirige em chefe de exército, isto é, quanto ao fim de pelejarporque quanto aos meios e à disciplina, cada soldado é senhor de si e das suas açõesPorém, como eles tem de encontrar durante a sua marcha inumeráveis obstáculos que vencer, tendo de atravessar grandes rios e lagos, de penetrar matas horríveis,  de lhes faltarem os viveres para municiar de boca a um grande exército;  o espírito de providência os conduz a marchar para a guerra em pequenos corpos ligeiros e desembaraçados dos empecilhos das bagagens;  e cada soldado não leva mais que as suas armas e um pequeno saco ou de farinha de mandioca, ou de beiju, ou de milhoporque de caminho vai caçando ou pescando, até se aproximar às fronteiras do inimigo;  surpreendê-lo e destruí-lo é todo o seu ponto;  e como as caçadas que fazem na paz são os exercícios para a guerra, do mesmo modo que eles rastejam a caça, assim entram a rastejar uns aos outros.

Para melhor se disfarçarem no mato e se equivocarem com as folhas e com os troncos das árvores, pintam-se e vestem-se diferentementenão deixando precaução por aplicar em ordem a não serem pressentidos.  No caso de terem essa felicidade, estão conseguidos os seus finsporque no silêncio da noite investem de tropel a aldeia do inimigo,  queimam-lhe as suas palhoças e, conforme a ferocidade e o costume dos vencedores, assim matam tudo ou reservam alguns prisioneiros.

O mura enquanto se não domesticou, a algum rapaz dava quartel e geralmente às mulheres.  O uerequena a todos reserva para se sevar nas suas carnes.  Os que os reservam para serem escravos são os mais humanos de todos eles Miseráveis porém daqueles que ficam reservados para beberem a morte pelo mais amargoso cálice, que lhes prepara uma implacável vingançaEla excogita e faz dar a seus corpos ambas as espécies de tortura ordinária e extraordinária, uns os espetam com paus, com ossos e com pedras pontiagudas e em brasaoutros lhes cortam e dilaceram as carnes.

Alguns lhe descarnam os ossos;  e no meio de todo este terrível espetáculo duas coisas (reflete o mesmo inglês) excitam o pasmo de quem as ouve ou as :  1ª outro nenhum temor limita a cólera do vencedor, senão o de abreviar a duração da sua vingança, se ele der a morte ao vencido, mais breve do que ela pede;  2ª que quanto mais atormentado é o vencido, tanto mais digno se julga ele da alta dignidade do ser do homemantes o abreviar ele mesmo a sua vida, para encurtar os seus tormentos, seria uma nota de infâmia com que deixaria manchada a sua família.

 

UTENSÍLIOS DOMÉSTICOS

São algumas panelas feitas à mão, das que se chamam igaçabas;  redes para dormir, a que se dá o nome de maqueiras e são de fio de folhas de palmeira muriti;  cabaços, cuias, balaios, gurupemas, tipitis, abanos, ralos e todo o mais trem preciso para fabricarem os beijus e as farinhas de mandioca.  As pedras mais duras, depois de levigadas, lhes servem de machadinhas;  os dentes das pacas e das coitas são as suas goivas e formões;  faltam-lhes as ferramentas e todos os mais subsídios da arte.

Contudo não se admirará por certo a simplicidade de semelhantes utensílios, se se refletir, que os esforços do espírito e da indústria dos povos, que em nenhuma outra coisa se exercitam, senão na guerra e na caça, a estes dois objetos se limitam.  Como todo o seu sustento e vestidos são mais simples, também os seus utensílios são poucos, e esses mesmos grosseiros.  Acresce que entre eles nenhuma idéia há de propriedade. Tudo é para todosBasta que um dos do rancho tenha feito um ralo, para todos entrarem em direito de se servirem dele.

A sua indolência natural é outro obstáculo que encontra a multiplicidade dos móveis e o mecanismo e a conveniência da sua construção.

Principiam friamente a fazer uma maqueira, continuam com pouca atividade e, como se fossem umas crianças, qualquer bagatela basta para os distrair.

Uma canoa entre as suas mãos chega a apodrecer de velha, antes de a eles concluírem e, neste descuido de si mesmos, uns se distinguem mais do que os outros.  De entre todo o gentio o mura é o que menos se trata e se alinha:  os seus mesmos ornatos são muito grosseiros.

As redes em que dormem, são meras fibras das entrecascas das árvores.  A sua vida é de corso;  os seus estabelecimentos são volantes e incertos.  Os homens somente usam de umas tangas ou saiotes de fio das folhas das palmeiras;  as mulheres andam todas nuas.


[1] Códices 21,1,9 e 21,1,1 nº 04 da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Este texto foi publicado também em Viagem Filosófica ao Rio Negro de Alexandre Rodrigues Ferreira, páginas 614 a 629,  pelo Conselho Federal de Cultura, com apoio do Museu Paraense Emílio Goeldi, do CNPq e da Fundação Roberto Marinho, transcritos da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

[2] Parece ser uma variante do nome do rio "Ropumani"

[3] Hoje se diz "asterisco". A forma “asterísticos” pode ser um erro ou uma variante.

[4] "Presenceiam" por "presenciam".

[5] "Resgalo" por "regalo".

[6] Não seria "esvaídos"?