GENTIOS QUE HABITARAM E HABITAM NO GUAPORÉ[1]

 

Muitas nações houveram em outro tempo, das que nenhuma notícia já hoje se conserva, pelos motivos que abaixo se dirão. Tais foram, principalmente, as que [pela margem oriental][2] habitavam as fraldas da grande serra dos Parecis, as suas campanhas adjacentes e as margens dos rios que todas foram conquistadas pelo sertanista. Veja-se o que delas se refere no Anal de 1759, que li em Vila Bela.

Era este vastíssimo país antigamente povoado de numerosa gentilidade, mas entrando pouco a pouco a conquistá-la os nossos sertanistas pela banda de Mato Grosso e os missionários de Espanha pela parte oposta, assim se foi despovoando, com diferença porém que dos gentios que dali tiraram os missionários, se acha hoje muita parte estabelecida da banda ocidental em três missões: de São Simão, São Miguel e Santa Rosa. Porém, os que conquistaram os nossos sertanistas, quase se extinguiram, principalmente os das nações curicharas, amios, mubés e outros, sem que, ao tempo do estabelecimento das missões, se achassem deles nem os mesmos lugares de suas naturalidades.

Das nações de que haviam maiores relíquias eram os guajuratás e mequéns, que por serem nações numerosas e últimas na conquista, ainda não tinham experimentado total ruína.

A autoridade com que os sertanistas faziam estas conquistas era da cobiça. As leis que seguiam no método de as fazerem eram as da desumanidade, porque apavorando as roncarias[3] em que se viam os bárbaros nas bocas de fogo, faziam acabar todos os que naturalmente pegavam nos arcos para sua defesa.

Metiam-se os rendidos em correntes ou gargalheiras e depois se repartiam pelos conquistadores, que os remetiam para as nossas povoações em contrato de venda.

A estas tão injustas ações acompanhavam atrocidades inauditas e indignas de se referirem.

Mas permitia a justiça divina que nenhum destes sertanistas jamais enriquecesse; antes, ao tempo que Pe. Agostinho Lourenço desceu rio abaixo e achou alguns por ali estabelecidos, depois de vedadas simples conquistas de ordem do Ilmo. e Exmo. Sr. General D. A. R. M., em observância das leis e ordens de Sua Majestade, não havia algum que não vivesse em lastimosa pobreza.

Não só [não] tinham casas em que morarem, mas nem plantas, nem roças, nem camisas com que se cobrirem.

Não era menos[4] necessidade espiritual, porque viviam muito distantes dos povoados, não ouviam missa, nem se confessavam senão raras vezes, sucedendo comumente morrerem alguns sem confissão.

Os gentios que obedeciam a semelhantes homens viviam na sua natural barbaridade. Observavam os costumes nativos, sem conhecimento algum dos mistérios da fé.

Estavam tão pouco acostumados a ouvirem o catecismo, a assistirem a missa e outros semelhantes exercícios de um missionário, que fugiam quando este lhes mostrava o seu crucifixo de latão; barbaridade que pouco a pouco se foi vencendo com ajuda do mesmo senhor.

Porém, de quase todas as nações, ainda as mais populosas, como tinha sido a dos parecis, raros eram os indivíduos que existiam. Não se viram mais os cautários, os corumbiaras e outros.[5]

Das que existiam pelos anos de 1769 e 70, quando do forte de Bragança se abriu estrada por terra até Vila Bela, pela margem oriental, deram fé os empregados naquela diligência. E foi que nos sertões dentre a fortaleza e o rio dos Cautários, seu imediato, rio acima, deixaram uma aldeia de aricuronos e, nas cabeceiras dos Cautários, duas aldeias de gentios assim chamados.

Nas cabeceiras do rio de São Simão viram muitas aldeias que constituíam o reino dos lombis, gentio manso e tratável que vive de roças.

Na parte superior do rio de São José, em o cume da serra, passaram pelo reino dos cutrias, por outro nome travessões, por trazerem atravessada na cartilagem que divide as ventas um [longo][6] botoque, à maneira dos caripunas do rio da Madeira[, se bem que o destes não é tão comprido].[7] Além destes, têm mais dous botoques no lábio superior. Todos são gentios fornidos, de mediana estatura, vivem de lavouras, caça e pesca e são tratáveis e mansos.

Imediatos a estes se seguiu pelo alto da serra a aldeia dos latitis, gentio bisonho e audaz, porém também lavrador.

Chegaram depois às cabeceiras do rio Corumbiara, donde, pela sua margem de poente, passaram pelo reino dos ababás, que fizeram suas hostilidades, estrepando os caminhos e dando vários assaltos.

Vieram, daí para cima, encontrando vários lotes de cauixis, gentio que serve aos outros de escravo.


[1] Códice 21,2,2,8A/BNRJ (cf. 21,2,6,33/BNRJ)

[2] Pela margem oriental é acréscimo marginal.

[3] Abalvorando as roncharias é como está na cópia.

[4]Menos” está por “menor a”.

[5] Nota marginal: “Parecis, já não há”.

[6] “Longo é acréscimo marginal.

[7] “Se bem que o destes não é tão comprido” é acréscimo marginal.