Memória[1]

 

Sobre a figura que têm os gentios emauás, habitadores do rio Cumiari e seus confluentes, segundo a fez desenhar e remeter o desenho dela para o Real Gabinete de História Natural o Dr. naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira

 

A tábua Vª representa a figura de um dos gentios mauás, que habitam nas margens do rio Cumiari, o qual deságua na margem oriental do rio Iupurá. Habitam não só no referido Cumiari, mas também em todos os seus confluentes, principalmente nos dous, que se chamam "Lunharé" e "Mepai". Desta qualidade de gentio não havia no estado um tão individual conhecimento, como o que dele se adquiriu depois que pelo dito rio subiram as partidas portuguesa e espanhola, empregadas na atual diligência da demarcação de limites. Contaram para cima de cem malocas, povoadas de semelhante gentio, cuja configuração os distingue muito dos outros. Andam sempre espartilhados como as[2] damas da Europa: Para fazerem o espartilho, preparam uma lâmina de madeira avermelhada, do comprimento de uma até duas varas, em ordem a darem com ela três voltas em roda do ventre, como se fosse uma cinta, adelgaçando a lâmina de sorte, que apenas lhe deixam a consistência, que têm os arcos das bocetas de faia. Dispõem em roda do ventre, com imediato contato sobre a pele uns grossos ponteiros perpendicularmente arranjados, os quais nesta qualidade de espartilhos ficam servindo de barbatanas, e sobre eles cingem a lâmina, atando-a por fora com as fitas que tiram da palmeira do tucum, pintadas de diferentes cores, e os nós que lhes dão pela frente do espartilho, formam o trancelim que o ataca. Donde resulta que, ficando por este modo comprimidas as costelas espúrias pela parte superior das cristas dos rins[3], se elevam as costelas verdadeiras para a parte interna fazendo mais gibosa a cavidade do tórax como sucede aos corcovados e as cristas dos rins[4] se elevam em forma de anquinhas e ficam mais vazadas, como se vê nos esqueletos das mulheres.

Para cobrirem as partes vergonhosas, usam de uma como tanga, em que acaba o espartilho, pela parte exterior[5] somente com a qual ficam encobertos os testículos, que são os que se deixam ver, quando a posição do corpo assim o permite. Quanto ao pênis, de nenhum modo se vê, porque o trazem suspendido pela glande com um fio de curauá[6], de forma, que sempre ande perpendicularmente encostado ao pente,[7] e só para o uso das funções naturais, o desatam. Espartilhado que seja cada um dos ditos gentios, nunca mais tira o espartilho, senão quando ele apodrece e lhe é preciso fazer outro. Espartilhados se lavam no rio, remam nas canoas e se exercitam em todo o gênero de trabalho.

Os seus enfeites consistem nos maços de contas de Moçambique que trazem encruzados ao pescoço e os compram aos espanhóis, pelas três ótimas qualidades de cera branca, amarela e preta que, para o referido negócio, tiram do mato em grande quantidade.

 

Barcelos, 20 de fevereiro de 1787.

Alexandre Rodrigues Ferreira.


[1] Códice 21,1,42 da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

[2] No manuscrito, parece estar escrito “a ouro das” por “como as”.

[3] “espúrias pela parte superior das cristas dos rins” é uma leitura conjetural.

[4] Parece se tratar da crista iliaca, que é a borda superior e curva do ílio.

[5] Entenda-se “exterior” como “anterior”.

[6] Carauá é design. comum às plantas pertencentes a vários gên. da fam. das bromeliáceas, epífitas e terrestres, bastante cultivadas como ornamentais; caraguatá, caravatá, caroá, caroatá, caruatá, caruatá-de-pau, coroá, coroatá, coroá-verdadeiro, craguatá, crauaçu, crauatá, crautá, cravatá, croá, curauá, curuá, curuatá, erva-do-gentio, erva-piteira, gragoatá

[7] Púbis; parte triangular e inferior do abdômen, geralmente coberta de pêlos, nas pessoas adultas.