MEMÓRIA
sobre
as cuias que
fazem as índias de
Monte
Alegre e Santarém
A
matéria de que
as índias fazem as cuias é o fruto da árvore
que elas
chamam cuia-inha, e os portugueses cuieira. A cuieira
quase
todo ano
dá fruto gasta
dous meses para amadurecer,
que é quando
o recolhem; o sinal de que está maduro
é quando batido
o fundo com
as costas de uma faca,
ele tine, isto
é, como a casca
adquire, pela madurez, uma consistência lignosa,
produz aquele som.
Daqui vem que, nas cuieiras se observa
muitas vezes os frutos com alguns regos
cicatrizados na casca mais exterior,
procedidos das tentativas práticas, que lhes fizeram. Uma boa cuieira
chega
a dar por ano 120 até 130
frutos, que
vem a ser 260 cuias,
partido cada
fruto em
duas metades. Planta-se ou de semente ou de estaca.
No primeiro caso, necessita de passar 5
anos, para frutificar; no segundo,
bastão B. Cresce
tanto
nas várzeas como
nas terras firmes
e uma particularidade têm que ainda que seja queimada,
arrebenta de novo, vegeta e frutifica como antes. É
árvore
esta já há muito
conhecida dos naturalistas, e se acha no sistema de
Lineu com o nome
de crescentia-cuieté.
As
cuias ou
são lisas ou
de gomos. Para
saírem de gomos, ajusta-se ao fundo dos frutos,
que ainda
pendem das árvores, uma tabuinha redonda, furada em
roda com
8 furos, por
onde se enfiam 8
cordões,
que subindo (por
eles), se vão
apertar nos
seus pés.
Os frutos que
ainda pertendem crescer
em todas as
dimensões, à proporção
que
intumescem, encontram os cordões, que apertam e, neste caso,
tanto intumescem
nos
espaços que
medeiam entre
eles,
quando se coangustam nos que os têm,
vindo cada cordão
a determinar o vinco
de cada gomo.
Destas
cuias fazem-se
menos,
tanto porque
custam mais trabalho,
como porque
de ordinário uma
só
das ametades se aproveita. No resto, seguem a preparação
das cuias lisas.
E tirado o fruto da
árvore, trata-se de o dividir ao
comprido
em duas ametades,
ao mais que
o olho se pode dividir,
de três modos
o dividem, ou serreando-o com uma pequena
serra, que
para isso têm
de propósito, ou
dando-lhe primeiro um
risco com
ponta
de uma faca e, com
um martelo,
batendo a faca sobre
posta ao risco,
ou atando ao
comprido
um cordão que determina as ametades e, batendo-o também com o martelo, até
internar-se pelo casco. Este último método tem o defeito
de quebrar muitas vezes;
por esta razão
preferem qualquer do dous primeiros. Divididas as ametades, no miolo de cada
uma delas se faz com a ponta da faca uma cruz e, assim,
rapando em roda,
o separam da casca.
Com
a mesma faca ou com o cepilho
se aplanam os lábios e, com outra faca de ponta curva, se desbasta a porção
do miolo mais
arreigado do casco, donde ainda proceda alguma notável
desigualdade de superfície
inferior, até
que ela
fique bem levigada: enxuga-se ao sol pelo espaço de um dia, no verão, e
pelo de dous, no inverno.
Então é que
passam a preparar a casca
exterior.
Ela é vidrenta como
se vê nos
frutos tirados das
árvores, e para
que o seu vidro não repila as tintas,
lançam a cuia de
molho
em água
fria pelo espaço de 6 dias,
ou a cozem em
uma panela ao
fogo, se querem que
logo
amoleça para o rasparem. Em
Monte Alegre outra vez
cuidam de alisar a superfície
interior, com
algum pedaço
de cós, que
há bastante na
serra
Taiauri e nas cabeceiras do rio Maiuru, ou com a pedra
pomes. Esta operação é terminada pela última que fazem em ordem ao seu polimento, pela
última que
lhe fazem em
ordem ao seu
polimento, lixando-a primeiramente com
a escama do peixe
pirarucu, tanto
por fora
, como por
dentro e depois
com a folha
de caimbé, que serve de lixa sutil,
para
a fazer receber o mais perfeito lustro. Lava-se
cada cuia
de perfis e, molhada como está, a vão
pulverizando com a
fuligem,
que as índias chamam "tapená" feita do pau da árvore chamada
"uteira". O melhor de a fazerem consiste
em deixarem arder a tal madeira bem seca até se encarapinhar a fuligem no fundo de uma panela
que para isso está posta
ao fogo, quando
a fuligem (dizem as índias) representa o cabelo dos pretos,
então se deve raspar
e guardar. Desta somente,
é que usam as índias de Monte Alegre: da fuligem do breu também usam as de Santarém, mas
a diferença da
cor
preta é notável,
porque do segundo
modo saia
uma cor preta
a vermelha.
Pulverizada a cuia
com
a sobredita tisna, e bem esfregada com as mãos, enquanto está molhada,
expõem-se ao sol, pelo
espaço
de meio dia,
cuidando-se muito de assim que ela se enxuga, outra
vez molhá-la e esfregá-la com as mãos
molhadas na água do cumati. Veja-se o que é está água.
Tirada a casca
mais exterior
da árvore
cumati, põe-se de infusão em água simples, pelo espaço de 1 até
2 dias, se a
casca
é verde, e por
isso mais
própria, e polo
de 2 até 3, se está
mais
seca; tirada
da infusão em
que estava, pisa-se
em
um pilão
e, pisada, se continua a
lavar
na mesma água
de infusão donde foi tirada, e esta lavagem se
repete, enquanto
não
fica esbranquiçada a casca e já sem goma alguma para ela haver dissolvido a água;
passa-se por uma gurupema bem fina, deixa-se dentro de uma panela
ou pote
pelo espaço
de meio dia,
até assentar
no fundo a fécula,
muda-se agora para
os frascos e nelas a conservam l5, 20 dias sem a
chocalharem, enquanto não usam delas.
E nelas é que molham as mãos, para molharem as cuias pulverizadas da tisna, à
proporção
que se enxugam ao
sol. Uma cautela
prática, antes
de pegarem nelas, que é a de lavarem as mãos com a água em que infundem a raiz
chamada ipioca, a
qual
lhes serve de
sabão,
para evitarem as imperfeições
da pintura, se recaísse sobre um fundo menos limpo. Já a um canto da casa se tem alastrado uma camada
de areia, bem
repassada de ourina choca: nela se abrem tantas
covas
do tamanho e
figura
das cuias, quantas
elas
são. sobre
elas as deitam primeiro
de boca para baixo, e assim
as conservam por 2
horas, e depois de
costas. Serve o vapor
alcalino
da ourina de fixar mais
o fundo preto
e lustrar o verniz
do cumati.
Chamam a isto as índias "ir
à pussanga" quando as tiram dela, pela primeira vez, espalham-nas pelo chão, coisa
de
meio dia,
até perderem o furtim da ourina,
lavam-nas com a
água
da tipioca
e põem-nas de boca para baixo, a escorrerem. Enxutas
que
estejam, outra
vez
lhes dão com
o cumati, de modo
que
cuia enxuta,
cuia molhada
pelo mesmo tempo de meio dia e depois volta para a pussanga da
ourina. Todas estas operações se repetem
por 4 até
5 dias, isto
é, de manhã e de
tarde,
até adquirirem o
lustro
que tem o fundo
preto.
Seguem-se as tintas,
que
cotidianamente as preparam, sem as deixarem de um
para outro dia, são o curi,
a tabatinga, o tauá, o anil,
o urucu, todas
são
purificadas antes de servirem, e
dispostas em pães,
que outra
vez desmancham em
água, para as
misturarem com outras símplices, a saber, o curi, com o suco da semente do urucu,
a tabatinga com
o da raiz do
algodoeiro, o anil
com
a tabatinga, o urucu
é tirado da árvore e, logo, lavado no cumati; e,
tanto
esta como as outras
tintas
são passadas
e coadas por
algodão
descaroçado. Quando
não
há outra cor
semelhante à que
tem a ocra de
ferro,
depois de
queimada,
queima o tauá,
que
é a mesma [...]. As
tigelas
das tintas em
que molham os pincéis, são as coxas e
as pernas com
as saias levantadas
até
aquela altura estão pintando as suas cuias, as que são mais bisonhas; as mais
polidas porém servem-se das folhas de mamona,
por outro
nome carrapato,
no sistema de Lineu, buinus e nelas tem
as tintas, em
que molham os pincéis. Eles são de
várias qualidades; uns da pluma de siracura, outros
da de jacami e outros da do acará branco: além dos pincéis, usam de uns [e]stiletes pont[i]agudos, para pontearem o ornato das rendas que tingem e para isso servem os espinhos
do iaramacaru (cactus) e outros que fazem da palmeira
patauá.
Do fabrico das cuias e do das redes é que se veste a maior parte das índias de Monte
Alegre far-se-ão na vila
por todo
o ano de 5000 até
6000 cuias: há
casa
que faz 500 vende-se cada uma na vila
a 100 e 120 réis,
conforme
o tamanho a
pintura, a qualidade, se é
lisa
ou de gomos.
Fora da vila
duas cuias são
reputadas por um
paneiro de farinha, e uma cuia uma galinha.
Aqui
no rio Negro
uma cuia é um
paneiro de farinha. No Mato Grosso uma
boa cuia val[e] uma
oitava
de ouro. Os brancos,
que sabem disto, as compram das índias para negociarem com elas, as índias que
sabem que os
brancos
as compram, tratam de as trabalhar e
aperfeiçoar. Assim
é coisa constante
nas índias do Monte
Alegre
o trabalho das cuias
e das redes. Nas de Santarém, o dos
pacarás, isto é, baús
de palhinha
pintada e os
chapéus.
As
cuias são
os pratos, os
copos
e toda a baixela
dos índios. Cada
um tem sua
casa uma delas
reservada
para dar a
beber,
ou água,
ou as seus
vinhos ao principal,
quando o visita,
ou casualmente,
ou em
algum dia
de convite. Consiste o
distintivo
dela, em ser
ornada de algum búzio,
seguro por
uma bola de cera,
toda cravada de missanga, e sua muraquita, em
cima, que
lhe serve de asa
em que
pega o principal.
Oferece-se ao dito a cuia em cima de uma salva
que é feita
de ponteiros de patanha, segundo representam as duas
amostras
da remessa passada do no 13 do caixão 3º por mais diligência
que fiz por
comprar uma destas cuia
satisfação da sua
dona, não
foi possível:
tanto
é o apreço que
fazem da taça por
onde bebe o seu
principal. somente
também o branco,
a que elas
oferecem água na
tal
cuia pode lisonjear-se do respeito e atenção
que lhes
merece. A maior
grosseria
e desatenção nesta
caso, seria a de rejeitar. –
imitação
das índias, também trabalham nas cuias algumas mazombas trabalham
já
ensinadas pelos
europeus
no tocante às
cores, ao gosto e à
riqueza
da pintura, ora
dourada, ora prateada, mas
há cuia destas de
encomenda,
que importa a seu
dono 12$800 réis,
como ao tenente-coronel Teodósio
Constantino de Chermont importou
uma que enviou para
Lisboa. Ela não
tinha diferença
de mais belo
e rico Xarão. Na vila
de Monte Alegre,
as mamelucas filhas de morador Manoel Ribeiro
Pinto estavam fazendo um aparelho de chá feito de cuias que lhe havia encomendado Dionísio Gonçalves Lisboa administrador do contrato
do Pesqueiro Real
na Vila de Santarém. Isto é o que
tenho observado,
que
as povoações [p]radicam em si certa indústria
a que mais
se afeiçoam. Em
Monte Alegre
as cuias, em
Santarém os pacarás, tabuleiros e chapéus de palha,
em Óbidos as
redes,
em Faro
a olaria, em
Serpa o fio de
algodão, Nesta indústria,
longe
de entrar no monopólio
dos diretores, deveria
ser
compensada até
com pagas
de caprichos, institui[n]do-se as feiras ou nas povoações ou cidades., pelas vezes
precisas no ano,
como
no Rio de Janeiro
fez o marquês de
Lavradio. Veja-se a Memória
sobre
as salvas de
palhinha
e pacarás em
que
aponto razão
porque
todos estas
curiosidades
das indústrias das índias lhes não são tão
lucrativas como parece que deviam ser.
Barcelos 4 de fevereiro de 1786.
Códice
21,1,33 da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Internar-se ou interrar-se?
A palavra "polo" é um arcaísmo que não mais se usa.
Gurupema ou Urupema é
uma peneira de
fibra
vegetal.
Não está escrito "cousa", no manuscrito?
É isto
mesmo? Neste
caso, significa "custou".