MEMÓRIA

sobre as cuias que fazem as índias de

Monte Alegre e Santarém[1]

 

A matéria de que as índias fazem as cuias é o fruto da árvore que elas chamam cuia-inha, e os portugueses cuieira. A cuieira quase todo anofruto gasta dous meses para amadurecer, que é quando o recolhem; o sinal de que está maduro é quando batido o fundo com as costas de uma faca, ele tine, isto é, como a casca adquire, pela madurez, uma consistência lignosa[2], produz aquele som.  Daqui vem que, nas cuieiras se observa muitas vezes os frutos com alguns regos cicatrizados na casca mais exterior, procedidos das tentativas práticas, que lhes fizeram. Uma boa cuieira chega a dar por ano 120 até 130 frutos, que vem a ser 260 cuias, partido cada fruto em duas metades. Planta-se ou de semente ou de estaca.  No primeiro caso, necessita de passar 5 anos, para frutificar; no segundo, bastão B.   Cresce tanto nas várzeas como nas terras firmes e uma particularidade têm que ainda que seja queimada, arrebenta de novo, vegeta e frutifica como antes.  É árvore esta muito conhecida dos naturalistas, e se acha no sistema de Lineu com o nome de crescentia-cuieté.

As cuias ou são lisas ou de gomos. Para saírem de gomos, ajusta-se ao fundo dos frutos, que ainda pendem das árvores, uma tabuinha redonda, furada em roda com 8 furos, por onde se enfiam 8 cordões, que subindo (por eles), se vão apertar nos seus pés. Os frutos que ainda pertendem crescer em todas as dimensões, à proporção que intumescem, encontram os cordões, que apertam e, neste caso, tanto intumescem nos espaços que medeiam entre eles, quando se coangustam[3] nos que os têm, vindo cada cordão a determinar o vinco de cada gomo.

Destas cuias fazem-se menos, tanto porque custam mais trabalho, como porque de ordinário uma das ametades se aproveita.  No resto, seguem a preparação das cuias lisas.

E tirado o fruto da árvore, trata-se de o dividir ao comprido em duas ametades[4], ao mais que o olho se pode dividir, de três modos o dividem, ou serreando-o com uma pequena serra, que para isso têm de propósito, ou dando-lhe primeiro um risco com  ponta de uma faca e, com um martelo, batendo a faca sobre posta ao risco, ou atando ao comprido um cordão que determina as ametades e, batendo-o também com o martelo, até internar-se[5] pelo casco. Este último método tem o defeito de quebrar muitas vezes; por esta razão preferem qualquer do dous primeiros. Divididas as ametades, no miolo de cada uma delas se faz com a ponta da faca uma cruz e, assim, rapando em roda, o separam da casca. Com a mesma faca ou com o cepilho se aplanam os lábios e, com outra faca de ponta curva, se desbasta a porção do miolo mais arreigado do casco, donde ainda proceda alguma notável desigualdade de  superfície inferior, até que ela fique bem levigada: enxuga-se ao sol pelo espaço de um dia, no verão, e pelo de dous, no inverno. Então é que passam a preparar a casca exterior.

Ela é vidrenta como se nos frutos tirados das árvores, e para que o seu vidro não repila as tintas, lançam a cuia de molho em água fria pelo espaço de 6 dias, ou a cozem em uma panela ao fogo, se querem que logo amoleça para o rasparem. Em Monte Alegre outra vez cuidam de alisar a superfície interior, com algum pedaço de cós, quebastante na serra Taiauri e nas cabeceiras do rio Maiuru, ou com a pedra pomes. Esta operação é terminada pela última que fazem em ordem ao seu polimento, pela última que lhe fazem em ordem ao seu polimento, lixando-a primeiramente com a escama do peixe pirarucu, tanto por fora , como por dentro e depois com a folha de caimbé, que serve de lixa sutil, para a fazer receber o mais perfeito lustro.  Lava-se cada cuia de perfis e, molhada como está, a vão pulverizando com a fuligem, que as índias chamam "tapená" feita do pau da árvore chamada "uteira". O melhor de a fazerem consiste em deixarem arder a tal madeira bem seca até se encarapinhar a fuligem no fundo de uma panela que para isso está posta ao fogo, quando a fuligem (dizem as índias) representa o cabelo dos pretos, então se deve raspar e guardar. Desta somente, é que usam as índias de Monte Alegre: da fuligem do breu também usam as de Santarém, mas a diferença da cor preta é notável, porque do segundo modo saia uma cor preta a vermelha.

Pulverizada a cuia com a sobredita tisna, e bem esfregada com as mãos, enquanto está molhada, expõem-se ao sol, pelo espaço                                                                                                   de meio dia, cuidando-se muito de assim que ela se enxuga, outra vez molhá-la e esfregá-la com as mãos molhadas na água do cumati. Veja-se o que é está água. Tirada a casca mais exterior  da árvore cumati, põe-se de infusão em água simples, pelo espaço de 1 até 2 dias, se a casca é verde, e por isso mais própria, e polo[6] de 2 até 3, se está mais seca; tirada da infusão em que estava, pisa-se em um pilão e, pisada, se continua a lavar na mesma água de infusão donde foi tirada, e esta lavagem se repete, enquanto não fica esbranquiçada a casca e sem goma alguma para ela haver dissolvido a água; passa-se por uma gurupema[7] bem fina, deixa-se dentro de uma panela ou pote pelo espaço de meio dia, até assentar no fundo a fécula, muda-se agora para os frascos e nelas a conservam l5, 20 dias sem a chocalharem, enquanto não usam delas.

E nelas é que molham as mãos, para molharem as cuias pulverizadas da tisna, à proporção que se enxugam ao sol. Uma cautela prática, antes de pegarem nelas, que é a de lavarem as mãos com a água em que infundem a raiz chamada ipioca, a qual lhes serve de sabão, para evitarem as imperfeições da pintura, se recaísse sobre um fundo menos limpo. a um canto da casa se tem alastrado uma camada de areia, bem repassada de ourina[8] choca: nela se abrem tantas covas do tamanho e figura das cuias, quantas elas são. sobre elas as deitam primeiro de boca para baixo, e assim as conservam por 2 horas, e depois de costas. Serve o vapor alcalino da ourina de fixar mais o fundo preto e lustrarverniz do cumati.

Chamam a isto as índias "ir à pussanga" quando as tiram dela, pela primeira vez, espalham-nas pelo chão, coisa[9] de meio dia, até perderem o furtim da ourina, lavam-nas com a água da tipioca[10] e põem-nas de boca para baixo, a escorrerem. Enxutas que estejam, outra vez lhes dão com o cumati, de modo que cuia enxuta, cuia molhada pelo mesmo tempo de meio dia e depois volta para a pussanga da ourina. Todas estas operações se repetem por 4 até 5 dias, isto é, de manhã e de tarde, até adquirirem o lustro que tem o fundo preto.

Seguem-se as tintas, que cotidianamente as preparam, sem as deixarem de um para outro dia, são o curi, a tabatinga, o tauá, o anil, o urucu, todas são purificadas antes de servirem, e dispostas em pães, que outra vez desmancham em água, para as misturarem com outras símplices, a saber, o curi[11], com o suco da semente do urucu, a tabatinga com o da raiz do algodoeiro, o anil com a tabatinga, o urucu é tirado da árvore e, logo, lavado no cumati; e, tanto esta como as outras tintas são passadas e coadas por algodão descaroçado. Quando nãooutra cor semelhante à que tem a ocra de ferro, depois de queimada, queima o tauá, que é a mesma [...]. As tigelas das tintas em que molham os pincéis, são as coxas e as pernas com as saias levantadas até aquela altura estão pintando as suas cuias, as que são mais bisonhas; as mais polidas porém servem-se das folhas de mamona, por outro nome carrapato, no sistema de Lineu, buinus e nelas tem as tintas, em que molham os pincéis. Eles são de várias qualidades; uns da pluma de siracura, outros da de jacami e outros da do acará branco: além dos pincéis, usam de uns [e]stiletes pont[i]agudos, para pontearem o ornato das rendas que tingem e para isso servem os espinhos do iaramacaru (cactus) e outros que fazem da palmeira patauá.

Do fabrico das cuias e do das redes é que se veste a maior parte das índias de Monte Alegre far-se-ão na vila por todo o ano de 5000 até 6000 cuias: há casa que faz 500 vende-se cada uma na vila a 100 e 120 réis, conforme o tamanho a pintura, a qualidade, se é lisa ou de gomos. Fora da vila duas cuias são reputadas por um paneiro de farinha, e uma cuia uma galinha Aqui no rio Negro uma cuia é um paneiro de farinha. No Mato Grosso uma boa cuia val[e] uma oitava de ouro. Os brancos, que sabem disto, as compram das índias para negociarem com elas, as índias que sabem que os brancos as compram, tratam de as trabalhar e aperfeiçoarAssim é coisa constante nas índias do Monte Alegre o trabalho das cuias e das redes.  Nas de Santarém, o dos pacarás[12], isto é, baús de palhinha pintada e os chapéus.

As cuias são os pratos, os copos e toda a baixela dos índios. Cada um tem sua casa uma delas reservada para dar a beber, ou água, ou as seus vinhos ao principal, quando o visita, ou casualmente, ou em algum dia de convite. Consiste o distintivo dela, em ser ornada de algum búzio, seguro por uma bola de cera, toda cravada de missanga, e sua muraquita, em cima, que lhe serve de asa em que pega o principal. Oferece-se ao dito a cuia em cima de uma salva que é feita de ponteiros de patanha, segundo representam as duas amostras da remessa passada do no 13 do caixãopor mais diligência que fiz por comprar uma destas cuia satisfação da sua dona, não foi possível: tanto é o apreço que fazem da taça por onde bebe o seu principal. somente também o branco, a que elas oferecem água na tal cuia pode lisonjear-se do respeito e atenção que lhes merece. A maior grosseria e desatenção nesta caso, seria a de rejeitar. – imitação das índias, também trabalham nas cuias algumas mazombas trabalham ensinadas pelos europeus no tocante às cores, ao gosto e à riqueza da pintura, ora dourada, ora prateada, mascuia destas de encomenda, que importa a seu dono 12$800 réis, como ao tenente-coronel Teodósio Constantino de Chermont importou[13] uma que enviou para Lisboa. Ela não tinha diferença de mais belo e rico Xarão. Na vila de Monte Alegre, as mamelucas filhas de morador Manoel Ribeiro Pinto estavam fazendo um aparelho de chá feito de cuias que lhe havia encomendado Dionísio Gonçalves Lisboa administrador do contrato do Pesqueiro Real na Vila de Santarém. Isto é o que tenho observado, que as povoações [p]radicam em si certa indústria a que mais se afeiçoam.  Em Monte Alegre as cuias, em Santarém os pacarás, tabuleiros e chapéus de palha, em Óbidos as redes, em Faro a olaria, em Serpa o fio de algodão, Nesta indústria, longe de entrar no monopólio dos diretores, deveria ser compensada até com pagas de caprichos, institui[n]do-se as feiras ou nas povoações ou cidades., pelas vezes precisas no ano, como no Rio de Janeiro fez o marquês de Lavradio. Veja-se a Memória sobre as salvas de palhinha e pacarás em que aponto razão porque todos estas curiosidades das indústrias das índias lhes não são tão lucrativas como parece que deviam ser.

 

Barcelos 4 de fevereiro de 1786.


[1] Códice 21,1,33 da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

[2] “Lignosa” é um latinismo equivalente a “lenhosa”, com a consistência de madeira.

[3] “Coangustam” é um latinismo correspondente a “estreitam” ou “apertam”.

[4] “Ametades” é arcaísmo correspondente a “metades”

[5]Internar-se ou interrar-se?

[6] A palavra "polo" é um arcaísmo que não mais se usa.

[7] Gurupema ou Urupema é uma peneira de fibra vegetal.

[8] “ourina” pe variante de “urina”.

[9] Não está escrito "cousa", no manuscrito?

[10] Tipioca ou Ipioca?

[11] “curi” é “argila vermelha”

[12]  “Pacará” é uma cesta redonda feita com palha de palmeira e em várias cores.

[13] É isto mesmo?    Neste caso, significa "custou".