Memória sobre o isqueiro,
ou caixa de guardar a isca para o fogo,
a qual foi remetida no caixão número
da primeira remessa do Rio Negro
[1]

 

O que os portugueses chamam "isca", para o fogo da palavra latina, essa mudado o (e) em (i), chamam os índios "tatapotaba". É uma palavra composta das duas: "tata" que significa fogo, e "potaba", porção. Os que têm lido a gramática da língua e são versados nela, sabem que concorrendo dos substantivos, um após (d)o outro, o primeiro fica sendo genitivo do segundo. Segue-se que vertida literalmente, a palavra "tata-potaba" quer dizer entre nós "ração do fogo", quinhão do pasto que cabe ao fogo etc. Por conseguinte, significando a outra palavra "rero" o mesmo que lugar, tata-potaba-rero, vem a dizer o mesmo que "lugar ou caixa do pasto do fogo". Tal é o nome que tem esta peça, os mazombos a chamam "isqueiro".

Há nele duas coisas a considerar: o cilindro, que serve de caixa à sobredita isca, e a isca em si. Quanto à primeira, é um gomo da cana vulgarmente chamada "taboca". Este é um nome genérico, o qual compreende diversas espécies de canas. Taboca-uaçu é a cana maior e mais grossa; tacoara é a de que faz o gentio mura as pontas das suas flechas, e para isso a cultiva; tacoaris são os canudos dos cachimbos e servem para os fogos artificiais; tabocaí val[e] o mesmo que taboquinha ou caniço. Das duas primeiras espécies fazem duas diferenças em cada uma, a saber: tabocarete e tabocarana, para distinguirem a verdadeira da falsa. No tocoari e na tabocaí, a ser essa terceira diferença, se é "membeca" ou "santã" isto é, mole ou dura.

Para servir de isqueiro, fura-se o fragma do fundo do gomo, pelo [fu]ro se empurra com um pa[u] pont[i]agudo ou com outro instrumento a isca para cima, à proporção que o fogo consome a que fica imediata ao bocal. Raspam o vid[ro] exterior do gomo, antes de esfregarem com a entrecasca da árvore "xixi" (espécie de mimosa).[2] Passam a barr[e]á-lo com o tijuco, a caparrosa de que ele abunda lhe cai sobre a adstringente da entrecasca[3]. Por conseguinte, comunica ao gomo o fundo preto em que acentam as outras cores. São a ocra de ferro, a argila encarnada e as féculas do urucu e do carajuru. Escolhem-se os gomos da grossura que têm os dois da amostra, ela deve ser tanta quanta se abarque com a mão. Gomos há de 7 polegadas de diâmetro, de palmo e de mais de palmo, donde procede que os seus usos são muitos e mui diversos.

As canas mais grossas, rachadas ao cumprido e endireitadas ao fogo, servem de tábuas para os assoalhos das palhoças térreas e para os tendões que em algumas povoações são os sobrados das casas. Delas, sem outro benefício, lançam mão os habitantes para os cercados dos quintais, para escadas de mão, para os andaimes dos carpinteiros e, geralmente, a cana madura e assada a um fogo moderado, toma a consistência das madeiras mais fortes e mais duráveis. Delas são feitos os pentes para os teares do algodão. Dos gomos, conforme eles são mais e menos grossos ou cumpridos, assim se aproveitam os curiosos e preenchem as vistas da economia. Curtidos ao fumo, para se lhes extinguir a umidade, servem de frascos para o azeite, de latas para o tabaco, de vasos para os medicamentos, de barrilotes para a pólvora e para o sabão; e o certo é que nele se conserve bem e, às vezes, melhor do que nos vidros, tudo que se deve preservar da umidade. Até servem de canudos para conservar e remeter papéis, mapas etc., como se nos que deu para amostras deste uso o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor João Pereira Caldas, e vão remetidos no caixão número 6. A vantagem que têm estes sobre os outros canudos de folha de flandres é a de se não enferrujarem por ocasião dos lon[gos] transportes nem umedecerem pela irregularidade da atmosfera [  ], os mais curiosos raspam-lhes o vidro, torram-nos e envernizam-nos por fora;  remetem-se outras duas amostras que representam duas cucharras para can[hõ]es.[4]

Aplicam-se os gomos menos grossos para os fogos de artifícios, marciais e festivos. O tenente coronel Teodósio Constantino de Chermont, prefere os caniços da chamada "tabocaí" ao cobre e a folha de flandres, para uso das ditas espoletas, os bassinetes das [  ] os [  ] [  ] de [  ] [  ] [  ] [  ][5] Todo o mundo sabe o quanto estes metais se deixam atacar pelas substâncias salinas que entram na composição do seu ingesto inflamável.  Tenho observado que as espoletas de folha de flandres o mais que chegam a durar neste país, não passa de 1 mêsPara durarem tanto, tem lhe sido preciso secá-las ao forno imediatamente que as conclui e conservá-las em vidros ordinariamente sucede que passa[n]do-se até 15 dias, estão corroídas dos sais as que não são feitas e conservadas com as precauções indicadas.  Sem tantos riscos e sem tanto custo se tem  aproveitado dos caniços. As espoletas, feitas deles sem serem envernizados, há 19 anos que se conservam capazes de servir e por todo este tempo nenhuma ruína têm experimentado.  Quando a razão e a experiência alegada, se por si não bastasse para a preferência dos caniços[6] em semelhante uso e para o seu apreço, entre nós, bastaria considerar-se por outra parte com um teto verdadeiramente patriótico a outra razão da economia.  O cobre e a folha de flandres são metais que se compram aos estrangeiros. de feitios das espoletas pagou Sua Majestade nesta capitania a razão de 60 por cada uma.  Ambos estes desembolsos dispensam os caniços,  o da matéria e o da forma; a primeira é produção do país, a segunda é obra da natureza. Os gomos maiúsculos e de proporcionada grossura dispensam o papel de cartucho de que fazem os botafogos. Custam menos, são mais fáceis de se fazerem e não necessitam de formas como os outros São gêneros da primeira necessidade para os fogos de iluminação; para morteiros dela aplica o citado tenente-coronel os gomos mais grossos do ba[mbu] depois de trincafiados[7] como se costuma.  O que a respeito da taboca tenho até agora visto de mais custos e de muito bem lembrado é o realejo (os) dos seus gomos organiza[do pelo] capitão tesoureiro da Fazenda Real da demarcação Francisco Xavier de Andrade. Eu não o ouvi porque o achei desconcertado, mas dizem-me os que o ouviram, e o mesmo autor me assevera, que nenhuma diferença tem as suas das vozes dos outros e as que há é para melhor em razão da matéria.[8]

Quanto à isca de que está provido o isqueiro, é uma matéria tirada dos ninhos da formiga "taracuá".  Ela tem o trabalho de recolher esta substância que não é outra coisa mais do que o cotão da página exterior da folha da árvore "paranari". Os índios têm cuidado de [o] aproveitarem para a isca, depois de recolhido e ajuntado pelas formigas.  Usam dele em ambas as capitanias e para ferirem lume, não se afligem pela falta de fuzil.  Esfregam entre si dois paus que sempre escolhem de madeira mole, como o cacau, o molongo, o curumi-ihua, os talos dos cachos das palmeiras patauá, macaba, obossu e o movimento excitado pelo atrito, excita o fogo.

Da pele do pescoço da tartaruga yuraxá-reté, é feito o tampo do gomo. Serve para preservar a isca da umidade e para lhe apagar o fogo, privando-a do ar que o entretem[9] enquanto é preciso.

Barcelos, 2 de fevereiro de 1786


[1] Códice 21,1,12 da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, proveniente do espólio trazido pelo Barão de Drummond, como se na anotação incluída logo após este título: “B.N. original da mão do autor, Alexandre Rodrigues Ferreira. Lisboa, 2 janeiro 1849. Drummond.”

[2] O manuscrito encontra-se danificado dificultando a leitura em alguns fragmentos.

[3] Frase de difícil compreensão.

[4] No manuscrito está escrito “can[..]ens”.

[5] Lamentamos não poder reconstituir este fragmento.

[6]Preferência” exige a regência com a preposição “a” e não “de”, que ainda é vigente na língua oral.

[7] Costurados ou amarrados com trincafios ou fios de sapateiro.

[8] Encontra-se escrito no rodapé da página no manuscrito: "Em ofício sou [   ] de [ ] de 1786 se encomendaram ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Martinho de Souza de Albuquerque, o qual passou a encomendar ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor João Pereira Caldas as [  ] em [  ]. Remeto, Sua Excelência, um abundante fornecimento delas em 24 de fevereiro de 1787 para  as [  ] não [ ]charem é [  ] [  ], quando estão maduras [  ] [  ]    [   ] quanto de dentro dos gomos não sai água e se estão [  ] pelos meses de dezembro a janeiro. Depois de cortadas conservam-se ao fundo [  ] [  ] de todo.

[9] Talvez seja interessante registrar a variante “enterter” que persiste na língua viva do Brasil, com a sua conjugação regular – “Eles entertem as meninas e elas se entertem também”.