[MEMÓRIA SOBRE OS GENTIOS CATAUIXIS][1]

 

A tábua IIª representa uma gentia da nação catauixi, que é uma das habitantes do rio dos Purus, o qual deságua na margem meridional do rio Solimões; nação aquela dos purus, de quem se contam e se escrevem muitas superstições que ela pratica, entre as quais é célebre a do jejum expiatório, a que ela se entrega por preceito de religião; sendo tão rigorosa entre eles a abstinência de tudo que, enquanto obriga o preceito, nem ainda no caso de lhes sobrevir alguma enfermidade, ou comem ou tratam de si. De maneira que, alguns chegam a morrer de desfalecidos, escolhendo antes morrer para cumprir a lei, do que violá-la para viver.

São dignas de reparo nos gentios catauixis as manchas brancas, hereditárias, que todos eles têm na cútis de diferentes partes de seus corpos, como são nos pés, nas mãos, nos peitos, nos pescoços e nas faces. Digo hereditárias porque, para elas não concorre da sua parte artifício algum, nem tampouco[2] aquelas manchas se deixam ver quando nascem as crianças; porém, logo depois do nascimento se anunciam em uns; a outros já depois de adultos é que sobrevêm; alguns há que, de vinte anos para cima principiam a tê-las; e em outros se não conhecem.

É, porém, de notar (escreve o autor do acusado Diário) que estas manchas, se comunicam como contágio. Sobre o que se deve refletir, a esta palavra "alfos", do verbo grego Alfonoin (mudar) porque se muda a cor da pele, corresponde em latim estoutra "vitiligo", a qual indica uma mancha na pele, sem aspereza manifesta, sem escamas aparentes e sem ulceração; o que a distingue da sarna, da lepra e dos outros tumores desta natureza de cujos "alfos" se contam três espécies, que são:

1ª) Alfos propriamente ditos, os quais são umas manchas esbranquiçadas, algum tanto ásperas ao tato, semeadas de algumas escamas imperceptíveis, sem serem contínuas as repetidas manchas; porém sim, dispersadas como por gotas, algumas vezes chatas, assaz largas e entrecortadas; estas somente ocupam a superfície da pele.

2ª) Chamada melas, de "melas" grego, que significa preto; a qual só na cor difere do alfos; porque, sendo uma mancha igualmente superficial, difere em ser de uma cor trigueira e de sombra; de que algumas pintas aparecem pelos corpos dos referidos gentios.

3ª) A que dão nome de "leuci" e grego "branco" e em latim "vitiligo alba", a qual, sendo nisto semelhante ao alfos, só difere dele, em ser esta uma mancha mais profunda e em penetrar até à superfície da carne; da qual faz Porrêo uma espécie de lepra, e esta é a espécie de alfos a que parece que se deve reduzir a dos gentios catauixis.

Não sendo nada perigosas para a vida e para a saúde, as duas primeiras manchas alfos e melas, por não procede[re]m de outra causa mais, que de uma sinfa grosseira que se demora nas extremidades dos vasos excretórios da pele e que penetra os corpos mucosos; evaporando-se pela transpiração, a parte mais porosa, e sutil desta sinfa e ficando tão somente a mais grosseira, que é a que produz as manchas, as quais, sendo procedidas de um humor carregado e atrabil[i]ar, produzem o melas. Algum perigo ameaçam as outras manchas leuci; porque procedendo elas de uma sinfa grosseira e acre, a qual obstrui não somente as glândulas cutâneas e os vasos da pele, mas também os vasos sinfáticos da carne que está debaixo. E, acometendo as raízes dos pêlos, que ela faz cair, de maneira que os que renascem, são brancos, pequenos, finos e delicados como os das plumas mais delicadas das aves. Podem as ditas manchas ser efeito de algum vírus venéreo, escorbútico ou leproso, e este vírus hereditário de toda uma nação. Pelo que me parece que para o curativo delas se devem experimentar os mesmos remédios que para a sarna e lepra dos gregos.

 

Barcelos, 04 de junho de 1788.

Alexandre Rodrigues Ferreira.


[1] Códice 21,1,34 da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

[2] A forma "tão pouco", que ocorre no manuscrito, não corresponde a uma pronúncia diferenciada.