MEMÓRIA SOBRE OS INSTRUMENTOS,
DE QUE USA O GENTIO
PARA TOMAR O TABACO "PARICÁ"
OS QUAIS FORAM REMETIDOS NO CAIXÃO Nº 7
DA PRIMEIRA REMESSA DO RIO NEGRO[1]

 

Todo este aparelho é preciso ao gentio mangué, para tomar a seu modo o tabaco "paricá"[2]. Consta de um almofariz "induá", com a sua madeira "induá-mona". Uma escovilha "tapixana", um caracol "iapuruxitá", uma plancheta de madeira e dous [ossos] das asas de uma ave, juntos um ao outro. Veja-se a explicação seguinte.

Serve de almotariz uma das ametades em que dividem a cápsula das castanhas chamadas "do Maranhão". Pisam dentro nele e reduzem a sutil os frutos da árvore "paricá" depois de torrados. Nele consiste o seu mais estimado tabaco.

A que parece novilha é um feche de sedas da cauda do tamanduá. O seu uso é o de alimpar o almofariz e o de estender o tabaco pelo vazado da plancheta.

O caracol (helix terrestris), pela serventia que tem, toma o nome de "paricá-reru", que quer dizer caixa de paricá. Com algum outro pedaço de concha da mesma espécie [tapam] a boca do caracol: grudam-no com a resina do "anani" e, sem mais custo, fica feita a caixa de tabaco. Para o introduz[ir]em nela e para o vazarem na plancheta, abrem o vértice da espira e, na abertura o bocal, que é o gargalo de um cabaço.

A plancheta costuma ter a figura de algum animal: a que tem a da amostra, dizia o índio (o) seu dono, que [t]em a de um jacaré: a figura e os lavores são feitos com os dentes das cutias e de outros animais; estes são as suas goivas, formões, plainas, etc. Da madrepérola da concha "itã" tingem os olhos embutidos nas cavidades que os devem representar. A extremidade da peça representa uma vazada do meio para baixo: chama-se "paricá-rendana": val[e] o mesmo que lugar em que se vaza o "paricá".

Os dois ossos dos braços das asas, escolhem-se daquelas aves que os têm mais compridos; tais são os tujujus, maguari, aiaiás, etc.; tiram o tutano a ambos, ajuntam um ao outro, mediante o tecido de um fio fino de algodão e, com a interposição das duas como costas que tem, e são da palmeira "paxiúba", impedem que do meio para cima se ajuntem tanto que não fique medi[a]do e separado o intervalo das ventas. Para se aproximarem a elas, grudam nas suas extremidades superiores os 2 coquilhos da palmeira "iúne", tirado de dentro o miolo, descascada a casca exterior e abertos os buracos.

Veja-se o modo de tornar o paricá:

Despejada no vazado da plancheta a porção que se há de tomar, nele se espalha por igual com o cabo da escovilha, que representa uma [catrabucha]. O que a há de tomar pega com a chave da mão esquerda no enfranque da plancheta, que parece o pescoço do jacaré, e, tendo voltado para si o vazado dela, com a direita aproxima às ventas as extremidades superiores dos dois ossos, e ao vazado da plancheta, as inferiores. Assim serve pelos dois sifões a porção que despejou para a tomar. Dele usa o gentio nas grandes bacanais chamadas do "paricá", e elas têm uma casa grande, feita de propósito, sem repartição alguma, e por isso denominada "casa do paricá".

Principia a cerimônia das bacanais por uma crudelíssima flagelação: açoitam-se reciprocamente uns aos outros com um azorrague dos couros do peixe-boi, anta ou veado. Na falta disto supre uma corda de pita bem torcida, do comprimento de uma braça: tem na extremidade uma pedra ou outro qualquer apenso que seja sólido e que fira. Açoitam-se de dois a dois: o paciente recebe os açoites de e com os braços abertos, em que o flagelante o sustiga à sua vontade. Pouco depois passa o flagelante para flagelado e, assim, cada parelha segue o seu turno: nisto consomem 8 dias eles na cerimônia da flagelação e as velhas na preparação do paricá e na dos vinhos das frutas e do beiju. Segue-se a função de participarem dela, os que participaram dos açoutes. A virtude narcótica do paricá, o modo de [pr]escrever e a demasia dos vinhos obram com tanta violência que os que não morrem algumas vezes sufocados do tabaco, caem semimortos; caídos ficam até lhes passar a borracheira. Passada a primeira, principia a segunda: é do estatisto[3] da festa durar a borracheira tanto quanto duraram os açoutes.[4]

Barcelos, 13 de fevereiro de 1786.


[1] Códice 21,1,16,1 da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

[2] “Paricá” é designação comum a árvores de diferentes gêneros e subfamílias da família das leguminosas, especialmente do gênero Parkia, da subfamília mimosoídea.

[3] Parece ser o mesmo que estatística.

[4] Aqui se fez a seguinte anotação, completamente fora do contexto:

Pará

      O anil do Pará e do rio Negro é de excelente qualidade. Por aviso de 29 de abril de 1790 mandou Martinho de Melo e Castro, que [   ] comprar e vendar livremente, embarcar-se  para Portugal sem pagar direitos alguns”.