MEMÓRIAS[1]

Sobre os gentios caripunas, que habitam na margem ocidental do rio Iatapu, o qual deságua na margem oriental do rio Uatumã, segundo os fez desenhar, e remeter para o Real Gabinete de Historia Natural, o dr. naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira.

 

A tábua 1ª representa

um dos gentios caripunas, que o diretor da vila de Serpa Antônio Vieira Correia da Maia, achou situados na margem ocidental do rio Iatupu, na distância de quatorze dias de viagem, acima da sua foz. Em cumprimento da ordem que lhe expediu o Ilmo. e Exmo. Senhor João Pereira Caldas, na data de trinta e um de janeiro do corrente ano de 1787; encarregando-o de ir ele explorar rio do Uatumã, que deságua na margem boreal do grande rio das Amazonas; oito léguas abaixo de primeiro furo do Saracá, por onde se entra para se ir a vila de Silves; e de se internar pelo dito Uatumã e pelos seus confluentes, até às suas cabeceiras; reconhecendo todas e cada uma das suas comunicações, principalmente as da sua margem ocidental, e averigua se alguma delas se facilita passagem para a colônia holandesa de Suriname. Entrou e subiu por ele enquanto se lhe não ofereceu a foz do sobredito Iatapu, que deságua na Uatumã, pela sua margem oriental, e tendo interinamente deixado este para subir por aquele, depois de vencida a décima cachoeira, deu fé de umas três aldeias de três diversas nações de gentios chamados eles maiuais, caripunas e irapaianas. Distantes que eram, apenas pôde surpreender uns dous caripunas, porque todos os outros assim que os sentiram, se retiraram para os centros dos matos desamparando as suas malocas e deixando nela todos os sues móveis e utensis domésticos.

Acha-se neste gentio a novidade de ter a testa rapada, como a rapam na Europa os que usam de cabeleira; e nos seus bailes, usam dos enfeites e ornamento, que vão explicados pelos seus números.

 

N Iº

Ornato da cabeça em forma de coroa sem imperiais; a qual tecida de palhinha pintada de preto pelo modo que se deixa ver a cópia e do original que remeto no caixão "N 1º" da sétima remessa do rio Negro.

 

N 2º

É uma porra[2] que ajusta na cabeça como coifa e continua sem ser fechada pelo comprimento do dorso de quem atrás; dividindo-se em duas pernas, que acabam com seus martinetes rematados em borlas de fio de piteira. A porra é de algodão, porém os dous círculos pretos que tem a coifa, e a pintura que corresponde ao meio do dorso, são de cabelo. Veja-se o original remetido no sobredito caixão.

 

N 3º

É um instrumento músico, à imitação das raças que em Portugal se fazem de folhas de flandres, para entretimento das crianças. O que chocalha nesta, ou são algumas sementes que lhes introduzem, ou também costumam ser alguns peixinhos do fundo dos ribeiros.

As suas armas são murucus, curabis ervados, cuidarus, algumas braçangas, arcos e tacoaras. Os seus utensis eram algumas panelas dos que por aqui se chamam igaçabas; redes para dormirem, a que se dá o nome de maqueiras, e são tecidas do fio, em que torcem as folhas da palmeira muruti; cabaços, cuias, balaios, gurupemes,[3] tipitis, abanos, ralos e todo o mais trem preciso para fabricarem as farinhas e os beijus de mandiocas.

Não se admirará por certo a simplicidade de semelhantes utensis, se se refletir que os esforços do espírito e da indústria dos povos, que em nenhuma outra cousa se ocupam, senão na guerra e na caça, só a estes dous objetos se limitam. Quanto aos outros objetos são tão limitados os seus desejos, estão contraídas as suas necessidades, que toda a sua invenção certamente não acha em que se exercitar. Como todo o seu sustento e vestidos são muitos símplices, também os seus utensis são poucos, e esses mesmos, grosseiros. Acresce que entre eles nenhuma idéia há de propriedade: tudo é para todos. Basta que um dos do rancho tenha feito um ralo, para todos entrarem em direito de se servirem dele. A sua indolência natural é outro obstáculo que encontrarão a multiplicidade dos móveis, e o mecanismo, e a conveniência da sua construção. Principiam friamente a fazer uma maquira: continuam com pouca atividade, e como se fossem umas crianças, qualquer bagatela basta para os distrair. Uma canoa entre suas mãos chega o apodrecer de velha antes de a eles concluírem. Por mais fáceis que sejam, as suas operações manuais consomem muito tempo. Faltam-lhes as ferramentas e todo o gênero de menos empregar a sua paciência e assiduidade no trabalho de copiar o que vêem com uma exatidão servil e minuciosa, do que [resulta não] dar a mais leve tintura à sua própria invenção. Nenhum deles faz senão o que vê; e nenhum deles vê, senão o que imediatamente lhes entra pelos olhos.

 

Barcelos, 28 de agosto de 1787.

Alexandre Rodrigues Ferreira.

 


[1] Códice 21,2,24 da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

[2] Porra pode ser um pedaço de pau ou um porrete, mas, neste contexto, parece se tratar de “gorra” e não “porra”.

[3] Variante de "gurupemas", espécie de peneira de palha.