Memórias[1]

 

Sobre os índios espanhóis, apresentados ao Ilmo. e Exmo. Sr. João Pereira Caldas na Vila de Barcelos para onde os remeteu o comandante de Borba; segundo os fez desenhar e remeteu os desenhos para o Real Gabinete de Historia Natural o Dr. naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira.

 

A tábua IIª representa um dos dous casais dos índios espanhóis, que desertaram, segundo eles disseram, da povoação de Santa Ana da província da Santa Cruz de la Serra, domínios de Espanha confinantes com a capitania de Mato-grosso. Chegaram a esta vila no dia 24 de janeiro de 1787 remetidos a S. Excia. pelo comandante de Borba. Eram cinco entre todos, a saber, o índio Félix, marido da índia Melquiora e pai da rapariga Doroté[i]a, e o índio Filipe, casado com a índia Luísa. Disseram que haviam desertado por terem desgostado da demasiada severidade de um dos dous padres da sua povoação e que, descendo pelo rio da Madeira, lhes haviam morrido dous da sua comitiva na cachoeira do dito rio e que só eles cinco tinham escapado. Encontrou-os nas praias daquele rio um dos cabos das canoas do Pará, que andava na fatura das manteigas de tartaruga e, conhecendo que eram espanhóis, os prendeu, à ordem do general do estado, a quem faria tenção de os apresentar; o que contudo o resolveu o comandante de Borba, que se não devia afeituar[2] sem serem primeiramente apresentados a S. Excia. Sr. João Pereira Caldas, a quem os dirigiu. Falavam sofrivelmente a língua espanhola; indicavam uma notável educação e ensino nos dogmas da fé e nas demonstrações exteriores de religião; pediam e recebiam o que se-lhes dava com urbana humilhação, acrescentando ao benefício o agradecimento expressado pelas palavras "Dios se lo pague" beijavam de joelhos escapulário ao religioso carmelita, capelão da expedição; ajoelhavam para rezarem quando ouviam as badaladas do meio dia e trindade. Não desconheciam o uso do açúcar, da manteiga, do chocolate e das carnes, particularmente a de vaca, que eles diziam que nas suas povoações a comiam fresca todos os domingos por haver nelas muito gado. Vestiam umas túnicas sem mangas, a que eles chamavam camisetas, que eram mais curtas as dos homens e mais compridas as das mulheres, sem outra alguma roupa interior, e eram as ditas túnicas de tapoeirana, que é um certo tecido de algodão entre os novos índios, com a diferença que o de que usavam os ditos espanhóis era entremeado de listas de lã tinta de encarnado. Engrandeceram muito a bondade do comandante de Borba e pediram a S. Excia. a permissão de voltarem para se estabelecerem naquela vila. No [que] S. Excia. conveio, passando a recomendar ao comandante o zelo que devia ter em aproveitar a indústria dos ditos, facilitando-lhe o uso e o trabalho dos teares para no seu método de tecer ficarem igualmente instruídos os nossos. Consta o que fica dito pelas cópias das cartas que lhes dirigiu na data 25 de janeiro de 1787.

 

Barcelos, 20 de fevereiro de 1787.

Alexandre Rodrigues Ferreira.

 

 

Para o comandante do registro da vila da Borba, em data de 25 de janeiro de 1787.

A noite passada recebi a carta de Vossa Mercê que trouxe a data de 5 do corrente mês, e com ela a relação que a acompanhou dos oficiais e mais índios capazes de serviço pertencentes a sua povoação, em conformidade do que eu a este respeito lhe tinha ordenado.

Se me apresentaram juntamente os dous índios e três índias da nação espanhola que desertando das suas terras confinantes com o Mato-grosso, aí vieram ter na forma que Vossa Mercê me participa e, como as ditas pessoas me disseram que se queriam estabelecer nessa vila, eu as faço agora mesmo regressar, para que nela fiquem, fazendo-as Vossa Mercê agasalhar e sustentar como for possível, enquanto não fazem suas roças, e defendendo que se não incomodem com alguma violência para que se não desgostem e, por isso, se retirem.

 

 

Para o mesmo

 

Além do que agora mesmo tenho escrito a Vossa Mercê em outra carta, acrescento nesta em dizer-lhe, que aos dous casais de índios espanhóis que aí se vão estabelecer, mandei aqui dar o seguinte: dous machados, duas fouces, dous chapéus, uma peça de bretanha e uma dita de cadiaz para os dous homens, sendo a peça de bretanha e a de cadiaz para entre ambos se repartirem, de forma que cada um fique com sua camisa e seu calção; e assim mesmo três ferros de cova, três peças de cadiaz e uma dita de bretanha, para saias e camisas das duas mulheres e filha, indo mais duas cabeças de linhas brancas, para se cozer toda a referida obra.

Como esta gente sabe tecer os panos de algodão de que vem vestida, talvez seria bom estabelecer-lhe aí teare (sic) e comprando-se-lhe o algodão, fazê-la nisso trabalhar, conforme a qualidade de tecidos que parecer puderam (sic) ter melhor saída, em ordem a que assim se possam vender, depois de descontado no preço o custo do algodão.

 

Deus guarde a Vossa Mercê.

 

Barcelos, em 25 de janeiro de 1787

João Pereira Caldas.


[1] Códice 21,1,41 da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

[2] “afeituar” por “efetuar”.