PRESERVAÇÃO DA CULTURA DOS POVOS
TAREFA BÁSICA DO FILÓLOGO

José Pereira da Silva (UERJ)

 

A FILOLOGIA E A PRESERVAÇÃO DA CULTURA

A filologia será apresentada aqui como a disciplina lingüística mais dedicada à preservação da cultura dos povos através de suas línguas, desde a sua origem, editando, interpretando e explicando textos literários e filosóficos que se encontravam nas bibliotecas ou preparando a edição e interpretação da Bíblia, por exemplo, a partir dos manuscritos bem conservados que se encontraram. (Auerbach, 1972: 11-42)

Quando surgiu, na Grécia Antiga, ela cuidava de recolher, organizar e estabelecer os textos dos grandes poetas e filósofos, como Homero, Aristóteles e Platão, por exemplo.

Na famosa Biblioteca de Alexandria, reuniam os filólogos para interpretar os textos antigos que ali se conservavam para restaurar a sua forma mais autêntica possível, comparando todas as cópias encontradas para se estabelecer o texto apurado. (Cf. Spina, 1994: 65-68)

 

A EDIÇÃO DE TEXTOS

Nessa tarefa da edição de textos, a filologia é disciplina auxiliar de todas as ciências e tecnologias, pois é através dela que as idéias dos grandes intelectuais (artistas ou técnicos) são preservadas em sua forma mais próxima possível da vontade de seus autores, sejam escrivães (como Pero Vaz de Caminha), naturalistas (como Alexandre Rodrigues Ferreira), poetas (como Camões ou Gregório de Matos), filósofos, historiadores, políticos, oradores etc.

Em 1783, por exemplo, um exemplar dos Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (Princípios Matemáticos da Filosofia Natural) foi destinado à expedição científica chefiada por Alexandre Rodrigues Ferreira para servir de suporte científico aos trabalhos daquela “Viagem Filosófica”.

Ora, naquela época, o “vestibular” à universidade era feito através de um exame de eficiência em língua latina (Cf. Soares & Ferrão, [2005]: 12). Sabendo-se que, hoje, pouquíssimos professores dos cursos superiores de Letras são capazes de ler textos naquele idioma, como poderíamos reeditar aquela importante obra, que continua sendo de enorme importância para os estudos da física, com a primeira teorização sobre a “lei da gravidade”?

Como ler a “carta de Caminha”, que nem foi digitalizada, mas manuscrita e em letra de bem difícil interpretação?

Como restaurar a história natural da Amazônia da época em que as majestades Católica e Fidelíssima decidiam os limites de seus domínios na América, sem a leitura da obra resultante daquela Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira?

É através da Crítica Textual, uma atividade estritamente filológica, que esse material pode ser cientificamente preparado para o consumo dos estudiosos e pesquisadores de hoje, com a segurança técnica de que o que o documento põe diante dos olhos do leitor corresponde, da forma mais fiel possível, à vontade de seus autores.

 

A FILOLOGIA E A INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS

É através da filologia que a memória cultural de um povo se preserva ou se redescobre na sutileza da interpretação dos textos preparados em edições tratadas cientificamente.

O exemplo acima referido, da Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira, que já está com onze substanciosos volumes preparados, traz os textos produzidos e organizados pelo chefe daquela expedição, seguidos de comentários lingüísticos, filológicos, ecdóticos etc., mas também traz o depoimento dos principais estudiosos que já escreveram sobre essa expedição; traz desenhos, plantas arquitetônicas, cartas geográficas e pinturas produzidas para ilustrar ou descrever com outra linguagem os relatórios científicos resumidos por escrito, além de fotografias das centenas ou milhares de peças que foram enviadas para os museus da Europa e que estão bem conservadas até hoje. Hoje, temos diferentes meios para explicar ou interpretar um texto ou a obra de um autor, como se pode ver no material disponibilizado na página http://arf250anos.spaces.live.com/ com 560 iconografias e quase 250 arquivos de textos lincados,

É através da Crítica Textual que a obra poética atribuída a Gregório de Matos poderá ser apresentada como um corpus literário digno de uma segura análise e de uma eficiente crítica literária, pois, sem ela, muitos textos comumente atribuídos ao “Boca do Inferno” poderão ser de outros autores ou poderão trazer deturpações inseridas pela incúria dos copistas ou até mesmo propositadamente, como já aconteceu em outras obras censuradas, antes e depois de Gregório.

 


 

A FILOLOGIA E A ETIMOLOGIA

Estudando a etimologia das palavras, os filólogos buscam os seus significados mais primitivos, reinterpretando as diversas alterações que sofreram na forma e no sentido para se adaptarem às diferentes comunidades de falantes (no espaço, no tempo e nas diversas classes sociais e situações de uso), para mostrar que a língua é a expressão mais legítima da cultura de um povo, tanto que as palavras desnecessárias em cada geração caem no esquecimento e dão lugar espontaneamente a outras para suprirem as novas necessidades.

No Brasil, podemos registrar alguns filólogos que se tornaram destaques nos estudos da etimologia, através de suas atividades de lexicógrafos, como é o caso do Professor Antenor Nascentes, cujo Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa é referência bibliográfica indispensável para todos aqueles que se dedicam a essas indagações, e, mais recentemente, Antônio Geraldo da Cunha, mais conhecido como A.G. Cunha, autor do Dicionário Etimológico Nova Fronteira, e, mais recentemente, Dionísio da Silva, com a sua série De onde vêm as palavras?

Em Portugal, o mais conhecido e mais importante trabalho nesta linha ainda é José Pedro Machado, que produziu, entre outros, o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa e o Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa.

 

A FILOLOGIA E A GEOGRAFIA LINGÜÍSTICA

Do ponto de vista geográfico, a filologia se preocupa em interpretar os valores culturais de cada comunidade de falantes, registrando os fatos lingüísticos (ou dialetais) que lhes são mais peculiares e oferecendo grande contribuição para os estudos etnográficos e de diversas outras especialidades.

Também aqui, gostaríamos de trazer novamente o destaque para o nome de Antenor Nascentes, que foi o primeiro filólogo a apresentar um projeto abrangente e exeqüível do Atlas Lingüístico do Brasil, que é hoje uma realidade atuante, sob a presidência da Professora Doutora Suzana Alice Marcelino da Silva Cardoso, da Universidade Federal da Bahia.

Este interessante projeto tem um comitê constituído de oito diretores que representam os autores dos diversos atlas lingüísticos regionais brasileiros já publicados e os que estão em andamento, que são os professores: Suzana Alice Marcelino da Silva Cardoso (UFBA) - Diretora Presidente e representante do Atlas Lingüístico de Sergipe (ALS I - 1987); Jacyra Andrade Mota (UFBA) - Diretora Executiva representante do Atlas Prévio dos Falares Baianos (APFB - 1963); Abdelhak Razky (UFPA) - Diretor Científico e representante do Atlas Lingüístico Sonoro do Pará (ALiSPA); Maria do Socorro Silva de Aragão (UFC/UFPB) - Diretor Científico e representante do Atlas Lingüístico da Paraíba (ALPB); Mário Roberto Lobuglio Zágari (UFJF) - Diretor Científico e representante do Esboço de um Atlas Lingüístico de Minas Gerais (EALMG); Vanderci de Andrade Aguilera (UEL) - Diretor Científico e representante do Atlas Lingüístico do Paraná (ALPR), Walter Koch (UFRGS) - Diretor Científico e representante do Atlas Lingüístico-Etnográfico da Região Sul do Brasil (ALERS); Cléo Vilson Altenhofen - Diretor Científico e representante do Atlas Lingüístico-Etnográfico da Região Sul do Brasil (ALERS) e Aparecida Negri Isquerdo (UFMS) - Diretor Científico e representante dos atlas lingüísticos em andamento, através do Atlas Lingüístico do Mato Grosso do Sul.

 

A FILOLOGIA E A DIACRONIA

Diacronicamente, a filologia se ocupa da história interna das línguas  (as gramáticas históricas) e da história lingüística de seus falantes ou dos fatos culturais que mais relevantemente atuaram ou atuam para acelerar ou frear a sua evolução e para estabelecer o grau do seu prestígio.

Neste particular, dois elementos da história cultural dos povos falantes de uma determinada língua devem ser lembrados sempre que se tratar da história da língua padrão ou língua exemplar dessas comunidades lingüísticas: a história das suas gramáticas e a história da sua educação ou do seu ensino.

Não podem ser esquecidos alguns nomes de brasileiros proeminentes nesta atividade, como são, principalmente, Serafim da Silva Neto, com a sua História da Língua Portuguesa, Ismael de Lima Coutinho, com os seus Pontos de Gramática Histórica, Manuel Said Ali, com a sua Gramática Histórica da Língua Portuguesa e muitos outros que não poderão deixar de ser referidos num trabalho mais longo, como Silvio Elia, Gladstone Chaves de Melo e, em intensa atividade acadêmica, Rosa Virgínia Matos e Silva e muitos outros que estão produzindo atualmente uma rica bibliografia desta especialidade.

 

A FILOLOGIA, A LEXICOLOGIA E A TERMINOLOGIA

É aí também que o filólogo e a filologia se põem a refletir sobre as diversas formas de criação de novas palavras, como, por exemplo, o empréstimo de uma língua de especialidade para outra, de estrangeirismos e empréstimos tomados das línguas dos povos que se destacam em cada área do conhecimento ou em cada especialidade, etc.

A cultura dos povos se reflete, naturalmente, no seu léxico. Por isto, em cada período da história sócio-cultural da humanidade, uma ou algumas poucas línguas se tornam produtoras de terminologia nova e de exportação dessa terminologia, visto que não se pode adquirir um produto novo sem a terminologia a ele vinculada. Assim como o grego e o latim na Antigüidade, passou-se uma época dos arabismos, uma época dos galicismos e passará a época dos anglicismos, que hoje são predominantes em diversas áreas do desenvolvimento humano, destacando-se, sem dúvida, a da comunicação, a da informática e a do comércio, entre outras.

 

A FILOLOGIA E A POLÍTICA DO IDIOMA

Os textos filologicamente trabalhados fornecem dados que tornam possível o fomento de uma política do idioma com vistas a garantir a identidade nacional, uma vez que a língua é o fator preponderante na definição de uma nacionalidade ou mesmo restabelecer elos comuns de povos que já conviveram num mesmo espaço geográfico, como é o caso dos textos galegos, portugueses e galego-portugueses.

Como temos lembrado em diversas oportunidades, não é por acaso que o Marquês de Pombal se tornou tão admirado pelos portugueses do período em que perdurou o seu poderio no governo de Portugal.

Justificando a sua aliança com o Padre Luís Antônio Verney, que lutava por uma nova pedagogia, por uma reforma no sistema educacional português, alguns historiadores vêem o Marquês de Pombal apenas como “o inimigo dos jesuítas” que procurava todos os meios possíveis para justificar as suas ações persecutórias contra aqueles dedicados educadores, que seguiam rigorosamente as normas da Companhia de Jesus relativamente à metodologia da cristianização, da educação e do ensino, através da Ratio Studiorum (Plano de Estudos).

Um dos pontos de conflito entre a metodologia jesuíta e a nova metodologia proposta a partir do Verdadeiro Método de Estudar, que Verney produziu clandestinamente, para evitar a censura e a perseguição dos poderosos, era exatamente a política do idioma. O Plano de Estudos dos jesuítas determinava que os estudos da descrição lingüística fosse feita a partir da gramática latina, não se entendendo estudo de gramática que não fosse o desta língua. Verney propõe que os meninos aprendam a regras da língua a partir da gramática da língua portuguesa, que se tornará um padrão para a compreensão e descrição das línguas estrangeiras que vierem a aprender.

Deste ponto de vista, estudo de gramática passa a ser o estudo da estrutura da língua portuguesa (da língua materna), ao contrário do que se entendia antes, e o seu ensino se torna obrigatório, com a recomendação de que a gramática a ser usada fosse a Arte da Grammmatica da Lingua Portugueza, de António José dos Reis Lobato, conforme consta no Alvará publicado no dia 9 de outubro de 1770, de que tratamos no III Congresso de Letras da UERJ, no dia 18 de outubro de 2006.

Segundo aconselhava Verney ao Pe. Rafael Bluteau em relação às abonações de seu Dicionário, os autores escolhidos para isto não deveriam ser anteriores ao século que precedia a sua elaboração, reforçando ainda que se preferissem sempre os mais recentes e os que fizessem uso da língua exemplar ou da língua padrão.

Isto, indiretamente, teve um efeito contrário ao que desejavam os governantes portugueses, descuidados de que o nativismo crescente na colônia da América levaria os gramáticos e professores brasileiros a desprezar os autores lusitanos contemporâneos nas exemplificações ou abonações relativas ao ensino da língua. Isto facilitou a diferenciação lingüística entre o dialeto lusitano, que começava a tendência a reforçar a ênfase nas consoantes e o abrandamento das vogais átonas, e o dialeto brasileiro, que intensificava a tendência de reforçar a emissão vocálica e enfraquecer a articulação consonantal, já registrada por Fernão de Oliveira, principalmente no final das palavras.

 

A FILOLOGIA E A GRAMATICOLOGIA

A gramaticalização das línguas vernáculas e seu ensino valoriza língua, assim como a crítica literária, ambas preocupadas com descrição segura e simples dos dialetos e dos estilos mais prestigiados.

A língua portuguesa tem em Fernão de Oliveira o seu primeiro gramático, seguido de João de Barros e de Duarte Nunes de Leão, ainda no século XVI, provavelmente levada pela necessidade de compreender bem a sua própria estrutura para conseguir dominar e interpretar com segurança as línguas dos diversos povos com os quais começaram a entrar em contato intenso e íntimo, como parceiros e como colonizadores.

Relativamente à aprendizagem de línguas, de um modo geral, as teorias vigentes no século XVI não valorizavam o estudo da língua vernácula porque se entendia que a gramática latina poderia ser um modelo para a descrição de qualquer outra língua, com meras e simples adaptações em casos esparsos.

Portanto, somente depois de saturado o método dos jesuítas, a Ratio Studiorum, é que o governo português decidiu alterar seu sistema de ensino, no século XVIII, com Verney e Pombal, como nos referimos anteriormente, mandando que o ensino da gramática da língua portuguesa fosse feito a partir da obra de Reis Lobato, que teve quarenta edições em menos de um século (Cf. Silva, 2005 e 2006).

É preocupação do filólogo o conhecimento da língua como imagem da cultura que o povo registra nas suas formas de dizer, nas suas locuções, frases feitas, provérbios etc., enfim, no seu “discurso repetido” como um todo, que são textos memorizados e repetidos à exaustão, como verdades quase absolutas.

É através desta seleção vocabular, além do sotaque, naturalmente, e de outras características de uso, que podemos facilmente reconhecer a procedência de um novo interlocutor que se achega a nosso grupo.

 

CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS

A Filologia é uma ciência cultivada especialmente pelos filólogos, que são profissionais das áreas de Lingüística e Letras, cuja ocupação é oficialmente reconhecida e classificada pelo Ministério do Trabalho e Emprego e pelo Ministério da Fazenda, assim como as ocupações de lingüistas, tradutores e intérpretes, tendo como famílias afins a de professores nas áreas de língua e literatura do ensino superior, a dos profissionais da escrita e a dos editores (Cf. Silva, 2003).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. Trad. de José Paulo Paes. [2ª ed.]. São Paulo: Cultrix, [1972].

AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Iniciação em crítica textual. Apresentação de Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: 1987.

SPAGGIARI, Barbara; PERUGI, Maurizio. Fundamentos da crítica textual. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.

BASSETTO, Bruno Fregni. Elementos de filologia românica: história externa das línguas, v. 1. São Paulo: EDUSP, 2001. [2ª ed. em 2005].

SILVA, José Pereira da. A “Arte da Grammatica da Lingua Portugueza” de António José dos Reis Lobato e o ensino do português no Brasil do século XVIII. In: III Congresso de Letras da UERJ – São Gonçalo. Livro de resumos e programação. Rio de Janeiro: Botelho, 2006.

––––––. Ensino da língua portuguesa: um detalhe da sua história. In: BOTELHO, José Mario (org.). Anais do II CLUERJ-SG. Volume único, Ano 2, n° 01. Faculdade de Formação de Professores.Universidade do Estado do Rio de Janeiro –São Gonçalo, 24 a 27 de outubro de 2005. [Rio de Janeiro]: Botelho, 2005. [CD-ROM].

––––––. O filólogo e o professor de filologia na classificação brasileira de ocupações de 2002 do Ministério do Trabalho e Emprego. In Revista da Academia Brasileira de Filologia. Nova fase. N° 2. Rio de Janeiro: 2003, p. 221-227.

SPINA, Segismundo. Introdução à edótica. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Ars Poetica / Edusp, 1994.

SOARES, José Paulo Monteiro; FERRÃO, Cristina (orgs.). Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira: Coleção etnográfica. [s/l.]: Kapa, [2005, 3 vol.].