UM ASPECTO DA POLÍTICA POMBALINA
O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA

José Pereira da Silva

        A política da língua, como foi colocada por D. João de Lencastro, governador da Bahia de 1694 a 1702, perante o rei D. Pedro II (de Portugal) determinou ou, pelo menos, sugerindo que "nos seminários se não havia de falar outra língua mais do que a portuguesa", estava estreitamente ligada à questão das missões. Como a política indigenista era controlada em todo o Brasil pelos jesuítas, que conseguiram grande poder temporal, não foi difícil desenvolver-se uma campanha anti-jesuítica com o objetivo não declarado de usurpa-lhes o poder que detiam.
        Na verdade, na primeira metede do século XVIII, ainda não se tinha plena conciência em Portugal da existência de uma língua nacional nem mesmo a consideravam um instrumento lingüístico independente em relação em relação à lingua espanhola, como se pode ver do seguinte depoimento de Rafael Bluteau, de 1727:

          No ano de 1668, cheguei a este reino e, desde aquele tempo, raro foi o dia em que não me aproveitasse de alguma notícia da língua portuguesa... [imaginava-se que a língua portuguesa era] casualmente formada de vários fragmentos da língua mourisca e castelhana... Também houve quem com rústica simplisidade me disse que não merecia a língua portuguesa tanto trabalho. A razão deste disparate é que, na opinião da maior parte dos estrangeiros, a língua portuguesa não é língua de per si, como é o francês, o italiano, etc., mas língua enxocada e corrupção do castelhano, como os dialetos, as linguagens particulares das províncias, que são corrupções das línguas, que se fala na corte e cabeça do reino... Sobre esta errada apreensão, tenho tido grandes debates com estrangeiros de porte e literatos. A razão em que se fundam é que muitos vocábulos portugueses são radicalmente castelhanos, mas truncados e ciminutos; falta que (segundo eles dizem) denota a sua pouca derivação.

        Sendo permitido por D. João V, o descimento de índios para as aldeias, a partir de 1718, o governador Alexandre de Sousa Freire deliberou (em 1728) que "entre as obrigações dos colonos estava o ensino ao índio da língua portuguesa, de acordo com a carta régia de 12 de setembro de 1727", dirigida ao Superior das Missões dos Religiosos da Companhia de Jesus do Estado do Maranhão, na qual o soberano lamenta que os índios "que se mandam para viver nas ditas aldeias, não só não são bem instruídos na língua portuguesa, mas que nenhum cuidado sae poe para que eles a aprendam".
        Segundo José Ariel Castro , "essa carta régia marca o verdadeiro nascimento do ensino oficial da língua portuguesa no Brasil", dando origem a manifestação da primeira política lingüística de Portugal (através do bamdo do governador Alexandre de Sousa Freire, de 1728) e oficializando em todo o reino a expressão "língua portuguesa" para dominar o instrumento lingüístico nacional que se queria unificado. É a partir dessa carta que o rei oficializa a língua portuguesa em todo o seu reino.
        Ficará bastante claro, pelo texto que daremos no parágrafo seguinte, que esta maneira oficial de se encarar a realidade lingüística brasileira, contrasta com a maneira objetiva e concreta pela qual a observavam a descreviam. Ou seja, para um brasileiro chegar e falar com um português, precisava de bastante tempo e de ter algum estudo, prova de que havia um distanciamento significativo entre as duas realidades.
        Contestando as idéias de Luís Antônio de Verney a respeito das reformas que se faziam necessárias no sistema de ensino de português, Severino de São Modesto faz o seguinte comentário a respeito dos colonos brasileiros e orientais. à pag. 54 de sua Conversação familiar, de 1750:

          Os que vão das outras províncias do reino para Paris, posto que saibam alguma coisa da língua geral, é com grande imperfeição, principalmente na pronúncia, e se vêem obrigados a procurar quem os ensine em casa (que as escola são para meninos); e depois de algumas lições, com o uso e exercício de falar com os mais cultos, se acabam de aperfeiçoar. Isto sucede aos portugueses criados na Índia ou América, que têm diversos acentos na pronúncia; mas que não são rudes, em breve tempo falam com os da corte, sem aprenderem gramática.

        Publicado em 1746, o Verdadeiro método de estudar, de Luís Antônio Verney, dedicou largo capítulo de reforma pedagógica ao ensino e estudo da língua portuguesa, preconizando a supremacia do estudo do português em relação ao latim e revelando criatividade na política linguística de D. João V, bastante revolucionária para a época.
        Comentando este fato, o Prof. José Ariel Castro, que vem sendo nosso guia nesta matéria, assim o resume em seu artigo citado:

          A investida de Verney em favor da língua portuguesa estava destinada a dois resultados no reino seguinte, de D. José I, pela ação de seu ministro, o Marquês de Pombal:
    a) Oficialmente do ensino da língua portuguesa em todo o reino, inclusive no Brasil. Até então, não existia como mandamento legal nas escolas.
    b) Início do culto os clássicos da língua, escolhidos segundo o critério enunciado por Verney.
        A 8 de maio de 1758, D. José I converte em lei o Diretório dos índios que o governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado deu ao Pará em 3 de maio de 1757, através do qual se refaz a lei de D. João V sobre o ensino da língua portuguesa, justificando-o da seguinte forma de seu § 6:

          Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as nações, que conquistaram novos domínios, introduzir logo nos povos conquistados o seu próprio indioma, por ser indisputável que este é um dos meios mais eficazes para desterrar dos povos rústicos a barbaridade de seus antigos costumes; e ter mostrado a experiência que, ao mesmo passo que se introduz neles o uso da língua do príncipe que os conquistou, se lhes radica também o afeto, a veneração e a obediência ao mesmo príncipe. Observando pois todas as nações polidas do mundo este prudente e sólido sistema, nesta conquista se praticou tanto pelo contrário, que só cuidaram os primeiros conquistadores estabelecer nela o uso da língua que chamam geral, invenção verdadeiramente abominável e diabólica, para que, privados os índios de todos aqueles meios que os podiam civilizar, permanecessem na rústica e bárbara sujeição em que até agora se conservaram. Para desterrear este pernicioso será um dos principais cuidados dos diretores estabelecer nas suas respectivas povoações o uso da língua portuguesa, não consentindo por modo algum, que os meninos e as meninas que pertencerem às escolas e todos aqueles índios que forem capazes de instrução nesta matéria usem a língua própria das suas nações, ou da chamada geral, mas unicamente a portuguesa, na forma de Sua Majestade tem recomendado as repetidas ordens, que até agora se não observaram, com total ruína espiritual e temporal do Estado.

        O alvará de 28 de junho de 1759 foi acompanhado de Instruções que consagram, por inspiração de Verney, o estudo do latim por intermédio da língua vernácula, porque "todos os homens sábios confessam que deve ser em vulgar o método para aprender os preceitos da gramática, pois não há maior absurdo do que intentar aprender uma língua no mesmo indioma que se ignora".
        Mais adiante, nas mesmas Instruções, ainda se acressenta: "Para que os estudantes vão percebendo com mais facilidade os princípios da gramática latina, é útil que os professores lhes vão dando uma noção da portuguesa".
        Esse mesmo argumento da Instituição, foi utilizado pelos missionários para justificar o uso das línguas de seus fiéis indígenas em proveito de sua eficiente cristianização, conforme se pode ler nas Questões apologéticas, que descobrimos entre os manuscritos inéditos da Biblioteca Nacional
        O ensino no primário entrou em processo de acelerada decomposição, causando a aceleração adicional da diferenciação da língua falada e a fixação de critérios para a língua escrita estreitamente dependente do que se passava entre os árcades portugueses.

         A implantação da primeira política de estudo e ensino da língua portuguesa encontrará no Brasil uma clientela completamente diferente da de Portugal, o que fará aqui surgir uma questão da língua quando, em Portugal, deixava ela de existir: [...] a profunda separação entre língua escrita e língua falada, pois jamais entre os brasileiros fora possivel escrever o que e como falavam, diante da ausência completa, durante dois séculos e meio, de qualquer tipo de política cultural e educacional da parte da metrópole.

       Os brasileiros preferiam os professores nacionais, que eram recrutados quase sempre entre os clérrigos. O professor régio, segundo Laerte Ramos de Carvalho, era considerado pela população como alguém que "se persuade que é um príncipe e, cheio de soberba, de altivez e de vaidade, pretende pisar e meter debaixo dos pés a todos que se acham destas bandas; e lhe custa muito estar sujeito e obediente aos legítimos superiores".
       Os professores régios, mandados ao Brasil para implantar a reforma pombalina do ensino, tomaram o lugar dos brasileiros porque, na base da aplicação desta política de ensino, esteve a diferença cultural e expressional já sobrejamente constatada. A reverção desse quadro era o objetivo da administração portuguesa, quando enviava ao Brasil seus professores régios, que eram considerados como estrangeiros pelos brasileiros em relação aos professores nacionais.
        Com a criação do subsídio literário (05/08/1772), que era um imposto estabelecido sobre a produção de aguardentes, vinhos e vinagre, os professores régios estrangeiros foram sendo substituídos por nacionais, de modo que a língua viva brasileira continuava cada vez mais viva. Mas o ritmo foi muito lento, já que foram criadas em toda a colônia apenas dezessete aulas de ler e escrever, quinze de gramática latina, seis de retórica, três de grego e três de filosofia, a instrução secundária em prejuíso da primária.
        Para se entender bem a ideologia da reforma pombalina, tal como foi implantada no Brasil, basta a leitura dos seguintes parágrafos dos "estatutos que hão de observar os mestres das escolas dos meninos nesta capitania de São Paulo", transcritos do Arquivo do Conselho Ultramarino, 1, 2 ,3, volume 32, ano de 1768:

          1. Que haverão dois mestres nesta cidade e um em cada uma das vilas adjacentes, os quais serão propostos pelas câmaras respectivas e aprovados pelo General e não poderão exercitar o seu ministério sem ser com esta aprovação e dela tirarem provisão ou licença...
        3. Que nenhum menino me possa passar ao estudo da língua latina sem preceder a mesma licença, a qual se dará com informação do mestre sobre a sua capacidade, para se saber se se acham bem instruídos no ler, escrever e contar e bons costumes, para que não suceda passarem a outros estudos maiores, sem estes primeiros e mais necessários fundamentos da religião cristã e obrigações civis...
        4. Que o número de mestres, estabelecidos nesta cidade e em cada uma das vilas não poderá nunca, em caso algum, ser alterado ou exedido, sem nova consulta e expressa ordem nesta matéria para que não suceda ser instruída a mocidade com pessoas menos idôneas...
        7. Que todos os mestres sejam obrigados a ensinar pelo livro de Andrade e seguir em tudo aquelas regras, que no princípio do dito livro se prescrevem para a boa direção das escolas, e será bom que tenha outros livros, como a Educação dum menino nobre, a Produções das obrigações civis, de Cícero, para que possam inspirae aos meninos as boas inclinações e o verdadseiro merecimento do homem.

        Como se vê, a preocupação maior e a de intensificar e disseminar o estudo da língua portuguesa, condição indispensável para a passagem ao nível seguinte.
        O acesso ao nível secundário do estudo era dificultado pela burocratização que acompanhava a implantação da reforma, seja com a dificuldade nos exames, sempre bem fiscalizados, seja com o número limitado de mestres que constituíam a própria escola.
        Por fim, a instrução se baseava naquilo que se tinha como educação nobre na metrópole, coma valorização dos escritores clássicos portugueses, segundo as indicações dos árcades da Academia Ulissiponense, e a cultura clássica antiga.
        Enfim, podemos concluir que o nascimento da política lingüística no Brasil surgiu emaranhada com as questões da reforma do ensino de Verney e Pombal e com as questões religiosas provenientes da então religião oficial, motivo pelo qual não se podia proibir o uso indiscriminado de outra língua que não fosse a portuguesa, visto que o latim era a língua oficial da Igreja Católica.
        Por outro lado, com a Igreja, desde o Concílio de Trento, havia determinado o ensino da doutrina cristã pela língua vulgar e não fora contrariada por nenhum dos soberanos de Portugal neste particular, conforme nos convence o Pe. Manoel da Penha do Rosário ao responder aos inquisidores a questão 9, como tratamos nos anais da Biblioteca Nacional.

BIBLIOGRAFIA

CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública. São Paulo, 1978.

CASTRO, José Ariel. "Formação e desenvolvimento da língua nacional brasileira". In COUTINHO, Afrânio & COUTINHO, Eduardo de Faria (Dir.). A literatura no Brasil. Vol. I: Preliminares e generalidades. 3º ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: J. Olympio; Niterói: Univercidade Federal Fluminense, 1986. p. 258-385.

DIRECTORIO, que se deve observar nas povoações dos índios do Pará, e Maranhão, enquanto Sua Majestade não manda o contrário. Lisboa: Na oficina de Miguel Rodrigues, impressor do Eminentíssimo Senhor Cardial Patriarca. M.DCC.LVIII. p. 6-7. (Esse documento já foi numerosas vezes reeditado.)

ROSÁRIO, Manoel da Penha do, Pe. Língua e inquisição no Brasil de Pombal. Prefácio de Ruy Magalhães de Araujo. Introdução, leitura crítica e notas de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1975. XXII + 95 p. il.

SACROSSANTO (0), e ecumenico Concílio dee Trento; em latim e português. Dedicado e consagrado aos Exc. e Rev. Senhores Arcebispos e Bispos da Igreja Lusitana. Nova edição. Rio de Janeiro: Liv. de Antônio Gonçalves Guimarães & Cia., 1824, 2 v.

SILVA, José Pereira da. "Língua vulgar versus língua portuguesa - a defesa do Pe. Manoel da Penha do Rosário contra a imposição da língua portuguesa aos índios por meio dos missionários e parocos (1773)". Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 113:07-62, 1993.


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