A INEXISTÊNCIA DA FLEXÃO DE GÊNERO NOS SUBSTANTIVOS DA LÍNGUA PORTUGUESA

José Pereira da Silva (UERJ/CiFEFiL/ABF)

Em homenagem ao Mestre e Amigo Evanildo Bechara, que escreveu, sem nos comunicarmos sobre o assunto, a tese que venho defendendo há anos: a inexistência da flexão de gênero no substantivo.

A questão que aqui se apresenta, apesar de ser uma reflexão numerosas vezes discutida em sala de aula com os alunos do Departamento de Letras da UERJ, foi sistematizada pela primeira vez na Moderna Gramática Portuguesa do Prof. Evanildo Bechara.[1] Por isto, grande parte deste artigo já está na exposição daquele ilustre acadêmico, mesmo quando não vai entre aspas aqui.

Ora, em português, todo substantivo está dotado de gênero, que se distribui entre os masculinos e os femininos.

Rocha Lima, citando a Gramática Castellana, de Amado Alonso e Pedro Henríquez Ureña, lembra que

Os substantivos é que se chamam propriamente masculinos, ou femininos, porque cada substantivo é classificado num ou noutro grupo; ao contrário, os adjetivos, com sua dupla terminação, são classificadores. Quando se diz a terminação masculina, ou a terminação feminina do adjetivo, indica-se por esse meio a terminação que o adjetivo adota para referir-se aos substantivos masculinos, ou aos femininos.[2]

Ou seja: os adjetivos é que se modificam para concordarem com eles, porque gênero é uma classificação puramente gramatical dos substantivos, segundo a terminação do adjetivo (ou outro determinante).[3]

São masculinos os nomes a que se pode antepor o artigo o ou outro determinante masculino (algum inconveniente, aquele cientista, aquele tempo, décimo sobrinho, esse automóvel, este fonema, o astro, o tecido, outro morfema, pequeno alfinete, quinto lugar, rápido telefonema, segundo lazer, terceiro trovão, um abraço) e são femininos os nomes a que se pode antepor o artigo a ou outro determinante feminino (a agulha, a estrela, aquela estrada, aquela fama, bela aluna, essa alegria, linda repórter, maldita dor, muita saudade, terceira condessa).

Entretanto, Bechara diz, à pág. 132 da Gramática citada, que “esta determinação genérica não se manifesta no substantivo pela flexão, como no adjetivo ou no pronome.” Apesar de haver substantivos em que aparentemente se explicite a distinção genérica pela flexão (menino/menina, moço/moça, professor/professora, mestre/mestra, gato/gata, macaco/macaca, pato/pata), a verdade é que a sua inclusão num ou noutro gênero depende direta e essencialmente da classe léxica e não dessa aparente e enganosa flexão de gênero, como escreveu Herculano de Carvalho,

não é o fato de em português existirem duas palavras diferentes – homem/mulher, pai/mãe, boi/vaca, e ainda filho/filha, lobo/loba (das quais estas não são formas de uma flexão, mas palavras diferentes, tanto como aquelas) – para significar o indivíduo macho e o indivíduo fêmea (duas espécies do mesmo “gênero”, em sentido lógico) que permite afirmar a existência das classes do masculino e do feminino, mas, sim, o fato de o adjetivo, o artigo, o pronome etc., se apresentarem sob duas formas diversas exigidas respectivamente por cada um dos termos de aqueles pares opositivos –, “este homem velho”/“esta mulher velha”, “o filho mais novo”/“a filha mais nova” –, formas que de fato constituem uma flexão.[4]

A aproximação da função cumulativa derivada de –a como atualizador léxico e morfema categorial se manifesta tanto em banda de bando, barca de barco, barreira de barreiro, bola de bolo, caneca de caneco, carreira de carreiro, cavala de cavalo (ou cavalinha de cavalinho), cerca de cerco, cesta de cesto, cinta de cinto, fossa de fosso, fruta de fruto, grita de grito, lenha de lenho, linha de linho, madeira de madeiro, manta de manto, mata de mato,pinga de pingo, poça de poço, porta de porto, ribeira de ribeiro, risca de risco, saca de saco,troca de troco, veia de veio etc., quanto em gata de gato ou menina de menino, porque dá “ao tema de que entra a fazer parte a capacidade de significar uma classe distinta de objetos, que em geral constituem uma espécie de gênero designado pelo tema primário”.[5]

É pacífica, mesmo entre os que admitem o processo de flexão em barco Ù barca e lobo Ù loba, a informação de que a oposição masculino – feminino faz alusão a outros aspectos da realidade, diferentes da diversidade de sexo, e serve para distinguir substantivos por certas qualidades semânticas, pelas quais o masculino é uma forma geral, não-marcada semanticamente, enquanto o feminino expressa uma especialização qualquer: barco/barca (= barco grande), jarro/jarra (um tipo especial de jarro), lobo/loba (a fêmea do animal chamado lobo), cerco/cerca (= objeto construído para estabelecer o cerco), grito/grita (= grande quantidade de gritos), lenho/lenha (= pedaços de lenhos utilizados para produzir fogo), linho/linha (= fio de linho ou, por extensão, de outro material), manto/manta (= grande manto), mato/ mata (= grande quantidade de mato, com árvores frondosas), ribeiro/ribeira (= terreno às margens do ribeiro) etc.

Esta aplicação semântica faz com que os pares dados como exemplos e muitos outros semelhantes não sejam consideradas primariamente formas de uma flexão, mas palavras diferentes marcadas pelo processo de derivação. Esta função semântica está fora do domínio da flexão. A analogia material da flexão de gênero do adjetivo é que levou os gramáticos a porem no mesmo plano os pares de adjetivos estudioso/estudiosa etc. e os pares de substantivos aluno/aluna etc.

Este fato explica o motivo pelo qual existe a indicação do gênero por meio de sufixo nominal: abade/abadessa, ator/atriz, barão/baronesa, cão/cadela, conde/condessa, czar/czarina, embaixador/embaixatriz, felá/felaína, galo/galinha, herói/heroína, imperador/imperatriz, javali/javalina, ladrão/ladra, lebrão/lebre, maestro/maestrina, perdigão/perdiz, poeta/poetisa, rapaz/rapariga, rei/rainha etc.

A diferença do sexo nos seres animados pode manifestar-se ou não de diferenças formais, mas não é esta uma função essencial da morfologia do substantivo. Esta manifestação, quando ocorre, realiza-se pela mudança de sufixo[6] (como em menino/menina, gato/gata) ou pela heteronímia, recorrendo-se a palavras diferentes que apontem para cada um dos sexos (bode/cabra, boi/vaca, carneiro/ovelha, cavaleiro/amazona, burro/mula, cavalheiro/dama, cavalo/égua, compadre/comadre, frei/sóror, genro/nora, homem/mulher, marido/mulher, padrasto/madrasta, pai/mãe, touro /vaca, zangão/abelha,). Na primeira série de pares: menino/menina, gato/gata, não há formas de uma flexão, mas, como na segunda, estamos diante de palavras diferentes.

Quando não ocorre nenhum destes dois tipos de manifestação formal, ou o substantivo se mostra indiferente à designação do sexo, com o seu gênero gramatical definido (a águia, a baleia, a borboleta, a cobra, a criança, a criatura, a formiga, a mosca, a onça, a pessoa, a pulga, a sardinha, a testemunha, a vítima, o algoz, o apóstolo, o besouro, o carrasco, o condor, o cônjuge, o crocodilo, o gavião, o indivíduo, o polvo, o rouxinol, o tatu, o tigre, o verdugo) ou se acompanha de adjuntos (artigos, adjetivos, pronomes, numerais) com flexão de gênero para indicar o sexo (o agente, a agente; o artista, a artista; o camarada, a camarada; o cliente, a cliente; o colega, a colega; o compatriota, a compatriota; o dentista, a dentista; o estudante, a estudante; o gerente, a gerente; o herege, a herege; o imigrante, a imigrante; o indígena, a indígena; o jornalista, a jornalista; o jovem, a jovem; o mártir, a mártir; o selvagem, a selvagem; o servente, a servente; o suicida, a suicida), indiferentemente da forma lexical.

Inconsistência do gênero gramatical dos substantivos

A distinção do gênero nos substantivos não tem fundamentos racionais, exceto a tradição fixada pelo uso e pela norma, diz Bechara.[7] Nada justifica serem masculinas, em português, palavras como banco, caderno, depoimento, evangelho, giz, lápis, livro, papel, testemunho, texto e tinteiro, e femininas, palavras como bíblia, cadeira, caderneta, caneta, carteira, epístola, folha, mesa, parábola, porta e tinta.

Como bem nos lembra Evanildo Bechara, na obra que estamos seguindo como roteiro,

A inconsistência do gênero gramatical fica patente quando se compara a distribuição de gênero em duas ou mais línguas, e até no âmbito de uma mesma língua histórica na sua diversidade temporal, regional, social e estilística. Assim é que para nós o sol é masculino e para os alemães é feminino die Sonne, a lua é feminino e para eles masculino der Mond; enquanto o português mulher é feminino, em alemão é neutro das Weib. Sal e leite são masculinos em português e femininos em espanhol: la sal e la leche. Sangue é masculino em português e francês e feminino em espanhol: le sang (fr.) e la sangre (esp.).

Mesmo nos seres animados, as formas de masculino ou do feminino podem não determinar a diversidade de sexo, como ocorre com os substantivos chamados epicenos (aplicados a animais irracionais), cuja função semântica é só apontar para a espécie: a cobra, a lebre, a formiga ou o tatu, o colibri, o jacaré, ou os substantivos aplicados a pessoas, denominados comuns de dois, distinguidos pela concordância: o/a estudante, este/esta consorte, reconhecido/reconhecida mártir, ou ainda os substantivos de um só gênero denominados sobrecomuns, aplicados a pessoas, cuja referência a homem ou a mulher só se depreende pela referência anafórica do contexto: o algoz, o carrasco, o cônjuge.[8]

A mudança de gênero de alguns substantivos

As aproximações semânticas entre palavras (sinônimos, antônimos), a influência da terminação, o contexto léxico em que a palavra funciona e a própria fantasia que moldura o universo do falante, tudo isto representa alguns dos fatores que determinam a mudança do gênero gramatical dos substantivos. Na variedade diacrônica, do português antigo ao contemporâneo, muitos substantivos passaram a ter gêneros diferentes, alguns sem deixar vestígios, outros como mar, hoje masculino, onde o antigo gênero continua presente em preamar (prea = plena, cheia) e baixa-mar.

Já foram femininos fim, planeta, cometa, mapa, tigre, fantasma, entre muitos outros; já foram usados como masculinos: árvore, tribo, catástrofe, hipérbole, linguagem, linhagem.[9]

O gênero dos substantivos nas profissões femininas

A presença da mulher nas atividades profissionais que até bem pouco eram exclusivas ou quase exclusivas do homem tem exigido que as línguas adaptem o seu sistema gramatical a estas novas realidades. Femininos como advogada, delegada, deputada, engenheira, filóloga, juíza, médica, mestra, professora, psicóloga, senadora, entre tantos outros, já correm vitoriosos há muito tempo.

As convenções sociais e hierárquicas criaram usos particulares que nem sempre são unanimemente adotados na língua comum. Todavia, já se aceita a distinção, por exemplo, entre a cônsul (= mulher que dirige um consulado) e a consulesa (= esposa do cônsul), a embaixadora (= mulher que dirige uma embaixada) e embaixatriz (= esposa do embaixador). Já para senador vigoram indiferentemente as formas de feminino senadora e senatriz para a mulher que exerce o cargo político ou para a esposa do senador, regra que também poucos gramáticos e lexicógrafos estendem a consulesa e embaixatriz.

Na hierarquia militar a denominação para mulheres da profissão parece não haver uma regra generalizada. Empregam-se com freqüência, construções como: O cabo Ester Silva, o sargento Andréia, o soldado Benedita e o tenente Rita de Cássia pertenceram a esta corporação.[10]

Na linguagem jurídica, as petições iniciais vêm com o masculino com valor generalizante, dada a circunstância de não se saber quem examinará o processo, se juiz ou juíza.

Meritíssimo Senhor Juiz, Excelentíssimo Senhor Desembargador.

Note-se, por fim, que algumas formas femininas podem não vingar por se revestirem de sentido pejorativo: chefa, caba, por exemplo.

Formação do feminino de substantivos

Os substantivos que designam pessoas e animais manifestam o gênero e apresentam, quase sempre, duas formas diferentes: uma para indicar os seres do sexo masculino e outra para os seres do sexo feminino: filho – filha, pai – mãe, rapaz – rapariga.

[135] Podemos distinguir, na manifestação do feminino, os seguintes processos:

a) com a mudança ou acréscimo ao radical, suprimindo a vogal temática: filho Ù filh(o) + a Ù filha:

1 – os substantivos terminados em –o mudam o –o em –a, por analogia com a flexão dos adjetivos biformes: filho – filha, menino – menina, aluno – aluna, gato – gata.

2 – os substantivos terminados em –e uns há que ficam invariáveis, outros acrescentam –a depois de suprimir a vogal temática: alfaiate Ù alfaiata.

Não variam de forma à semelhança dos adjetivos: amante, cliente, constituinte, contribuinte, discente, docente, doente, estudante, falante, habitante, inocente, ouvinte, servente etc.

Variam: infante – infanta, governante – governanta, presidente – presidenta, parente – parenta (que também aparecem invariáveis) alfaiate – alfaiata, monge – monja

3 – os substantivos terminados em –or formam geralmente o feminino com acréscimo de a: autor – autora, diretor – diretora, doutor – doutora, professor – professora, reitor – reitora, vendedor – vendedora, sendo que alguns formam o feminino em –eira: arrumadeira, lavadeira, faladeira (a par de faladora).

4 – os substantivos terminados em vogal tônica, -s, -l, -z acrescentam a, sem qualquer alteração morfofonêmica: freguês – freguesa, zagal – zagala, português – portuguesa, oficial – oficiala, juiz – juíza, guri – guria, peru – perua.

5 – os substantivos terminados em ­–ão (dada a confluência no singular e permanência de formas diferentes no plural)[11] apresentam os seguintes casos:

a) quando este final pertence a nomes de tema em –o (transformado em semivogal do ditongo nasal), têm suprimida normalmente esta vogal e acrescida de –a e posterior fusão por crase:[12] afegão Ù afegã(o) + a Ù afegãa Ù afegã; alazão Ù alazã(o) + a Ù alazãa Ù alazã; aldeão Ù aldeã(o) + a Ù aldeãa Ù aldeã; alemão Ù alemã(o) + a Ù alemãa Ù alemã; alvação Ù alvaçã(o) + a Ù alvaçãa Ù alvaçã; anão Ù anã(o) + a Ù anãa Ù anã; ancião Ù anciã(o) + a Ù anciãa Ù anciã; campeão Ù campeã(o) + a Ù campeãa Ù campeã; castelão Ù castelã(o) + a Ù castelãa Ù castelã; catalão Ù catalã(o) + a Ù catalãa Ù catalã; chão Ù chã(o) + a Ù chãa Ù chã; cidadão Ù cidadã(o) + a Ù cidadãa Ù cidadã; deão Ù deã(o) + a Ù deãa Ù deã; espião Ù espiã(o) + a Ù espiãa Ù espiã; irmão Ù irmã(o) + a Ù irmãa Ù irmã (por crase); irmão Ù irmã(o) + a Ù irmãa Ù irmã; marrão Ù marrã(o) + a Ù marrãa Ù marrã; órfão Ù órfã(o) + a Ù órfãa Ù órfã; pagão Ù pagã(o) + a Ù pagãa Ù pagã; peão Ù peã(o) + a Ù peãa Ù peã; sacristão Ù sacristã(o) + a Ù sacristãa Ù sacristã.

[136] b) quando –ão corresponde a forma teórica –õ, tal qual ocorre com o plural,[13] há desnasalação da vogal temática e acréscimo de –a, que favorece o aparecimento de hiato: bretão (radical teórico bretõ, cf. o plural bretões) Ù breto(m) + a Ù bretoa; garção (rt garçõ, pl. garções) Ù garço(m) + a Ù garçoa; patrão (rt patrõ, pl. patrões) Ù patro(m) + a Ù patroa; varão (rt varõ, pl. varões) Ù varo(m) Ù a Ù varoa;

c) quando –ão é sufixo derivacional aumentativo, a nasalidade desenvolve o fonema de transição /n/: amigalhão (radical teórico amigalhõ, cf. plural amigalhões) Ù amigalho + n + a Ù amigalhona; asneirão (rt. asneirõ, pl. asneirões) Ù asneiro + n + a Ù asneirona; bonachão (rt. bonachõ, pl. bonachões) Ù bonacho + n + a Ù bonachona; machão (rt. machõ, pl. machões) Ù macho + n + a Ù machona; mocetão (rt. mocetõ, pl. mocetões) Ù moceto + n + a Ù mocetona; mulherão (rt. mulherõ, pl. mulherões) Ù mulhero + n + a Ù mulherona; valentão (rt valentõ, pl. valentões) Ù valento + n + a Ù valentona.

6 – os que têm o sufixo derivacional –eu suprimem a vogal temática (aqui sob a forma de semivogal do ditongo), acrescentam –a e, ao se obter o hiato ea, desenvolvem normalmente o ditongo /ey/ e conhecem posterior passagem do e fechado a aberto /ey/ (passagem que não se dá em todo o território onde se fala a língua, como, por exemplo, em Portugal): europeu Ù europe(u) + a Ù europea Ù europeia Ù européia; arameu Ù arame(u) + a Ù aramea Ù arameia Ù araméia; teu Ù ate(u) + a Ù atea Ù ateia Ù atéia; corifeu Ù corife(u) + a Ù corifea Ù corifeia Ù coriféia; egeu Ù ege(u) + a Ù egea Ù egeia Ù egéia; filisteu Ù filiste(u) + a Ù filistea Ù filisteia Ù filistéia; giganteu Ù gigante(u) + a Ù gigantea Ù giganteia Ù gigantéia; hebreu Ù hebre(u) + a Ù hebrea Ù hebreia Ù hebréia; idumeu Ù idume(u) + a Ù idumea Ù idumeia Ù iduméia; pigmeu Ù pigme(u) + a Ù pigmea Ù pigmeia Ù pigméia.

Fazem exceção: judeu Ù judia, sandeu Ù sandia.

7 – manifestam o feminino por meio dos sufixos derivacionais –esa, -essa, -isa, -triz, -ez: abade – abadessa, alcaide – alcaidessa (ou alcaidina), ator – atriz, barão – baronesa, bispo – episcopisa, conde – condessa, condestável – condestablessa, cônego – canonisa, cônsul – consulesa, diácono – diaconisa, doge – dogesa, dogaresa ou dogaressa, druida – druidesa, druidisa (ocorre em O. Bilac), duque – duquesa, embaixador – embaixatriz (embaixadora), etíope – etiopisa, imperador – imperatriz, jogral – jogralesa, papa – papisa, píton – pitonisa, poeta – poetisa, príncipe – princesa, profeta – profetisa, sacerdote – sacerdotisa, visconde – viscondessa.

8 – não se enquadram nos casos precedentes: avô – avó, capiau – capioa, czar /pron. tçar/ - czarina[14] , dom – dona, [137] felá – felaína, galo – galinha, grou – grua, herói – heroína, ilhéu – ilhoa, landgrave – landgravina, marajá – marani, mandari – mandarina, maestro – maestrina (também maestra), pierrô – pierrete, raja ou rajá – râni ou rani, rapaz – rapariga, rei – rainha, réu – ré, silfo – sílfide, sultão – sultana, tabaréu – tabaroa.

b ) com palavras diferentes para um e outro sexo (heterônimos):

1 – Nomes de pessoas: cavaleiro – amazona, cavalheiro – dama, confrade – confreira, compadre – comadre, frade – freira, frei – sóror, soror, sor, genro – nora, homem – mulher, marido – mulher, padrasto – madrasta, padre – madre, padrinho – madrinha, pai – mãe, patriarca – matriarca, rico-homem – rica-dona.

2 – Nomes de animais: bode – cabra, boi – vaca, burro – besta, mula, cão – cadela, carneiro – ovelha, cavalo – égua, veado – veada, cerva (é), zangão, zângão – abelha.

c ) feminino com auxílio de outra palavra:

Há substantivos que têm uma só forma para os dois sexos: estudante, consorte, mártir, amanuense, constituinte, escrevente, herege, intérprete, etíope, ouvinte, nigromante, servente, vidente, penitente.

São por isso chamados comuns de (ou a) dois. Tais substantivos distinguem o sexo pela anteposição de o (para o masculino) e a (para o feminino): o estudante – a estudante, o camarada – a camarada, o mártir – a mártir.

Incluem-se neste grupo os nomes de família: “(...) redargüiu colérica a Pacheco (...)”[15]

Os nomes terminados em –ista e muitos terminados em –e são comuns de dois: o capitalista – a capitalista, o doente – a doente.

Também nomes próprios terminados em –i (antigamente ainda em –y) são comuns tanto a homens como a mulheres: Darci, Juraci.

[138] Enquadram-se neste grupo os nomes de animais para cuja distinção de sexo empregamos as palavras macho e fêmea: cobra macho, jacaré fêmea.

Podemos ainda servir-nos de outro torneio: o macho da cobra, a fêmea do jacaré.

Estes se chamam epicenos.

d ) sobrecomuns

São nomes de um só gênero gramatical que se aplicam, indistintamente, a homens e mulheres:[16] o algoz, o carrasco, o cônjuge, a criatura, a criança, o ente, o indivíduo, a pessoa, o ser, a testemunha, o verdugo, a vítima.

Gênero estabelecido por palavra oculta

São masculinos os nomes de rios, mares, montes, ventos, lagos, pontos cardeais, meses, navios, por subentendermos estas denominações: O (rio das) Amazonas, o (oceano) Atlântico, o (vento) bóreas, o (lago) Ládoga, o (mês de) abril, o (porta-aviões) Minas Gerais.

|Por isso são normalmente femininos os nomes de cidade, ilhas: A bela (cidade) Petrópolis. A movimentada (ilha do) Governador.

Nas denominações de navios, depende do termo subentendido: O (transatlântico) Argentina, a (corveta) Belmonte, a (canhoneira) Tijuca etc. De modo geral, os grandes transatlânticos são todos masculinos, em vista deste substantivo oculto, embora muitos tenham nomes femininos: “Embarcou no Lusitânia e foi para Lisboa”.[17]

Notem-se os seguintes gêneros: O (vinho) champanha (e não a champanha!), o (vinho) madeira, o (charuto) havana, o (café) moca, o (gato) angorá, o (cão) terra-nova.

Mudança de sentido na mudança de gênero

Há substantivos que são masculinos ou femininos, conforme o sentido com que se achem empregados: a apocalipse (linguagem muito obscura) – o apocalipse (estilo de alguns livros da bíblia); a cabeça (parte do corpo) – o cabeça (o chefe); a capital (cidade principal) – o capital (dinheiro, bens); a gênesis (a origem) – o gênesis (primeiro livro da Bíblia); a língua (órgão muscular; idioma) – o língua (o intérprete); [139] a lotação (capacidade de um carro, navio, sala etc.) – o lotação (forma abreviada de autolotação); a moral (parte da filosofia; moral de um fato; conclusão) – o moral (conjunto de nossas faculdades morais; ânimo); a rádio (a estação) – o rádio (o aparelho); a voga (moda; popularidade) – o voga (o remador).

Gênero de substantivos compostos

Os compostos são uma espécie de construção sintática abreviada, de modo que, se são constituídos por substantivos variáveis (biformes), o determinante (a 2ª unidade) concorda com o gênero do determinado e é responsável pelo gênero do composto: a batata-rainha (e não a batata-rei, a ponta-seca, instrumento de corte).[18]

Nos compostos de unidades uniformes, é evidente que não se dá a concordância do 2º elemento, mas o gênero do composto continua se regulando pela 1ª unidade: a cobra-capelo, o pau-paraíba, a fruta-pão.

Neste último caso, dá-se com freqüência a perda da noção do composto (tratado como palavra base), o que facilita que o gênero do composto se regule pela 2ª unidade: o pontapé e a indecisão entre o povo se é a fruta-pão (o normal), se o fruta-pão (com esquecimento do composto).

Contrariamente ao gênero da língua e por imitação inglesa, passou-se a usar de compostos em que o determinante, invariável, ocupa o primeiro lugar, e o determinado o segundo, ficando o gênero do composto regulado por este último elemento: a ferrovia, a aeromoça. Segundo Martins de Aguiar, por esta porta é que nos chegou o masculino de o cólera-morbo (morbo, latino, é masculino) e, na forma reduzida, o cólera, e não por influência francesa. A passagem à forma feminina a cólera-morbo, a cólera, hoje mais usual e aceita deve-se à analogia com o processo regular no português.

Substantivos que podem oferecer dúvida quanto ao gênero

a) São masculinos:

Os nomes de letra de alfabeto, clã, champanha, dó, eclipse, formicida, grama (unidade de peso), jângal (feminino jângala), lança-perfume, milhar, orbe, pijama, proclama, saca-rolha, sanduíche, sósia, telefonema, soma (o organismo tomado como expressão material em oposição às funções psíquicas).

b) São femininos:

Aguardente, alface, alcunha, alcíone, análise, anacruse, bacanal, fácies, fama, cal, cataplasma, cólera, cólera-morbo, coma (cabeleira e vírgula), dinamite, eclipse, faringe, fênix, filoxera, fruta-pão, gesta (= façanha), libido, polé, preá, síndrome, tíbia, variante e os nomes terminados em –gem (exceção de personagem que pode ser masculino ou feminino).

[140] c) São indiferentemente masculinos ou femininos:

Ágape, avestruz, caudal, componente (masculino no Brasil e feminino em Portugal), crisma, diabete, gambá, hélice, íris, juriti, igarité, lama ou lhama, laringe (mas usado no fem.), ordenança, personagem, renque, sabiá, sentinela, soprano, suástica, suéter, tapa, trama (intriga), víspora.

Têm mais de um feminino:

Além dos já apontados no decorrer do capítulo, lembraremos mais alguns:[19] alcaide – alcaidessa, alcaidina; aldeão – aldeã, aldeoa; anfitrião – anfitriã, anfitrioa; aviador – aviadora, aviatriz; bretão – bretã, bretoa; burro – besta, burra, mula; cação – caçote, caçonete; cantor – cantora, cantarina, cantatriz; capitão – capitã, capitoa; cavaleiro – amazona, cavaleira; confrade – confrada, confratiça, confreira; dançarino – dançarina, dançatriz; deus – deusa, diva, déia (poét.); diabo – diaba, diáboa; doge – dogesa, dogaresa; drúida – druidisa, druidesa; elefante – elefanta, elefoa, aliá; eleitor – eleitor, eletriz; embaixador – embaixadora, embaixatriz; ermitão – ermitã, ermitoa; faisão – faisã, faisoa; folgazão – folgazã, folgazona; gamo – corça, gama; governador – governadora, governatriz; javali – javalina, gironda; ladrão – ladra, ladrona, ladroa; locomotor – locomotora, locomotriz; melro – mélroa, melra; motor – motora, motriz (adj.); pardal – pardoca, pardaloca, pardaleja, pardaleza, pardeja, pardoca; parvo – párvoa, parva; perfurador – perfuradora, perfuratriz; polonês – polonesa, polaca; príncipe – princesa, principesa; produtor – produtora, produtriz; rapaz – rapariga, rapaza; senador – senadora, senatriz; tecelão – tecelã, tecelona; ultor – ultriz, ultrice; varão – varoa, virago, matrona; vilão – vilã, viloa.

 

BIBLIOGRAFIA

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LIMA, Rocha. Gramática normativa da língua portuguesa. Prefácio de Serafim da Silva Neto. 37ª ed. [Rio de Janeiro] : J. Olympio [1999].

 


[1] BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro : Lucerna, 1999, p. 131-140.

[2] LIMA, Rocha. Gramática normativa da língua portuguesa. Prefácio de Serafim da Silva Neto. 37ª ed. [Rio de Janeiro] : J. Olympio [1999], p. 71.

[3] Cf. Op. cit., p. 70.

[4] CARVALHO, Herculano de. Enciclopédia luso-brasileira de cultura. Lisboa : Verbo, v. 9, s. v. Gênero, apud BECHARA, Op. cit., p. 132.

[5] CARVALHO, Herculano de. Teoria da linguagem. Coimbra : Coimbra, 1983, vol. II, p. 536, n. 38 e ––––. Estudos lingüísticos. Coimbra : Coimbra, [s. d.], p. 21.

[6] Observe-se que estamos falando de “sufixo” mesmo, porque desinência seria o elemento que acrescentaríamos ao final da palavra para que ela concordasse com outra.

[7] Op. cit. p. 133.

[8] Id. ib.

[9] Cf. ALI, Manuel Said. Gramática histórica da língua portuguesa. 7ª ed. Rio de Janeiro : Acadêmica; São Paulo : Melhoramentos, [1971], p. 69-75 e DOMINGUES, Conde Pinheiro. Variação de gênero em português. In Revista de Cultura. Petrópolis,: [Vozes], 1932.

[10] Uma Lei federal (2.749 de 2 de abril de 1956) pretendeu disciplinar os gêneros dos nomes designativos das funções públicas no âmbito federal, que dispõe: “O gênero gramatical desse nome, em seu natural acolhimento ao sexo do funcionário a quem se refira, tem que obedecer aos tradicionais preceitos pertinentes ao assunto e consagrados na lexicologia do idioma. Devem, portanto, acompanhá-lo neste particular, se forem genericamente variáveis, assumindo, conforme o caso, feição masculina ou feminina, quaisquer adjetivos ou expressões pronominais sintaticamente relacionadas com o dito nome”.

[11] BECHARA, p. 119.

[12] Mattoso prefere ver aqui um exemplo de morfema subtrativo, dizendo que ocorre a supressão da vogal temática sem adjunção de desinência: irmão Õ irmã(o) Õ irmã. Dada a raridade de ocorrência de morfema subtrativo (cf. Bechara, p. 336) em português, e, pelo contrário, a freqüência da regra morfofonêmica da crase, optamos pela lição acima.

[13] Cf. Bechara, p. 119.

[14] Também grafado: tzar – tzarina.

[15] (Camilo Castelo Branco, apud BANDEIRA, Manuel. Andorinha, Andorinha. Rio de Janeiro : J. Olimpio, 1966, p. 150).

[16] Embora esta seja a norma exemplar, o idioma não está fechado a feminizações expressivas, especialmente em nível coloquial e popular, com reflexos em estilizações literárias: a carrasca, a verduga, a pássara etc. (Cf. BARRETO, Mário. De gramática e de linguagem. 3ª ed., 1982, p. 328-329).

[17] BARRETO, Mário. De gramática e de linguagem. 3ª ed., 1982, p. 294.

[18] AGUIAR, Martins de. Notas de português de Filinto e Odorico. Rio de Janeiro : Simões, 1953, p. 160 e ––––––. Repasse crítico da gramática portuguesa. 2ª ed. Fortaleza : Casa de José de Alencar, 1996, p. 157.

[19] Cf. AUTUORI, Luiz & GOMES, Oswaldo Proença. Nos garimpos da linguagem. 6ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro : Forense, 1968, p. 41-44.