A TEORIA DOS ATOS DE FALA APLICADA AO ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA
Renata Braz Amaro (UFF)
O aprendizado da língua materna é um processo natural partindo-se do princípio que a criança está em contato com ela desde seu nascimento.
Ao observar que com o uso de determinados enunciados, até mesmo palavras soltas a criança obtém o que deseja, ela passa a repetir as palavras-chave em vários contextos.
Quando se aprende uma língua estrangeira, ocorre o mesmo processo, os alunos observam o professor e através de suas palavras criam ou repetem enunciados com os quais conseguem obter um efeito sobre os colegas de turma ou sobre o próprio professor.
Na sala de aula o professor faz da sua fala ato, ou seja, o que ele diz provoca uma reação nos alunos, quando ele diz alguma coisa ele faz com que o que ele disse exista.
Durante uma aula o principal recurso empregado pelo professor é o de mostrar aos alunos como se consegue uma resposta em L2, por isso vê-se necessário o estudo dos atos de fala que englobam não só os pedidos, mas todos os enunciados que realizam uma ação. Porém, é importante notarmos que o ato de uma língua não se traduz, daí a dificuldade que o professor de língua estrangeira encontra em mostrar aos alunos que falar uma língua estrangeira não é traduzir o que é dito de L1 para a L2.
Neste trabalho será analisado o estudo feito por John Austin, filósofo da linguagem, que elaborou em sua obra “How to do things with words”[1] uma teoria sobre a natureza da linguagem enquanto forma de realizar ato.
Segundo Austin, haveria dois tipos de atos de fala, o performativo que seria exemplificado por enunciados do tipo: “Aceito esta mulher como minha legítima esposa”, no qual o verbo aceitar não só enuncia uma atitude do falante, mas realiza o ato do matrimônio. Por ter esse papel de realizar uma ação este verbo é chamado de performativo ( através da linguagem se faz uma “performance”; do francês: produção real do discurso oposto à competência).
O outro ato de fala seria o constativo, que não realizaria uma ação, mas teria um caráter declarativo, como exemplo, temos: “João é careca”, este ato de fala estaria descrevendo e não realizando algo.
Mesmo Austin se contradiz com relação a esta divisão entre os performativos e os constativos. Qual critério definiria se um ato é declarativo/constativo ou performativo?
No seu estudo, Austin verificou que alguns enunciados precisavam possuir valor de verdade , a estes enunciados chamou constativos. Porém, existem outros enunciados que não poderiam ser classificados desta maneira por concretizarem uma ação, ao invés de somente declararem, a estes enunciados ele chamou performativos.
Os enunciados performativos não podem ser verdadeiros ou falsos, mas felizes ou infelizes, “formular um tal enunciado é realizar a ação”[2]. Quando digo: “- Prometo não mais brigar com você.”; ao dizer isto eu estou caracterizando uma promessa, ou seja, a partir deste momento não mais brigarei; porém existem várias situações que podem ou não fazer com que esse dito se torne ato: 1- se eu enuncio e não cumpro o prometido, meu enunciado é falso ; 2- se eu nunca briguei com a outra pessoa a quem estou me referindo, meu enunciado é falso; 3- se digo isso para um objeto, meu enunciado é falso.
Além de ser um enunciado, o performativo deve ser uma ação, deve levar a uma ação, não necessariamente uma ação física, mas uma ação comportamental. Nos casos citados verificamos três tipos de infelicidades: 1- a minha infelicidade ocorreu por causa da minha falta de sinceridade; 2- não fui feliz no meu ato, pois eu não respeitei a regra ( para prometer que não brigo mais eu já teria que ter brigado alguma vez); 3- se a minha promessa não é compreendida ela é nula (é preciso que meu interlocutor seja uma pessoa).
Os enunciados para serem felizes, devem ser produzidos em situações que permitam sua felicidade. Mas como classificar enunciados do tipo: “João tem quatro filhas”, que são considerados constativos, quer dizer, deveriam ser verdadeiros ou falsos, será que esta afirmação também não poderia ser feliz ou infeliz? Por exemplo, ela pode ser infeliz se eu digo isto para alguém que não conhece João; ou se João tem três filhas e um filho. Se pararmos para refletir veremos que os performativos e os constativos nem sempre podem ser diferenciados claramente num discurso.
Voltemos ao exemplo “João tem quatro filhas”, ele é tido como um exemplo de enunciado constativo, pois é um enunciado sem ação, ele só afirma. Se você não conhece João minha afirmação é nula, se João tem três filhas e um filho meu enunciado é nulo, se João não tem filhos ou filhas meu enunciado também é nulo, logo caímos nos mesmos problemas das infelicidades dos performativos.
Até mesmo Austin, ao final do seu trabalho “Quando dizer é fazer”, chegou à conclusão de que tudo pode ser considerado performativo, não são só os verbos: prometer, apostar, aceitar; ou fórmulas com verbos no imperativo ( que exigiriam um resposta do ouvinte/receptor em atender ao locutor/ enunciador) , fazem parte de enunciados performativos, mas o simples fato de dizer algo e com as palavras realizar coisas, até mesmo expressões de sentimentos que passam a existir quando são enunciadas ( isto é um performativo). Ao usarmos as palavras para significar coisas, estamos “performando” com a língua.
Como já foi dito anteriormente, o aprendizado da L1 se dá sob circunstâncias naturais, a criança está em contato contínuo com a língua materna. Quando se aprende uma segunda língua (L2) o processo se dá sob circunstâncias artificiais, o aluno é “forçado” a enunciar em L2.
O defeito de todo aprendiz de L2 é o de não conseguir ver a língua estrangeira como uma língua fruto de uma cultura, de hábitos próprios de determinado grupo. Quando se ensina francês, inglês, alemão ou qualquer outro idioma está se ensinando o comportamento de um grupo, ou seja, como um indivíduo que fala o idioma nativo consegue interagir no grupo.
O aluno de L2 tende a traduzir o que deseja dizer, pois ele já tem internalizado o esquema da L1; “a apropriação da L2 pelo aluno está vinculada a sua competência lingüística e a competência de comunicação na sua L1”[3], a partir do sistema de L1 internalizado pelo aluno, este será capaz – usando como modelo sua língua materna – de formular enunciados em L2, através da comparação entre línguas.
No que diz respeito ao ensino de uma língua estrangeira, o francês e o português ( destaco a língua francesa pois ensino este idioma) possuem uma vantagem em relação aos outros idiomas como: inglês , japonês, chinês; os dois idiomas têm origem na mesma língua, o latim. Esse fator facilita o aprendizado em termos de léxico, já que muitos vocábulos se assemelham ( porte = porta, téléphone = telefone), e também em termo de estruturas dos enunciados(sintaxe), a ordem em francês é quase sempre a mesma do português, por exemplo: "Eu estudo francês"(sujeito, verbo, objeto) e "J'étudie le français" (sujeito, verbo, objeto). Por haver tanta semelhança , quando o aluno encontra uma estrutura do tipo J'y vais (Eu vou lá.) ou Je suis allée ( Eu fui ; Pretérito Perfeito que em português é um tempo simples e em francês é um tempo composto), ele se confunde e muitas vezes cria um bloqueio ou desiste de estudar o idioma. Quando as semelhanças são muitas entre um idioma e outro, o aluno se policia menos com relação ao uso da L2 e se vê numa situação constrangedora ao empregar construções erradas e não ser compreendido pelo seu interlocutor. Posso até citar o exemplo de um anúncio do curso de idiomas CCAA. Nele temos um casal que pensa falar espanhol e se confunde na alfândega usando palavras "espanholizadas". Conclusão: acabam tendo problemas com os federais.
Os performativos não se traduzem. Dizer desculpas em português não é igual a dizer desculpas em francês, a intenção pode até ser a mesma, de alguém que se arrependeu, ou que está pedindo passagem. Como exemplo de diferentes usos podemos citar o emprego do você em português e o do vous em francês. O francês é um idioma que dá valor ao uso formal e informal da língua de acordo com o grau de intimidade entre interlocutores, se me dirijo a alguém na rua pedindo uma informação no Brasil, posso me referir a outra pessoa empregando o pronome você, no lugar de Senhor ou Senhora , esse uso do pronome não causa nenhum espanto no meu interlocutor. Já em língua francesa, não seria educado me dirigir a alguém com quem não tenho intimidade, parentesco, ou que ocupe, profissionalmente falando, um posto superior ao meu por você, isto seria uma insulta, eu não conseguiria, sem ouvir comentários desagradáveis, uma resposta ao meu enunciado.
Ao falarmos estamos atuando no inconsciente do outro, pois além de modificar comportamentos os performativos interagem com o outro. Se eu cumprimento alguém na rua , se digo : "Bom dia!", além de estar mostrando ao outro o meu desejo de que o dia seja bom para ele , eu o estou reconhecendo como meu interlocutor ou simplesmente demonstrando educação. Talvez eu não obtenha resposta, mas certamente se o meu interlocutor escutou o que eu disse, ele vai refletir se já me viu alguma vez, se o que eu disse foi simplesmente uma atitude simpática ou uma cantada, mas com certeza alguma modificação no comportamento do outro eu causei.
Não devemos esperar a mesma resposta a enunciados idênticos em línguas distintas, pois além do léxico, no enunciado estão em questão os costumes de uma comunidade. O que se pode garantir é que tudo o que é dito leva a uma modificação e passa a existir pois foi enunciado.Concluímos que ensinar uma língua estrangeira é tentar mostrar aos alunos como é possível através do discurso em L2 várias coisas, tais como: a mudança de comportamento do meu interlocutor, a resposta a uma pergunta, um consentimento a um pedido, ou seja , é fazer da língua ato, é fazer dela um performativo. Para que o aluno perceba que esta língua estrangeira que não faz parte do seu quotidiano é performativa, cabe ao professor criar situações imaginárias nas quais os alunos, assim como os usuários da L2 , deverão conseguir o que querem através do uso desta língua.
BIBLIOGRAFIA
AUSTIN, John Langshaw. A Plea doe Excuses. In Philosophical Papers. Oxford : University Press, 1961.
_____. Performatif-Constatif In Carnet de Royaumont. La Philosophie Analytique. Paris : Les Éditions de Minuit, 1962.
_____. Quando dizer é fazer. Porto Alegre : Artes Médicas, 1961.
CARIOCA, Antônio Bezerra (org). Léxico, Análise do Discurso e Ensino/Aprendizagem do Francês Língua Estrangeira. Rio de Janeiro : Estácio de Sá, 1995.
[1] Traduzido para o português por Quando dizer é fazer. Cf. AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Porto Alegre. Artes Médicas, 1990.
[2] AUSTIN, John Langshaw. “Performatif-Constatif” In Cahier de Royaumont-La Philosophie Analytique,.Les Éditions de Minuit, Paris, 1962.
[3] CARIOCA, Antonio Bezerra (org) Léxico, Análise do discurso e Ensino/ Aprendizagem do Francês Língua Estrangeira. Universidade Estácio de Sá.Rio de Janeiro, 1995.