AMAR POR AUSÊNCIA, UMA LEITURA INTERPRETATIVA DO POEMA “AMAR”, DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Sântila Januário Meireles (UERJ)

AMAR

Que pode uma criatura senão,

entre criaturas, amar?

amar e esquecer,

amar e malamar,

amar, desamar, amar?

sempre, e até de olhos vidrados, amar?

 

Que pode, pergunto, o ser amoroso,

sozinho, em rotação universal, senão

rodar também, e amar?

amar o que o amar traz à praia,

o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,

é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

 

Amar solenemente as palmas do deserto,

o que é entrega ou adoração expectante,

e amar o inóspito, o áspero,

um vaso sem flor, um chão de ferro,

e o peito inerte, e a rua vista em sonho,

e uma ave de rapina.

 

Este o nosso destino: amor sem conta,

distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,

doação ilimitada a uma completa ingratidão,

e na concha vazia do amor a procura medrosa,

paciente, de mais e mais amor.

 

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa

amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

Carlos Drummond de Andrade

O aspecto antitético do amor na poesia de Carlos Drummond de Andrade se faz presente no poema Amar como muito bem é exposto por Affonso Romano de Sant’Anna, no livro Carlos Drummond de Andrade: Análise da Obra, levando este sentimento ao recorrente dualismo: “construção-destruição”. “ganho-perda”, “instante-eternidade”.

Para representar esta antítese, o eu-lírico utiliza-se de imagens marinhas. Neste sentido o mar, no dicionário de símbolos representa:

Símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e retorna a ele: Lugar dos nascimentos, das transformações e dos nascimentos. Águas em movimento, o mar simboliza um estado transitório entre as possibilidades ainda informes as realidades configuradas, uma situação de ambivalência, que é a de incerteza, de dúvida, de indecisão e que pode se concluir bem ou mal. Vem daí que o mar é ao mesmo tempo a imagem da vida e a imagem da morte. (Chevalier & Gheerbrant, 1996, p.592)

Outros símbolos manifestos na poesia como as palavras concha e deserto também comportam essa ambivalência. O primeiro “evocando as águas onde se forma, participa do simbolismo da fecundidade própria da água. Sua forma e sua profundidade lembram o órgão sexual feminino...”, mas a “concha está ligada também à idéia de morte pelo fato de ser a prosperidade que ela simboliza, para uma pessoa ou para uma geração, o resultado da morte do ocupante primitivo da concha, ou da morte da geração precedente.” O segundo se faz “a partir da simples imagem da solidão. É a esterilidade, sem Deus. É a fecundidade, com Deus...”

A palavra sal também apresenta um fio semântico muito expressivo no poema. Neste caso, sal é antítese do amor representando amargura, mas também é o tempero deste. (dialética).

Este conflito que perpassa a poesia, acaba se traduzindo entre o “efêmero e o eterno”, “transitório e definitivo”, tendo em vista que a continuidade que se requer do amor enquanto sinônimo de vida, o coloca no mesmo nível que o tempo: destruidor.

Desta forma, os objetos que o poeta se esforça por amar revelam a precariedade do ser humano. O amor é visto, portanto, pelo eu-lírico como negatividade, pois se desfaz, se esvai ao longo do tempo, estando por assim dizer estreitamente ligado a dor, ao frio, a secura. Na 4° estrofe a constatação do poeta fica mais explícita quando exprime: “Este o nosso destino: amor sem conta”, ou seja, doar a esse amor irrefreavelmente, porém nunca tê-lo de forma absoluta, pois ele é perecível como o tempo.

A frustração, a angústia, a impotência é reflexo da ausência deste amor que o ser humano sente, vendo “frustrar-se sua única possibilidade de absoluto, sua única chance de alçar-se acima de sua falácias”, sugerindo então o eu-poético, amar mesmo assim na ausência deste amor, a falta dele que acaba por se corporificar na sua dor, que nada mais é que o seu vazio.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Carlos Drummond de Andrade: análise da obra. 2.ed. Rio de Janeiro : Documentário, 1977.

CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). 10 ed. Rio de Janeiro : José Olympio, 1996.