A PENÍNSULA IBÉRICA SE DESPRENDE DA EUROPA NA FICÇÃO DE JOSÉ SARAMAGO

Isabel Cristina Ramos Gonçalves

Para Regina Michelli, com carinho.

 

Quando os portugueses adotam uma política de expansão e de colonização, “um outro valor mais alto se alevanta” na História de Portugal. Esse passado representa um período assinalado por feitos gloriosos que fazem brilhar a alma da nação portuguesa. Todavia, esse tempo parece hoje ter naufragado, só lhe restando, ao menos aparentemente, ser resgatado pela memória gloriosa e nostálgica do olhar. José Saramago, entretanto, através da ficção, prefere a estratégia de um olhar crítico e acrescenta novo sentido à História, pois, ao criar uma mirabolante viagem peninsular, investe em uma viagem para um novo tempo. Uma vez mais a “barca (...) se afasta do porto e aponta ao mar outra vez desconhecido” [1], refazendo o processo antigo sem, entretanto, repeti-lo.

À luz do contexto histórico, a imagem de Portugal, diante das demais nações do globo e diante de si mesmo, é a de um país estagnado, decadente, adormecido em um sono profundo, tal qual a imagem da lagartixa de que nos fala José Cardoso Pires n’ O delfim. Neste romance, o autor apresenta o tempo amesquinhado da nação portuguesa que a História foi tecendo. A imagem da lagartixa imóvel espalmada na inscrição imperial representa o tempo amesquinhado de uma pátria que vive das ruínas de um passado imperial, cuja voz não mais existe, perdeu-se ou não se ouve. A “lagartixa meu brasão do tempo” é a imagem de um Portugal de contrastes entre um passado de progresso, em que se evidenciam as nobres e valorosas virtudes, e um presente de imobilidade, de deterioração, de dissolução, enfim um Portugal em decadência.

Diante de um Portugal estagnado e decadente, urge criar um novo mundo, liberto das intervenções estrangeiras tanto no âmbito político e econômico, quanto no âmbito social e cultural. De acordo com o pensamento de Mircea Eliade em Mito e realidade, a criação de um novo mundo só é possível a partir da destruição dos vestígios e das ruínas do velho mundo. Nesse sentido, “a escatologia é apenas a prefiguração de uma cosmogonia do futuro. Mas toda escatologia insiste em um fato: que a Nova Criação não pode ter lugar antes que este mundo seja definitivamente abolido".

[2] Se, na perspectiva da teoria cíclica, da qual nos fala Eliade, depreendermos que “a todas as destruições se sucede uma re-criação”[3], a intenção não é a de regenerar o que já degenerou, mas sim a de criar um novo mundo. Para tal, é preciso destruir o velho e já caduco mundo e construir um começo absoluto, uma nova Era.

Para Mircea Eliade, os mitos de cataclismos cósmicos são extremamente difundidos. Eles contam como o mundo foi destruído e a humanidade aniquilada. Tremores de terra, incêndios, desabamento de montanhas, epidemias são alguns cataclismos de proporções cósmicas que relatam a destruição da humanidade. Obviamente, esse “fim do mundo” não é radical, é apenas o fim de uma humanidade a que se segue uma nova humanidade.

Que nos autoriza a ler um romance de Saramago, sempre atento aos caminhos da História, por um viés ou com arsenal mítico? Essa autoridade, podemos buscá-la no próprio projeto desse romance que radicaliza sua opção pelo fantástico e utiliza uma grande metáfora de foro mítico para pensar a História passada e presente. Das grandes navegações à viagem para a Europa dos anos 80, José Saramago vai buscar o gancho para a construção, em território mítico, da sua dupla utopia: a navegação como projeto ideológico renovado de harmonia e encontro onde antes havia colonização e exercício do poder; e a recusa da participação dos países ibéricos na Comunidade Européia. O território mítico é metáfora, sim, e, como tal, estratégia a ser descodificada. Mas, mito instituído, como mito podemos começar a lê-lo.

Nesse sentido, em A Jangada de pedra, não há uma destruição radical do mundo, o que há é a insatisfação perante uma certa realidade e portanto uma necessidade de mudanças significativas. O desprendimento ficcional da Península Ibérica é uma ruptura com o continente europeu e traz consigo as suas causas e conseqüências. Evidentemente, o fato inusitado é o modo pelo qual José Saramago nos leva a pensar sobre as velhas e sérias questões peninsulares diante do cenário europeu.

Em A Jangada de pedra, José Saramago procurou textualizar o cenário em que o todo peninsular se enquadra, e o autor faz ressurgir as questões que tecem a tão embaraçada meada entre portugueses e espanhóis diante de seus vizinhos economicamente mais fortes: os outros europeus. Sua estratégia é, como dissemos, a da intromissão do caráter fantástico, e é precisamente a partir de uma situação inusitada que iniciamos a nossa leitura: o ladrar dos cães de Cérbero e a sua relação com o apagamento histórico de Portugal. Bastou que Joana Carda riscasse o chão com a vara de negrilho para que, inexplicavelmente, os cães de Cérbero, depois de uma secular mudez, saíssem à rua vociferantes e “repete-se, nunca tinham ladrado”.

[4] O ladrar dos cães, até então silenciosos, nos leva a pensar no rompimento com a “austera, apagada e vil tristeza” que caracteriza a nação portuguesa. O seu apagamento histórico, representado pelo silêncio dos cães de Cérbero, evoca não só questões de caráter político-econômico e cultural, como também a iminente metamorfose pela qual devem passar os portugueses. De certo modo, o ladrar dos cães anuncia um novo momento na condição portuguesa face ao estrangeiro.

[5] O discurso literário dá conta, de forma irônica, dessa preocupação com a sorte das terras peninsulares, que se multiplica pela Europa, “Mãe amorosa”, no desejo de saber o que se estava passando com as suas terras extremas a ocidente.

Mãe amorosa, a Europa afligiu-se com a sorte das suas terras extremas, a ocidente. Por toda a cordilheira pirenaica estalavam os granitos, multiplicavam-se as fendas, outras estradas apareceram cortadas, outros rios, regatos e torrentes mergulharam a fundo, para o invisível.[6]

O aparecimento das fendas que se multiplicam por toda a cordilheira gera um pânico geral. A instabilidade geológica de causa desconhecida gera profunda inquietação, desorganizando por completo o quotidiano do todo peninsular. Os embaraços causados pelo inusitado fenômeno natural são os mais diversos. Primeiro, a falta de luz, que conduz ao desespero, pois parecia que o fim de tudo chegara. Com a volta da energia, entretanto, portugueses e espanhóis sentem-se mais tranqüilos e pensam que não há possivelmente mais razão para tanto desespero, exceto os “ricos e poderosos” que deixam imediatamente o território. Os turistas, que se deliciavam com as férias de verão na região peninsular, seguem também desesperados como em uma corrida para a salvação. A fuga desenfreada dos turistas implica uma série de conseqüências: saques, assaltos, congestionamentos nas estradas, grandes confusões nos aeroportos. Devido à grande demanda de passagens, houve a pane nos computadores, e, como uma última esperança de fuga é dada a largada para uma grande corrida aos portos, de onde, desejosos de abandonar a “terra maldita”, esses turistas desejam partir para qualquer lugar e em qualquer tipo de embarcação, incluindo as menos seguras. Enfim, a península tornou-se “uma babel furiosa de gestos e de gritos”.

Todas as imagens que poderiam entretanto, anunciar o fim do mundo, cedo se recuperam e se transformam. O caos não é aniquilante e o que parecia dor cedo se converte em gozo. A península que se abre é antes de tudo uma península-mulher, sensual, oferecida, cuja descoberta do prazer está justamente no consentimento de deixar-se abrir “como uma romã”, revelando-se em seu interior, apetecível. Lembremos que já na Idade Média a romãzeira era a árvore sensual por excelência que abrigava a amiga em sua bailada de sedução do amigo. Aqui, no texto de José Saramago, é a península que se identifica com a romã, e se abre num parto sem dor.

Não podia a força humana nada a favor duma cordilheira que se abria como uma romã, sem dor aparente, e apenas, quem somos nós para o saber, porque amadurecera e chegara o seu tempo.[7]

Como no verso camoniano, “mais do que prometia a força humana” [8], não havia nada que contivesse o movimento peninsular que se iniciava, como se fosse cumprir o seu destino: “E entre gente remota edificaram / Novo Reino, que tanto sublimaram”[9]. Mas, no momento em que o escritor vai textualizar esse episódio, “a mão hesita”, e o ato de escrever é problematizado pela preocupação do romancista em escrever, dentro de alguma verossimilhança, um acontecimento tão inusitado — a separação geológica da Península Ibérica do continente europeu. O processo de enunciação revela então no próprio enunciado a hesitação do autor no momento de inscrever o insólito. Todavia, a escrita saramaguiana é capaz de (re)inventar e mudar o mundo e as suas concepções e pelo brilho da imaginação vai ao encontro da palavra poética, que transforma um acontecimento inverossímil perante às leis físicas em algo que só é possível através da ficção. É, portanto, graças a um narrador que investe no imaginário e no metafórico que conhecemos o fato insólito através da imagem de um machado[10] que não só corta, mas que também penetra — “introduzindo-se nas fendas profundas”. Assim sendo, o que se vê é um investimento erótico que configura esta passagem do texto: o machado racha os elementos femininos — pedra e terra — deixando surgir a água. O rompimento peninsular dá-se então repleto de imagens eróticas que culminam com as águas do Rio Irati caindo em queda livre, com o “leque de cristal” ou a “cauda de ave-do-paraíso” que se abre em consentimento de sedução e projeto livre do vôo. É preciso acrescentar, ainda, que a cauda[11] possui um caráter fálico, pois seu significado tem relação com o complexo simbólico da serpente. Ora, o discurso romanesco encarrega-se sobretudo de converter o caos tenebroso e as trevas em uma visão de cores e de luz, na bela imagem de um primeiro arco-íris que colore o mundo das profundezas — o abismo[12], e de uma primeira vertigem de gavião[13]. Sendo assim, o arco-íris[14], que geralmente é concebido como anunciador de felizes acontecimentos ligados ao processo de renovação cíclica, é a própria imagem de um futuro cheio de esperanças, cujo novo caminho já está sendo traçado com a ruptura dos Pireneus. E o processo de enunciação que se demonstra na narrativa saramaguiana, problematizado na hesitação do autor a escrever o novo, é agora um primor de texto:... É que, e neste ponto fatal a mão hesita, como irá ela escrever, de plausível maneira, as próximas palavras, essas que tudo sem remédio irão comprometer, tanto mais que muito difícil se vai tornando já destrinçar, se tal se pode em algum momento da vida, entre verdades e fantasias. É que, concluamos o que suspenso ficou, por um grande esforço de transformar pela palavra, o que talvez só pela palavra possa vir a ser transformado, chegou o momento de dizer, agora chegou, que a Península Ibérica se afastou de repente, toda por inteiro e por igual, dez súbitos metros, quem me acreditará, abriram-se os Pireneus de cima a baixo como se um machado invisível tivesse descido das alturas, introduzindo-se nas fendas profundas, rachando pedra e terra até ao mar, agora sim, poderemos ver o Irati caindo, mil metros, como o infinito, em queda livre, abre-se ao vento e ao sol, leque de cristal ou cauda de ave-do-paraíso, é o primeiro arco-íris suspenso sobre o abismo, a primeira vertigem do gavião que com as asas molhadas paira, tingidas de sete cores.[15]

Seguindo, então, sua vocação atlântica, a península se afasta toda, “por inteiro e por igual”, do continente europeu, e se torna uma ilha navegante, uma “jangada de pedra” que se lança ao mar aberto em busca de um novo lugar para fixar-se. Agora é a própria terra que navega, o povo marinheiro por tradição opta por essa viagem e leva consigo a sua gente assinalada e a sua pátria. Medo e crise superados, a nau prossegue à procura de outros mares, num evidente nascimento/separação da “Mãe Europa”, de que não se esquece sequer a imagem do corte do cordão umbilical (“rebentaram como simples cordéis”). Desse nascimento genesíaco provém, assim, “um grande sopro”, força de vida que impele ao movimento e relança a península na tradição das viagens ibéricas: “e aponta ao mar outra vez desconhecido”.

Então, a Península Ibérica moveu-se um pouco mais, um metro, dois metros, a experimentar as forças. As cordas que serviam de testemunhos, lançadas de bordo a bordo, tal qual os bombeiros fazem nas paredes que apresentam rachas e ameaçam desabar, rebentaram com simples cordéis, algumas mais sólidas arrancaram pela raiz as árvores e os postes a que estavam atadas. Houve depois uma pausa, sentiu-se passar nos ares um grande sopro, como a primeira respiração profunda de quem acorda, e a massa de pedra e terra, coberta de cidades, aldeias, rios, bosques, fábricas, matos bravios, campos cultivados, com a sua gente e os seus animais, começou a mover-se, barca que se afasta do porto e aponta ao mar outra vez desconhecido.[16]

A fenda dos Pireneus, que separa os povos ibéricos dos outros europeus, representa a libertação da península dos fios embaraçados de suas histórias com o continente europeu. É portanto a libertação de um passado e a promessa de um futuro, o qual se cumprirá no momento em que todas as mulheres férteis do romance engravidarem simultaneamente na grande explosão genesíaca da península. Sendo assim, o desprendimento da península abre caminho para a recriação do todo peninsular e, evidentemente, para uma regeneração do povo que ali vive. E a Península Ibérica assim como a lagartixa cardosiana “sacudiu-se no seu sono pedra.”[17].

Em suma, esses mitos do Fim do Mundo, implicando mais ou menos claramente a recriação de um novo Universo, exprimem a mesma idéia arcaica e extremamente difundida da ‘degradação’ progressiva do Cosmo, requerendo sua destruição e sua recriação periódicas.[18]

O rompimento é, portanto, momento de decisão, e o termo escatologia acrescenta a designação de um momento preciso, é um dado temporal que assinala a etapa final de um determinado acontecimento e que anuncia um novo tempo, não necessariamente apocalíptico.

O rompimento geológico peninsular é uma ficção da qual o autor se vale para evidenciar a verdadeira distância entre os ibéricos e os demais europeus e para apontar sua vocação atlântica, com quem resgatará sua imagem de povo semiperiférico à espera de uma inscrição pessoal na História. A ruptura dos Pireneus representa, pois, a possibilidade de uma nova conquista da península frente ao cenário contemporâneo mundial, seja em termos político-econômicos, seja em termos sócio-culturais. A Península Ibérica abre-se para um novo mundo, cheio de esperanças. “Afinal também temos primavera.”[19].

 


[1] SARAMAGO, José. A Jangada de pedra. 5ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 43.

[2] ELIADE, M. Mito e realidade. Trad. Pola Civelli. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 51.

[3] LE GOFF, J. (org.). ENCICLOPÉDIA Einaudi. Memória/História. vol. I. Lisboa: Imprensa Nacional, 1984. p. 431.

[4] SARAMAGO, J. Op. cit. p. 8.

[5] E aqui, como já dissera José Saramago, eurocentrismo radical de uma Europa central em relação a uma Europa periférica. Em outras palavras, uma perversa centralização da Europa em relação a si mesma.

[6] SARAMAGO, J. Op. cit. p. 31.
[7] SARAMAGO, J. Op. cit. p. 31.
[8] CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Ed. organizada por Emanuel Paulo Ramos. Porto: Porto Editora, [s.d.]. Canto I, estrofe 1, vv.6.
[9] CAMÕES, Luís de. Op. cit. Canto I, estrofe 1, vv. 7-8.
[10] CHEVALIER, J., GHEERBRANT, Jean. Dicionário de símbolos. 7. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993. p. 576. Segundo a definição encontrada no Dicionário de símbolos, o machado “fere e corta, vivo como o relâmpago, com ruído e, às vezes, soltando faíscas. Por isso, talvez, em todas as culturas, vem associado ao raio e, em conseqüência, à chuva. O que leva aos símbolos da fertilidade. Os exemplos e desenvolvimentos dessa linha simbólica fundamental são múltiplos. /.../, sendo a arma da tempestade, é emblema de força. Ele entreabre a Terra e nela penetra, /.../, figura sua união com o Céu, sua fecundação. Fende a casca da árvore: é símbolo, aí, de penetração espiritual ( até o coração do mistério) bem como um instrumento da libertação”.
[11] CHEVALIER, J. Op. cit. p. 765.
[12] CHEVALIER, J. Op. cit. p. 5. De acordo com a definição encontrada no Dicionário de símbolos, “o abismo intervém em todas as cosmogonias, na forma de gênese e do fim da evolução universal. Este último, como os monstros mitológicos, engole os seres para depois vomitá-los, transformados.”.
[13] CHEVALIER, J. Op. cit. p. 463. O gavião representa uma ave caçadora e agressiva, freqüentemente designa o pênis.
[14] CHEVALIER, J. Op. cit. p. 78.
[15] SARAMAGO, J. Op. cit. p. 34.
[16] SARAMAGO, J. Op. cit. p. 43.
[17] PIRES, J. C. O delfim. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. p. 37.
[18] ELIADE, M. Op. cit. p. 58.
[19] PIRES, J. C. Op. cit. p. 37.