A INTERTEXTUALIDADE PARA UM NOVO (DIS)CURSO EM ESAÚ E JACÓ, DE MACHADO DE ASSIS

Sandra Maria Pereira do Sacramento

 

1-  Introdução

Todos os oráculos têm o falar dobrado, mas entendem-se.
(Machado de Assis)

Temos por objetivo fazer uma leitura de Esaú e Jacó, de Machado de Assis, procurando estabelecer uma relação intertextual com a série literária e com a série social. De antemão, sabemos que esta relação não acontece de forma imitativa, mas parodística.

A paródia é uma forma dialética de comunicação entre o texto literário e o(s) “texto(s)” extraliterário(s) em que o discernimento crítico se faz presente. A intertextualidade acontece na medida em que perturba o sentido do texto primeiro, seja literário ou não, fazendo com que o clichê seja transformado.

Machado de Assis pontilha toda a intriga de Esaú e Jacó com os dados do cotidiano, não levados em conta pela historiografia oficial. Dentro desta concepção, que é da “Nouvelle Histoire”, não existem fatos históricos fora de um contexto infinito de intrigas. E o romancista, neste momento, confunde-se com o historiador, ao valorizar o homem, enquanto ser problemático, em sua singularidade, na coletividade.

 

2- A Intertextualidade em Relação à Série Literária

Ao citar a série literária, o narrador não está fazendo mais do que parodiá-la, em um processo de intertextualidade.

Brunel, em Que É Literatura Comparada?, diz-nos, reproduzindo as palavras de Malraux, que “A obra de arte não é criada a partir apenas da visão do artista, mas também a partir de outras obras: esta afirmação célebre de Malraux permitiu definir a intertextualidade.[1]

A intertextualidade acontece em relação às narrativas mítico-grega, bíblica do Velho Testamento e bíblico-cristã, respectivamente: Castor/Pólux, Esaú/Jacó e Pedro/Paulo. Esses elementos são recriados, num processo de produtividade parodística, e não e de “pastiche”.

O mito grego de Castor e Pólux é retomado de uma maneira diferenciada, com contraste ao nível do conteúdo. No cap. 121 - “Último”, encontramos a “citação” mítica, porém com divergência: “Castor e Pólux foram os nomes que um deputado pôs aos dous gêmeos...”.[2]

A divergência acontece em relação à narrativa mítica, porque Castor e Pólux, filhos de Júpiter e Leda, apesar das brigas constantes, repartem a imortalidade, concedida por Júpiter: estes acabam, no final, sem qualquer animosidade entre ambos.

A segunda fonte de suporte mítico é a narrativa bíblica do Velho Testamento (Gênesis, caps. 27 a 33) enfatizando o episódio em que Esaú e Jacó brigaram no ventre da mãe.

Este suporte é utilizado para o título do livro, encontrado na “Advertência”, quando o narrador da instância discursiva coloca-se em relação ao que vai narrar:

Tal foi a razão de se publicar somente a narrativa. Quanto ao título, foram lembrados vários, em que o assunto se pudesse resumir, Ab ovo, por exemplo, apesar do latim; venceu, porém, a idéia de lhe dar estes dous nomes que o próprio Aires citou uma vez: Esaú e Jacó.[3]

Na narrativa bíblica veterotestamentária, Esaú e Jacó são gêmeos, e brigam no ventre da mãe. Esaú é usurpado de sua primogenitura por Jacó; a partir daí, desenvolve-se uma rivalidade entre ambos, porém, no final, há a reconciliação. Ao contrário do que acontece na narrativa machadiana, em que Pedro e Paulo nunca deixaram de ser inimigos.

Vejamos o que diz a narrativa segunda, em relação aos gêmeos, no cap. 121 - “Último”:

Nada era novidade para o Conselheiro, que assistira à ligação e desligação dos dous gêmeos. Enquanto o outro falava, ele [Conselheiro Aires] ia remontando os tempos e a vida deles, recompondo as lutas, os contrastes, a aversão recíproca, apenas disfarçada...[4]

A narrativa bíblica, no desfecho da rivalidade (Gênesis, cap. 33), confirma-nos:

Esaú retomou: “Eu tenho o suficiente, meu irmão, guarda o que é teu.

Mas Jacó disse: “Não, eu te peço! Se encontrei graça a teus olhos, recebe o presente de minha mão. (...)”. Instado, Esaú aceitou.

Disse este: “Tomemos o bando e partamos; eu caminharei na frente.[5]

Quanto à dupla Pedro e Paulo, o processo intertextual parodístico acontece porque, na narrativa evangélica, Pedro e Paulo nunca foram irmãos. Pedro, apóstolo, tinha um gênio destemido e impetuoso e Paulo, que não foi apóstolo, era mais intelectualizado e comedido.

Pedro e Paulo, na narrativa segunda, são irmãos e inimigos, até na escolha do sistema político - Pedro é monarquista, conservador e Paulo, republicano, liberal - e gostam da mesma moça: Flora.

A intertextualidade acontece como perturbadora do texto anterior, na medida em que, durante o processo escritural, o autor/narrador interpõe a sua visão ao que foi “dito”, anteriormente.

 

3- Intertextualidade - De Como Ocorre a Paródia em Relação à Historiografia Oficial

Machado de Assis, ao parodiar o real histórico do Brasil do final do Império e início da República, estava aproveitando os dados da historiografia oficial, não em sua forma “bruta”, exterior, mas sim, de uma maneira interna – como diz-nos Antonio Cândido, em Literatura e Sociedade, fazendo parte da urdidura da obra, sob uma perspectivação literária.

Dados da historiografia oficial são retomados, artisticamente, como no exemplo (Cap. 19 - “Apenas Duas - Quarenta Anos. Terceira Causa”): “(...) era um modo de ligar o seu Decameron delas, herdando do velho reino português, quando os reis mandavam o que queriam, e a nação dizia que era muito bem”.[6]

Neste passo, notamos uma crítica ao Absolutismo e uma valorização velada do Liberalismo.

A historiografia oficial constitui sempre a “visão” de algo e é “um saber decepcionante que nos ensina coisas que seriam tão banais como a nossa vida se não fossem diferentes”.[7]

Neste processo, o romance “denuncia a visão parcializada das grandes sínteses, uma vez que a narrativa histórica é sempre ‘repetição’ de fatos”, e não, o próprio fato em ação.

Trabalhando com o imaginário, como trabalhou, nosso autor levanta o véu das “verdades” como progresso e modernidade, para deixar prevalecer o fragmento. Percebeu ele que o Projeto de Modernidade, em nosso país, ficou atrelado a interesses de poucos e que a “razão iluminista” de libertação do homem acabou atrofiada.

As afinidades estruturais entre a História Acontecimental[8] e a narrativa literária sempre foram colocadas em destaque; este comportamento deve-se ao fato de ambas trabalharem com a sucessividade temporal. Já se disse até, a respeito da Ilíada: “quem a ler como um relato histórico, encontrará ficção e em contrapartida, quem a lê como lenda, encontra História”[9], numa aproximação de relato histórico = ficção e lenda = História, em que se percebe, portanto, o reducionismo entre sucessão temporal - relato histórico/História - e um mesmo conceito de verdade - ficção/lenda.

Neste sentido, a ficção é História e a História é ficção, quando ambas repousam no relato mítico, visto a narrativa histórica ser “reconstituição” do que aconteceu, e não o próprio fato em ação. E a “seleção” do evento, quase sempre, fica atrelada a um posicionamento político-ideológico daquele que o enuncia. Nesta perspectiva, o conceito de “verdade” se enfumaça no horizonte das “idéias dominantes”.

Vejamos um trecho do cap. 60 - “Manhã de 15”: “[Conselheiro Aires] Não perguntou nada ao cocheiro; este é que lhe disse tudo e o resto. Falou de uma revolução, de dous ministros mortos, um fugido, os demais presos. O imperador, capturado em Petrópolis, vinha descendo a serra.”[10]

Notamos, neste passo, que a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, é tratada em uma contextualização espácio-temporal, sem uma visão de totalização do fato histórico, isto é, existem outros componentes envolvidos no processo. Depreendemos que a sociedade brasileira ficou estratificada em estamentos e nos leva a concordar com Raymundo Faoro, quando diz que o Estado e a Nação são “realidades diversas, opostas, que mutuamente se desconheciam”.[11] Como conseqüência desse hiato entre Estado e Povo, desenvolveu-se uma postura, por parte de nossos políticos e legisladores, de “construir a realidade a golpe de leis”.

 

4- Historiografia Oficial versus Paródia: Por Uma Estratégia Discursiva

A paródia acontece na medida em que o plano da enunciação discursiva não é cópia do plano da enunciação da história, mas constitui um distanciamento crítico em relação ao que foi dito anteriormente. A enunciação histórica está para o real, para a série social e a enunciação do discurso para a ficção.

Linda Hutchcon, em Uma Teoria da Paródia, deixa claro, no trecho a seguir, a “situacionalidade” e o “diálogo” estabelecido entre o texto anterior, fazendo parte da série social, no caso histórica, e o texto atual.

Vejamos o que ela nos diz:

(...), a paródia não envolve apenas énoncé estrutural, mas também énontiation inteira do discurso. Este ato enunciativo inclui um emissor da frase, um receptor desta, um tempo e um lugar, discursos que a precedem e se lhe seguem - em resumo todo um contexto.[12]

Ou seja, no presente da enunciação, existe um eu narrador, que deixa aflorar a sua subjetividade, estabelecendo relações parodísticas com outros enunciados, numa simiose de distanciamento crítico.

Em Esaú e Jacó, os dados da historiografia oficial, portanto o que já aconteceu, são usados como suportes externos, com o objetivo de prevalecer um drama pessoal, fazendo parte de uma grande intriga.

Vejamos alguns passos (cap. 31 - “Flora”):

Nasceu em agosto de 1871. A mãe, que datava, por ministérios, nunca negou a idade da filha:

- Flora nasceu no ministério Rio Branco, e foi sempre fácil de aprender, que já no ministério Sinimbu sabia ler e escrever corretamente.[13]

Identificamos a verossimilhança, na medida em que o realismo, em arte, é sistêmico, e não referencial.

O personagem Paulo, por exemplo, deixa transparecer a crítica do narrador, quando da Libertação dos Escravos, ao dizer, no cap. 37 - “Desacordo no Acordo”, que: “A Abolição é aurora da liberdade; esperamos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco.”[14]

A questão da Modernidade é destacada, neste capítulo, deixando clara a perspectiva de como aconteceu aqui. Sendo um país, eminentemente, oligárquico, a nossa aristocracia agrária via a escravidão e os ideais da Revolução Francesa, do Liberalismo, com dois pesos e duas medidas.

Sabemos que o ideário do Iluminismo, que foi a fonte motivadora da Modernidade, era colocar a razão acima de qualquer entrave. A religião, por exemplo, era responsável pelo misticismo, pelo acovardamento do homem, diante do desconhecido. Só a razão o libertaria e só ela era fonte de conhecimento e capaz de estabelecer uma moral.

Nos capítulos 49 - “Ao Piano” e 62 - “Pare no D”, há toda uma crítica subjacente à passagem do Império para a República, sendo as representações sociais ditadas por forças alheias à população.

Vejamos esses passos do cap. 62 - “Pare no D”: “Ao acordar [Custódio] de manhã soube logo do que houvera na cidade, mas pouco a pouco vieram vindo notícias, viu passar um batalhão e creu que lhe diziam a verdade os que afirmavam a revolução e vagamente a república.” (grifos nossos).[15]

As intrusões do narrador, na instância narrativa, estão presentes, marcando todo o seu distanciamento do fato histórico e deixando patente a sua crítica, no enunciado, através da utilização de vocábulos como creu, diziam, a verdade e vagamente, impregnados de crítica.

Faz-nos lembrar José Murilo de Carvalho, em Os Bestializados, reproduzindo uma frase do famoso sábio francês Louis Cauty, radicado no Brasil, à época da Proclamação da república, que dizia: “O Brasil não tem povo.”.[16] E Aristides Lobo, também durante a passagem do Império para a república, dizia que “O povo assistiu a tudo bestializado”.[17]

Esse posicionamento confirma-se, porque, ao longo da narrativa, os fatos históricos são vistos pela ótica daqueles que não detêm o poder nas mãos.

Vejamos um fragmento do cap. 48 - “Terpsícore”, em que percebemos a intenção do narrador de textualizar aquelas vivências, que, não sendo centrais, nem por isso se acham, completamente, nas margens do processo, isto é, Natividade, a mãe dos gêmeos, não estava interessada, a princípio, com a discussão travada entre D. Cláudia e seu marido, a respeito dos liberais ou conservadores: “Nenhuma dessas causas preocupava Natividade. Mais depressa cuidaria do baile da Ilha Fiscal, que se realizou em novembro para honrar os oficiais chilenos.”[18]

Falamos, antes, do distanciamento entre a res publica e o povo. Vejamos, no cap. 63 - “Tabuleta Nova”, a mesma visão:

 

E afinal que tinha ele [Custódio] com política? Era um simples fabricante e vendedor de doces, estimado, afreguesado, respeitado, e principalmente respeitador da ordem pública...

- Mas o que é que há? perguntou Aires.

- A república está proclamada.

- Já há governo?

- Penso que já, ...[19]

Mais à frente do capítulo:

Aires propôs-lhe um meio termo, um título que iria com ambas as hipóteses, - “Confeitaria do Governo”.

- Tanto serve para um regímen como para outro.[20]

Fica patente a relativização das nossas instituições. O ser humano e, especificamente, o habitante da Corte, àquela época, estava interessado em seus próprios bens. Custódio, o personagem dono da Confeitaria, vem de custo e, portanto, estava preocupado com o seu bolso, e não com o regímen instaurado. Para ele, tanto fazia Império ou República; o que não queria era perder sua clientela.

Esse posicionamento remete-nos a Schopenhauer, quando diz que o homem está envolto em representações sociais. Para este, o devenir, isto é, o mundo que nos cerca, está sujeito ao “subjetivismo racional” de cada indivíduo, a nível pessoal e a nível coletivo. Por isso, a verdade e a mentira dependem das circunstâncias em que são empregadas.

A única coisa que impulsiona o sujeito para diante, segundo ele, ainda, é a vontade, e esta, quando satisfeita, leva ao niilismo, ao nada, porque tudo é a representação de algo.

É próprio do homem tomar as representações, que são produtos culturais, como naturais, na visão schopenhauseana.

 

5- Conclusão

Tivemos por objetivo desvendar o real (a série social) do fim do Segundo Império e início da República, no Brasil, captado, parodisticamente, por Machado de Assis, portanto com distanciamento crítico, em que a enunciação do discurso não foi cópia da enunciação histórica. Os dados da historiografia oficial foram aproveitados como fonte motivadora, porém o que prevaleceu, durante toda a obra, foi a relativização e a contextualização dos “fatos históricos”, como fazendo parte de uma grande intriga, e a denúncia do sujeito egoísta, preocupado com o ganho e a acumulação, valores consagrados da Modernidade.

Ao nível da série literária, vislumbramos a intertextualidade contextualizada em relação: à narrativa bíblica de Esaú e Jacó, ao apóstolo Pedro e ao cristão Paulo e ao mito grego de Castor e Pólux.

Esses dados foram recriados e colocados em uma dimensão literária, sistêmica e não-referencial, em que o segundo texto, não sendo “cópia” do primeiro, cita-o e recria-o, em uma dimensão de paródia, e não de paráfrase.



[1] BRUNEL, Pierre et alii. Que É Literatura Comparada? Trad. Célia Berreltini. São Paulo: Perspectiva, 1990, p. 96.
[2] 2 ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In: “Obra completa: em três volumes” (org. Afrânio Coutinho). Vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p. 1.092.
[3] 3 Cf. op. cit., p. 946.
[4] Ibidem, p. 1.093.
[5] A Bíblia de Jerusalém. Nova edição, revista. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internacional e Paulus, 1995, p. 78.
[6] Cf. op. cit., p. 973.
[7] VEYNE, Paul. Como Se Escreve a História. Trad. Antônio José da Silva Moreira. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1987, p. 23.
[8] A História Acontecimental está presa à figura do herói da Modernidade. Para Paul Veyne, em Como Se Escreve a História, a historiografia tradicional prendia-se aos “grandes acontecimentos reconhecidos como tais desde sempre”; ela fazia “história - tratados e batalhas”, mas faltava decifrar uma enorme extensão de “não-acontecimental”, do qual não percebemos sequer os limites; o não-acontecimental são os acontecimentos ainda não saudados como tais: história dos solos, das mentalidades, da loucura ou da procura de segurança, através dos tempos (1971, p. 30).

Assim, Machado de Assis, em Esaú e Jacó, ao fazer uma “leitura estética” da série social e da literária, faz intertextualmente e, neste instante, coloca em evidência a visão parcializada da narrativa histórica, que acaba sendo mais ficcional (pela impossibilidade de abarcar a realidade) do que a literária, uma vez que esta privilegia o acontecimento e o não-acontecimento.

[9] Quem fez esta afirmação foi Toynbee, em Un Estudio de la Historia (p. 530), embasado, evidentemente, na concepção do fato histórico atrelado à filosofia idealista. Apud RAMA, Carlos M. Teoria da História. Coimbra: Almedina, 1980, p. 29.
[10] Cf. op. cit., p. 1.025.
[11] FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do Patronato Político Brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1958, p. 268.
[12] HUTCHCON, Linda. Uma Teoria da Paródia. Ensinamentos das Formas de Arte do Século XX. [Trad. Teresa Lauro Pérez]. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1985, p. 35.
[13] Cf. op. cit., p. 986.
[14] Ibidem, p. 992.
[15] Ibidem, p. 1.027.
[16] CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que Não Foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
[17] Apud MOTA, Carlos Guilherme. Cultura Brasileira ou Cultura Republicana. Jan 90, p. 23.
[18] Cf. op. cit., p. 1.006.
[19] Ibidem, p. 1.028.
[20] Ibidem, p. 1.029.