QUARUP: LITERATURA E RITUAL

Francisco Venceslau dos Santos (UERJ)

 

Ritual é um conjunto de práticas que se concretizam no mundo do sagrado. Quarup, na cultura do Alto Xingu, é um mito das origens, uma celebração dos ancestrais e um rito de ressurreição. No romance é uma desconstrução da variante Kamayurá, exposta a contactos com a cultura do branco.

O tempo do ritual é a “eterna volta”. O civilizado imerso no presente perpétuo permeado de conflitos sente o fascínio pela narrativa que abole as noções de causalidade e sucessão. Experimenta a nostalgia do sagrado, na tentativa de esquecer as tensões da História. No mito xinguano, Maivotsinin criou a raça humana fazendo quarups (pedaços de madeira), com os quais criou os homens que agora fazem quarups para criar Maivotsinin. O romance resgata o tempo mítico, inserindo-o no tempo de agora, acabando com a ideologia de “um tempo homogêneo e vazio” (Benjamin), subordinado à sucessão linear.

Tal exposição do acontecimento mítico já está sendo deturpada mesmo em seus traços originais, ameaçando sua integridade, e anunciando sua extinção.

O romance de Antonio Callado oferece uma imagem literária da decadência da festa, do descompasso entre o tempo histórico dos brancos, e o tempo mítico dos índios quando outrora viviam felizes.

Hoje, os indígenas perderam a capacidade primitiva de organizarem sozinhos o ritual, daí a hipótese de seu desaparecimento.

Na literatura, Quarup é desconstrução que despragmatiza os materiais culturais (mitos e costumes das treze nações indígenas do Alto Xingu), isto é, opera o deslocamento dos discursos mítico e histórico de seus contextos originais (o espaço primitivo e o relato da História) e os insere na enunciação do romance, reciclando-os, dando-lhes um novo sentido. E constrói o luto em face da ameaça de extinção da cultura autóctone – o que aconteceu em toda a América Latina com o avanço da modernização.

Em seu primeiro contexto original – o espaço da selva – a festa é uma celebração da memória de um ancestral indígena, Uranaco, pai de Canato , cacique da tribo. Constitui uma fase preparatória da festa propriamente dita, e não uma homenagem a um capitão branco.

O quarup do romance é ficcional e imaginário, ou seja, é um discurso que se desvincula dos compromissos de apresentar os comprovantes de verdade da história factual, mesmo que deles se aproprie. Ou seja, seus referentes são o próprio relato histórico, que em si, já ficcional também, pois já se organizou em narrativa, já é discurso, e, portanto, produto de uma avaliação.

No imaginário romanesco emergem os preparativos para os funerais de Getúlio Vargas, mitificado pelo imaginário popular e pela ideologia desenvolvimentista, que construíram o ícone de pai dos pobres e por extensão pai dos índios, o grande cacique branco da nação.

O quarup em honra do ancestral Uranaco desenrola-se durante os últimos dias de crise que levaram o presidente Getúlio Vargas ao suicídio, quando camadas populares retornaram às ruas, acompanharam o corpo do “pai dos pobres”, e asseguram a continuidade do messianismo populista.

Entre as diversas imagens que remetem para as etapas do ritual, temos: a pintura dos mensageiros - índios que vão às tribos vizinhas convidar as nações para a festa; a pescaria e suas fórmulas mágicas, a dança noturna para amansar os donos dos peixes, a invocação aos pajés - ritos destinados a garantir a abundância; a dança das flautas; o trabalho de tatuagens; a roda dos fumantes; o moitará – (troca ritualizada); e finalmente, o clímax do quarup - a kuka-kuka - a luta ritual entre os guerreiros.

O narrador aproveita todas as fases do cerimonial comemorativo do mito, ora com referência sutis, ora com descrições pormenorizadas, ora com a retomada do relato de Maivotsinin, ser mítico que parece ter existido sempre, desde o começo dos começos, antes mesmo de se ter organizado o mundo xinguano como ele aparece agora.

Quarup como romance é produto da hibridação, um compósito das culturas branca, indígena e dos discursos heterogêneos que constroem uma imagem do Brasil como país incompleto, que está constantemente sendo inventado.

A cultura indígena é despragmatizada, ou seja, é retirada do seu contexto original e inserida no contexto de enunciação do romance, tomando outro sentido. Neste caso, a ficção elabora o luto em face da ameaça de extinção da cultura autóctone em conseqüência do processo de modernização que invade os espaços arcaicos, rurais e primitivos da América.

As marcas deste luto emergem dos gestos vazios e sem eficácia dos índios, que estão perdendo o poder da palavra, marca característica do domínio simbólico nas sociedades primitivas. .

A violação do ritual da pescaria coletiva, que antecede o momento intertribal mais importante do ciclo cerimonial, e sua ameaça de destruição da sociedade primitiva constitui um signo deste esvaziamento. Os índios costumam utilizar na pesca grandes redes de embira para encurralarem os peixes, e quando envenenam a água com o timbó é para deixarem os peixes tontos, e não para matá-los como fazem os brancos com os explosivos e o veneno.

Quarup , romance pós-moderno, recicla narrativas míticas e históricas, e fontes temáticas que construíram a imagem negativa do país como uma nação de preguiçosos, doentes, e ao mesmo tempo elabora uma imagem otimista de constante invenção do Brasil. Este romance dos anos 60 emerge como voz do Terceiro Mundo - a fala simbólica do pós-colonizado - liberação de energias, cintilações de otimismo e frustração diante do novo cenário que se desenrolava no horizonte. Vivia-se o período em que o discurso pós-colonial se articulava com as falas emancipadoras do Primeiro Mundo - em que estudantes e intelectuais se revoltavam contra paradigmas teóricos e políticos anacrônicos.

E entreviam-se os sinais de uma nova era - a crise geral do capitalismo com a sua tentativa de internacionalização da cultura, fenômeno que deu margem ao discurso “pós-moderno”. Este dado novo convida a teoria a enfrentar a repensar a história literária sob o signo da descontinuidade de um agora que reúne passado, presente e futuro. O romance finaliza com um quarup messiânico que reúne os diversos segmentos da sociedade brasileira - ritual antropofágico que simboliza a esperança em um novo estado de coisas, alegoria de um retorno ao rito primitivo que enuncia a libertação de todos - brancos, índios e negros de nosso país.

 

BIBLIOGRAFIA

CALLADO, Antonio. Quarup. 10.ed. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1980, 496 p. [1 ed.1967].

SANTOS, Francisco Venceslau dos. Callado no lugar das idéias - Quarup: um romance de tese. Rio de Janeiro : Caetés, 1999, 327p.