A BAHIA NA VISÃO DE GREGÓRIO DE MATOS

Esther Cardoso Antunes (UERJ)

 

APRESENTAÇÃO

Gregório de Matos (1623 - 1696), baiano, se interessa em deixar a história social dos seiscentos.

Formado em Coimbra, Portugal, escreve sobre a Bahia trazendo à luz o sistema político corroendo as aparências por ela dadas. Alerta o povo para uma verdadeira visão do que ocorre no clero, nos governos e no sistema comercial também.

Fazia parte de suas obras a expressão de uma ideologia social, ou seja, um sociedade perfeita, incorrupta. Em outras obras revela sua educação ibérico-jesuítica oposta ao caráter demonstrado nas obras anteriormente comentadas agressivas e rancorosas.

Em toda a sua poesia há jogos sonoros, rimas burlescas em algumas poesias com versos autônomos, séries arbitrárias de tercetos, como as usadas por Dante em “Divina Comédia”, por exemplo. Também é freqüente as antíteses, como veículo de sátira, sons imitativos, metáforas, hipérbatos e outras modalidades conceptistas e cultistas.

Gregório de Matos foi deportado para Angola por estas causas e só retornou um ano antes de sua morte.

 

SITUAÇÃO HISTÓRICA

O século XVII europeu constitui época profundamente conturbada porque bifurcada pela vivência de uma forte crise espiritual: de um lado, o racionalismo recém-triunfante (Descartes, Newton, Leibnitz e Pascal). e de outro, o espírito da Contra-Reforma, concretizado pela Inquisição e pelo aparato de dominação ideológico-religioso, utilizado nas Colônias pela Península Ibérica. Daí a difícil convivência entre o absolutismo contra-reformista dos domínios da Casa da Áustria e o modus vivendi reformista e burguês característico da República das Províncias Unidas dos Países Baixos.

O painel da ambivalência seiscentista vai estruturar-se, desta forma, num extremo, pela submissão ao autoritarismo da fé e do poder político e, no outro, pelos precursores ensaios de um interpretação mecanicista e científica dos fenômenos vitais, a começar pela idéia cartesiana de um Deus __ não mais transcendência voluntarista, mas, apenas, garantia do equilíbrio universal de imutáveis leis científicas.

Em Portugal, a desintegração da União Ibérica (1580 - 1640), sob a égide da restauração da Dinastia dos Bragança, com D. João IV (1640 - 1656), apóia-se no fortalecimento da burguesia urbana em função do comércio de produtos brasileiros. O dinheiro burguês e as alianças diplomáticas e militares com a Holanda, a Inglaterra e a França sustentaram a guerra da independência frente à Espanha. o sopro de uma nova mentalidade mais comprometida com os fatores de ordem extra-religiosa e o afastamento da influência castelhana vão caracterizar os rumos da cultura portuguesa, na época. Justamente a emergência de uma visão de mundo mais atualizada vai explicar a multiplicação dos folhetos polêmicos e satíricos, antes e depois da Restauração, e o aparecimento dos jornais mensais como, por exemplo, o Mercúrio Português (1663 - 1667).

Mas, apesar desta “maré” renovadora, as ordens religiosas, especialmente a companhia de Jesus e a Inquisição, vão manter seu alto prestígio na condução da vida sócio-cultural e dos negócios do Estado. A própria Universidade de Coimbra ainda oferece, em plena segunda metade do século XVII, um tipo de ensino eminentemente escolástico e formalista, inteiramente divorciado dos avanços científicos e filosóficos, marcantes em outras partes da Europa.

No Brasil, até 1654 (assinatura pelas autoridades holandesas da sua rendição, a Capitulação da Campina do Taborda), os efeitos da União Ibérica fazem-se sentir pela constante presença invasora de estrangeiros, hostis aos interesses da dominação social espanhola. A disputa hIspano-holandesa, agravada pela intervenção da França e da Inglaterra, visa, sobretudo, à queda do monopólio comercial luso-espanhol. Durante o século XVII, o expansionismo holandês, financiado e dirigido pela Companhia das Índias Ocidentais, sobressai-se não só pela quantidade das arremetidas militares, como também pela longevidade, da dominação conseguida. Além da ocupação de Pernambuco (1630 - 1654), os holandeses, desde 1624-25, realizam sucessivas investidas contra Salvador, ocasionando constantes perturbações na vida sócio-econômica da cidade, tanto pelo constante clima de tensão e violência, quanto pela desorganização dos meios de produção, resultante da destruição de inúmeros engenhos de cana e da insegurança dos transportes e do comércio, por via marítima.

A partir da restauração portuguesa, a administração colonial passa a ser cada vez mais controlada não só pela instituição do Conselho Ultramarino (1642) - destinado a liberar sobre “todas as matérias e negócios de qualquer qualidade que forem tocando aos ditos Estados da Índia, Brasil” __ como também pela fundação da Companhia Geral do Comércio do Estado do Brasil (1649), ambas as medidas da iniciativa de D. João IV.

Por isso, já no final do século XVII, passam a ocorrer, no Brasil, vários levantes contra o estado português. São os chamados “movimentos nativistas” que, embora não vissem a um projeto de separação política de Portugal, propõem reformas setoriais no sistema colonial. A revolta de Beckman (1684-85), como uma das conspirações seiscentistas mais importantes, confirma o caráter regional destes distúrbios e sua principal motivação: o conflito entre produtores (senhores de engenho) e comerciantes (burguesia mercantil) em torno

das práticas do monopólio comercial que possibilita a seus agentes amplos privilégios no contexto da dominação portuguesa, mescla, no convívio dissonante entre a tradição do colonizador, os costumes do seu escravo e o perfil diferente e estranhado do índio, o dono da terra.

 

ESTUDO CRÍTICO

O estudo da obra satírica atribuída a Gregório de Matos delineia o horizonte a partir do qual vão se desenvolver recursos e alternativas para um futuro projeto literário brasileiro. Se, com o progressivo amadurecimento político-cultural da sociedade brasileira, a sua produção literária, cada vez mais, veio a conceber-se num permanente movimento de crítica da cultura, a solução satírica, naquela altura do século XVII, consegue antecipar tendências, integrar características e sintetizar elementos, posteriormente retomados e reelaborados. Daí, a fundamental importância de um estudo do legado textual reunido em torno do eixo Gregório de Matos. A confluência entre a forma ambígua e descontraída de sua sátira e determinados procedimentos estéticos, implicados na emergência de um sistema intelectual brasileiro, justifica sem dúvida, a atualidade da tarefa.

A estruturação dramática e contraditória da forma humorística __ historicamente voltada para a problematização do contrastante e do dúbio na convivência humana __ vai ajustar-se , sobremaneira, à captação crítica de uma fala cultural brasileira. E isto porque, cravada num torvelinho de múltiplas influências, a sociedade local foi-se estruturando pela amplitude do raio de influências que forjou e pelo caráter contraditório de sua mística, a figura de Gregório de Matos pode ser tomada como o pioneiro perfil, tenso e dividido do intelectual brasileiro. Baiano, filho da aristocracia latifundiária, formado em Direito por Coimbra, começa, em nível da própria peripécia individual. Filho da terra; culturalmente seduzido pela Metrópole. Sua obra reitera o ambivalente convívio entre formação cosmopolita e circunstância brasileira, como cita Eduardo Portela, em Confluências:

“(...) de um lado a tendência `a introversão, numa linha de franca ascendência maneirista, e do outro, o gesto largo, extrovertido, festivo, enfatizando o compromisso barroco(...).”

A sátira, porque muito afinada ao caráter lúdico, à inclinação popular e ao empenho problematizador característicos da crise do homem pós-renascentista, vai assumir, na obra de Gregório, o comando de sua vertente barroca.

A contrapartida à solene ironia, característica da lírica maneirista vai constituir-se, na solução satírica, pelo tom debochado e abertamente crítico muito afinado às fontes populares de criação. Ao contrário da literatura séria, supervalorizada por toda a tradição cultural do ocidente, desde a Poética de Aristóteles, as formas cômicas, porque mais permeáveis à influência das festas e ritos populares, vão apresentar uma visão de mundo mais relativizada e saudavelmente transgressora diante dos padrões de comportamento consagrados pelo poder oficial.

A ética do carnaval e dos rituais religiosos não institucionais, ao reverter os parâmetros vigentes no centro da autoridade constituída, constrói uma nova lógica, estranha à rigidez unilateral da convenção, mesclada e paradoxal. Nela, os extremos se tocam e confundem e o homem deixa de ser visto como uma entidade abstrata e compartimentada em que a vocação espiritual exclua o apelo material. O sentimento cômico do mundo, ao conceber a existência enquanto permanente metamorfose, mudança de processo, abandona as excludentes certezas da seriedade institucional e elege a dispersão de limites como alternativa possível. Daí a mistura, a efusiva conciliação entre vida/morte, princípio/fim, sagrado/profano, sublime/grotesco. Daí a recusa à visão absolutista e excludente do mundo como conjunto hierárquico de seres e valores resolvidos, inerente ao centro oficial de poder.

 

A BAHIA NA VISÃO DE GREGÓRIO DE MATOS

A CIDADE DA BAHIA

A Cidade da Bahia! Ó quão dessemelhante

Estás e estou do nosso antigo estado,

Pobre te vê a ti, tu a mi empenhado,

Rica te vi eu já, tu a mi abundante.

 

A ti trocou-te a máquina mercante,

que em tua larga barra tem entrado,

A mim foi-me trocando e tem trocado,

Tanto negócio e tanto negociante.

 

Deste em dar tanto açúcar excelente

Pelas drogas inúteis, que abelhuda

Simples aceitas do sagaz Brichote.

 

Oh! se quisera Deus que de repente

Um dia amanheceras tão sisuda

que fora de algodão o teu capote!

A BAHIA

Tristes sucessos, casos lastimosos,

Desgraças nunca vistas, nem faladas.

São, ó Bahia, vésperas choradas

De outros que estão por vir estranhos

 

Sentimo-nos confusos e teimosos

Pois não damos remédios as já passadas,

Nem prevemos tampouco as esperadas

Como que estamos delas desejosos.

 

Levou-me o dinheiro, a má fortuna,

Ficamos sem tostão, real nem branca,

macutas, correão, nevelão, molhos:

 

Ninguém vê, ninguém fala, nem impugna,

E é que quem o dinheiro nos arranca,

Nos arrancam as mãos, a língua, os olhos.

 

A ANÁLISE SÓCIO-CRÍTICA CULTURAL

Em ambos os sonetos, o eu-poético faz um discurso de lamentação, demonstrando estar desesperado com tal questão social explicitando em vocabulário sutilmente agressivo, o extorquir dos “mercante/negociante” , das riquezas contidas na Bahia e no contraste do “branca/arranca”, o branco lembra pureza, limpidez em oposição “ao arranca”, tirar com violência e “Brichote/capote” os exploradores usando capa, ou seja, se autoprotegendo através de aparências ou simulação. E foi o processo recolhectivo de corroer a imagem dos negociantes usado pelo eu-poético, a fim de chamar a atenção do povo baiano, a refletir sobre tal sistema, apoiado pelos senhores nobres.

Os temas de ambos envolvem essas denúncias o eu-poético quer alertar e alerta, quando à decadência econômica e social da Bahia.

 

A ESCANSÃO

Os dois poemas apresentados têm estruturas de sonetos. Em ambos, o eu-poético lamenta pela Bahia, usando de vários recursos.

As características rítmicas sonânticas - ABBA - nas duas primeiras estrofes. Em “A Bahia” temos: “lastimosos/estranhosos”, “faladas/choradas”, “teimosos /desejosos”, “passados/esperados”, e as duas últimas estrofes são interpoladas: “fortuna/impregna”, “branca/arranca”, “molhos/olhos”. Em “A cidade da Bahia” , as características rítmicas sonânticas também estão presentes: “dessemelhante/abundante”, “estado/empenhado”, "mercante/negociante", "entrado trocado” as duas últimas estrofes também são interpoladas “excelente/repente”, “abelhudo/sisuda”, "Brichote/capote”.

Há predominância de versos decassílabos para dar intensidade expressiva inda mais inesperada e sutil.

Há em “A Cidade da Bahia” um jogo, feito pelo eu-poético: jogo do passado e presente da sociedade (ou povo) baiano “Estás e estou de nosso antigo estado”, revelando unidade. “Rica te vi”, “A ti trocou-te...” e também de um presente em continuidade “A mi foi-me trocando, e tem trocado”, o eu-poético expressa que no passado e, presente tudo continua igual, sem mudanças, ele é observador e afirma que a riqueza, devido à exploração comercial, se ia e continua indo e deseja ver a Bahia mudar “Oh quisera Deus, de repente! um dia amanheceras tão sisudo”. Ele deseja ver a Bahia sendo governada por uma

sociedade mais séria, “Que fora de algodão o teu capote” como no tempo em que a comercialização de algodão trazia ao estado posição, de ser respeitada, por sua muita produção e vantagem econômica. Também em “A Bahia” o eu-poético enfatiza: “São, ó Bahia, vésperas choradas”, vésperas é uma conotação, “De outras que estão por vir”., expressa subjetivamente que outros estados poderiam vir a sofrer como a Bahia, pois os senhores e grandes comerciantes exploradores levaram ao máximo os produtos da Bahia.

Levou-nos o dinheiro, a má fortuna,
Ficamos sem tostão, real nem branca,
macutas, correão, novelão, molhos.

A má fortuna, ou seja, fortuna desonesta, levou-nos o dinheiro, as reservas da Bahia, daí ficamos sem uma série de pequenas coisas, como maceta __ coisa sem valor ou certa moeda de pequeno valor, também como correão ou correia grande, é símbolo de algo que prende bem, de força e poderio.

O sujeito-poético também faz contrastes, ou seja, jogo antitético, em “A Bahia”, “tristes/sucessos” , como o próprio nome diz, lembra melancolia e sucessos traz sentimento

oposto, “passados/esperados” está associado ao futuro é uma maneira sutil de mostrar o quão é irônica a sua história.

 

ANÁLISE ESTILÍSTICA

O /s/ caracteriza sibilo ou traço permanente de grupos regionais ou estado de alma. O eu-poético expressa isso em “A Bahia” pelo uso desse fonema freqüente, é uma ambigüidade que soa bem ao descrever o seu Estado, é usado em quase todos os versos do poema :

Tristes sucessos, casos lastimosos
Desgraças (...) vistas (...) faladas
São (...) vésperas (...) choradas
De outros (...) estão mais estranhosos...etc.

Hipérbato também é usado: “Tristes sucessos”, pessoas têm ou fazem sucesso, neste exemplo gera ambigüidade ou obscurecimento de sentido.

A quantidade vocálica que não figura no quadro estrutural das vogais portuguesas (a, é, e, i, ó, o, u) e não em pares de longa versus breve, como em latim clássico, grego antigo ou sânscrito. Esse jogo tonal facilita a gradual elevação da voz.

Ambas poesias são para leituras pausadas, como recurso para isto foram usadas as pontuações para que tivessem finalidade de melhor meditação das mesmas.

Logo, as poesias, segundo o eu-poético delas, investiram contra a plebe, prevaricadores, exploradores da economia desenfreada e a exploração política que comprometeria e se arraigaria na política nacional.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

DIAS, Ângela Maria. Gregório de Matos. Sátira. Rio de Janeiro : Agir, 1990.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1973.

MOISÉS, Massaud, PAES, José Paulo. Pequeno dicionário da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1980.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1995.

COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro : Sul Americana, 1968.