OS FUNDAMENTOS TEÓRICOS
DA CRÍTICA TEXTUAL

Ruy Magalhães de Araujo (Filólogo)

 

O trabalho enfoca os fundamentos teóricos da crítica textual; mostra as bases históricas da mesma, desde a antiguidade clássica (Grécia e Roma); apresenta os principais filólogos da escola de Alexandria, dentre os quais Eratóstenes de Cirene (considerado o primeiro filólogo da História); passa pela Idade Média com São Jerônimo e a edição da Vulgata, até a modernidade com os modernos princípios ecdóticos propostos por Karl Lachmann.

Dá a conhecer a definição de crítica textual e edição crítica. Finalmente expõe, passo a passo, todos os procedimentos para a elaboração dessa mesma edição: a recensio pesquisa e coleta do material da tradição direta e indireta: (códices manuscritos e impressos, edições, publicações, etc.); a collatio – comparação, confronto de todos os códices coletados em relação a um texto que se tomará por base, isto é, o que se supõe seja o mais representativo da última vontade lúcida do autor; a eliminatio codicum descriptorum – eliminação ou rejeição de cópias coincidentes; a estemática (originem detegere, revelar a ascendência),- espécie de árvore genealógica dos textos, stemma codicum, ou o parentesco entre os mesmos, como se filiam entre si e como se verificou sua transmissão; a emendatio – conjunto de operações que busca a correção de falhas e erros encontrados nos códices.


 

BASES HISTÓRICAS

Os textos, a rigor, dizem respeito aos seguintes segmentos históricos: antigos, medievais, renascentistas, modernos. Para efeito metodológico, entretanto, melhor será considerarmos os textos inseridos nas quatro fases tradicionais da divisão histórica: antigos, medievais, modernos e contemporâneos.

Desde os tempos mais antigos até os nossos dias, as atividades filológicas foram basicamente as mesmas (ou se constituíram nas mesmas atividades): fixar, restaurar, comentar e interpretar os textos, embora sob rótulos e nomenclaturas diversas: crítica textual, ecdótica, codicologia, crítica verbal, crítica genética, em consonância com a evolução que se processou em vários países e em épocas diferentes.

Numa rápida perspectiva diacrônica, podemos mencionar os seguintes filólogos alexandrinos como grandes nomes da crítica textual de sua época: Zenódoto de Éfeso (cerca de 280 a.C) foi o precursor da edição crítica, ao colaborar com a edição das obras de Homero. Foi também o primeiro diretor da biblioteca de Alexandria. Eratóstenes de Cirene (236-194 a.C.) foi o primeiro a se chamar filólogo e possuía vastíssima erudição. Aristófanes de Bizâncio (por volta de 257-183 a.C) deu continuidade e aperfeiçoou os trabalhos de Zenódoto de Éfeso quanto às edições críticas das obras de Homero. Estabeleceu os textos críticos de Hesíodo, Píndaro, Alceu, Anacreonte e também de seu homônimo Aristófanes. A ele se atribui a criação dos sinais diacríticos e a introdução do chamado cânon crítico. Aristarco fez duas edições de Homero e juntamente com Aristófanes de Bizâncio atingiu o ápice da investigação filológica de Alexandria.

De acordo com Segismundo Spina,

(...) a sucessão destes sábios incumbiu-se de restaurar os textos literários antigos, tornados ininteligíveis às gerações da época, sobretudo os poemas de Homero – recuados cinco séculos e conhecidos através de versões discrepantes, desfiguradas por erros e interpolações. [Spina: 1977: 61].

Em Roma, contudo, não se comprovou avanço semelhante.

As atividades filológicas só tiveram começo quando entraram em declínio as que se desenvolveram na Grécia, registrando-se alguma repercussão a partir do século I d.C. com o gramático e geógrafo Tiranião, preso como escravo depois da invasão do Ponto Euxino (71 d.C.) por Lúculo, e liberto posteriormente. Tiranião, proveniente da cidade de Amiso, devotou-se ao ensino, organizou a biblioteca de Apelicão de Teos, além de fazer amizade com intelectuais e escritores romanos, dentre os quais Cícero.

Destacaram-se, ainda, alguns trabalhos de gramáticos: Varrão com a sua obra De lingua latina, porém mais próximo à escola de Pérgamo (que privilegiava assuntos filosóficos sobre as leis da linguagem) ao contrário dos representantes de Alexandria (mais voltados para a crítica dos textos). Valério Probo procurou emendar as edições de Terêncio, Vergílio, Pércio, Horário e Lucrécio, contudo sem grande expressividade e valor para a crítica textual.

Na Idade Média, destacou-se São Jerônimo (373-420), que, utilizando-se dos métodos empregados por Orígenes (outro filólogo alexandrino) sobre a Bíblia, elaborou a edição da Vulgata.

Na atualidade, Karl Lachmann (1793-1851), filólogo alemão, criou os princípios da moderna crítica textual, com as edições do Novo Testamento Grego e com a obra de Lucrécio De Rerum Natura. Seu trabalho está dividido em varias etapas, às quais emprestou nomenclaturas latinas. Outras figuras de destaque foram o italiano Giorgio Pasquali (1885-1952) e o francês J. Bédier (1864-1938).

Ainda sobre o assunto, ouçamos Segismundo Spina:

Dada a especificidade dos textos referentes à cultura ocidental, cuja tradição tem como baliza a aparição da Imprensa no século XV, podemos periodizar a Edótica em quatro momentos: uma edótica clássica, que se aplica aos códices de textos clássicos, gregos e latinos, até o fim do período helenístico e da Baixa Latinidade; uma edótica medieval, para os códices pertencentes à Alta e à Baixa Idade Média; uma edótica moderna, para o texto impresso, desde os primeiros (os incunábulos) até os textos do século XIX; e uma edótica contemporânea. (Spina: 1977: 88).

 

DEFINIÇÃO

Entendemos por crítica textual moderna a ciência e a arte de reconstrução de um texto, – (ou da sua fixação)- quer literário, quer histórico, quer jurídico, quer filosófico, quer político etc., o qual nos foi transmitido com erros e imperfeições. Essa reconstrução se faz através do exame meticuloso de cada uma das suas palavras e por meio de cada uma das versões constantes dos exemplares com que o mesmo foi editado ou publicado.

A crítica textual é a expressão da cultura individual e coletiva por intermédio dos textos. Também se configura como uma ciência autônoma, posto que a linguagem humana tem sido objeto de especulação por parte de outras ciências.

Os seus objetivos agrupam-se, grosso modo, em:

* Investigar a autenticidade dos textos;

* Fazer o levantamento de toda a tradição textual, em caso de análise;

* Classificar os testemunhos de manuscritos e impressos;

* Estabelecer critérios para a publicação de novas edições;

* Avaliar a fidedignidade das transcrições, tanto em edições antigas quanto em modernas.

É de sua competência:

* Preparar edições críticas de textos cuidadosamente estabelecidos;

* Apontar o texto mais representativo da última vontade lúcida do autor;

* Preparar um trabalho cuidadoso das variantes;

* Preparar a edição crítica comentada.

O seu ponto culminante é a publicação da edição crítica.

Edição crítica é a reconstrução de um texto viciado, imperfeito e defeituoso em sua transmissão, com base na comparação dos diferentes estados em que se encontra o mesmo nos vários exemplares apresentados, aproximando-o, tanto quanto possível, daquele que o autor considerou definitivo.

Uma edição crítica possui, muitas vezes, maior número de páginas do que a própria obra criticada.

 

ETAPAS PRINCIPAIS E OUTROS PROCEDIMENTOS

A seguir, transcreveremos as etapas principais da edição crítica de Karl Lachmann, aqui por nós adaptadas:

1. Considerações prévias

1.1. Aspectos históricos e culturais: o contexto.

1.2. Aspectos biobibliográficos: dados da vida do autor, livros do autor e livros sobre o autor.

 

2. Momentos da preparação da edição crítica:

2.1. A Recensio. Recensão. Consiste na pesquisa e coleta do material da tradição direta e indireta: códices manuscritos e impressos, edições, publicações, etc., abarcando uma garimpagem em bibliotecas públicas e em acervos de instituições particulares e de colecionadores. Igualmente merecem registro a garimpagem nos sítios da internet.

2.2. A Collatio. Colação ou cotejo compreende a comparação, o confronto de todos os códices coletados em relação a um texto que se tomará por base, isto é, o que se supõe seja o mais representativo da última vontade lúcida do autor.

2.3. A Eliminatio codicum descriptorum representa a eliminação ou rejeição de cópias coincidentes. A seguir: classificação dos textos não eliminados; separação dos mesmos textos.

2.4. A Estemática (originem detegere, revelar a ascendência). A palavra é grega στήμμα, pelo latim stemma, coroa, grinalda, diadema e representa uma espécie de árvore genealógica dos textos (stemma codicum) ou o parentesco entre os mesmos, como se filiam entre si e como se verificou sua transmissão: vertical, transversal, por contaminação. Não há regras fixas e cada caso é um caso à parte a ser considerado.

2.5. A Emendatio ou a emenda é o conjunto de operações que busca a correção de falhas e erros encontrados nos códices, por descuido de copistas e amanuenses ou pela intervenção descabida de editores de textos.


 

3. Outros procedimentos para a preparação da edição crítica propriamente dita:

3.1. A escolha do texto de base determinará o documento que irá reunir todas as condições ecdóticas necessárias.

3.2. Fixação exaustiva das variantes em notas de pé de página.

(As variantes constituem modificações introduzidas pelo autor e seu registro representa uma fonte riquíssima de informações).

3.3. A fixação do texto crítico é o texto apurado, definitivo, pronto a ser editado. (Atualização ortográfica, revisão geral, incluindo-se a tipográfica, se for o caso).

3.4. Organização da introdução crítico-filológica: motivos, planos, critérios adotados, aspectos histórico-sociais etc.

3.5. Registro filológico (também chamado “apparatus criticus”, aparato crítico).

3.6. [Comentários filológicos], no final do volume.

Os Comentários filológicos representam os esclarecimentos de ordem gramatical, semântica e estilística, bem como as interpretações (exegese e hermenêutica) da obra.

3.7. Glossário.

3.8. Reprodução de fac-símiles se houver.

3.9. Bibliografia.

Obs. Os três últimos itens constituem partes não essenciais da edição crítica, embora necessários.


 

À crítica textual cabem ainda as seguintes tarefas:

a) Mostrar a história da criação do texto:

* O pré-texto: fase de mentalização.

* O prototexto: redação dos manuscritos, que atualmente constitui uma moderna ciência denominada crítica genética ou manuscriptologia. Os manuscritos podem ser autógrafos e apógrafos.

 

b) Examinar e provar a fidedignidade e a autenticidade dos textos: autor, época, fatores de ordem histórico-social, econômica, jurídica, política, ideológica, religiosa, etc.

 

Os textos podem ser:

autógrafos ou autênticos – de autoria comprovada;

apócrifos – de falsa procedência ou de fonte duvidosa;

apógrafos – copiados e sem assinatura.

 

c) Organizar e publicar as boas edições.

 

d) Supervisionar trabalhos de textos escritos para gravações sonoras: discos, fitas magnéticas, além de trabalhos informatizados.

 

Afora a edição crítica, também se conhecem outras edições:

* Edição diplomática ou paleográfica: reproduz um texto integralmente, isto é, ipsis litteris virgulisque.

* Edição diplomático-interpretativa (ou semidiplomática): altera a edição diplomática, separando palavras que apareciam unidas, colocando as abreviaturas por extenso, atualizando a ortografia, superando, enfim, toda e qualquer omissão ou falha que se venha comprovar.

* Edição fac-similar ou fotomecânica: reproduz um texto por meio da fotografia, da fototipia (ou heliotipia) e da xerografia. Atualmente, também através de impressoras acopladas a computadores ou de procedimentos informatizados, tais como cópias e digitalizações.

 

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

AZEVEDO FILHO, Leodegário Amarante de. Iniciação em crítica textual. São Paulo: Presença/Edusp, 1987.

HOUAISS, Antônio. Elementos de bibliologia. Rio de Janeiro: INL, 1967.

LAUFER, Roger. Introdução à textologia. Trad. de Leda Tenório da Motta. São Paulo: Perspectiva, 1980.

SILVA NETO, Serafim da. Textos medievais portugueses e seus problemas. Rio de Janeiro: MEC/FCRB, 1956.

SPINA, Segismundo. Introdução à edótica. São Paulo: Cultrix, 1977.