AS NÃO COINCIDÊNCIAS ENUNCIATIVAS
NO DISCURSO PEDAGÓGICO

Maria Cristina Lírio Gurgel (UERJ)

 

Introdução

Este estudo é parte de uma pesquisa mais ampla, desenvolvida em sala de aula de leitura do 3º e 4º ciclos (5ª a 8ª séries) do ensino fundamental, de escolas públicas do estado do Rio de Janeiro, no qual se objetiva descrever os traços constitutivos dos discursos construídos em co-autoria pelo professor e pelos alunos.

Com base em Bakhtin (Volochinov, 1929) e Authier-Revuz (1998), analisa-se no discurso pedagógico as não-coincidências do discurso consigo mesmo, tendo como referência o dialogismo bakhtiniano no qual toda palavra, por se produzir em meio ao já dito de outros discursos, é habitada pelo discurso do outro.

Do ponto de vista teórico, discute-se o conceito de enunciação como lugar da heterogeneidade e a noção de subjetividade - a questão do sujeito, efeito de linguagem, que se divide na forma de uma não-coincidência consigo mesmo, incorporando o outro como constitutivo; e a noção de interação em sala de aula (Cicurel, 1994), cujos discursos são construídos em co-autoria por professores e alunos.

Articula-se à reflexão teórica a análise de dados que, do ponto de vista didático, permitirá a apreensão dos conceitos discutidos.

 

Enunciação: dialogismo e polifonia

Toda atividade de linguagem é um processo marcado pela inscrição do sujeito cuja fala é produzida através de um dado lugar social e tempo histórico. Nesse sentido, o sujeito situa seus discursos em relação aos discursos do outro - o destinatário para o qual planeja e ajusta sua fala - e o outro - os outros discursos já constituídos historicamente, dos quais se apossa ou diante dos quais se posiciona.

Bakhtin (Volochinov, 1929), ao definir enunciação, ressalta que a palavra possui duas faces: ela é determinada pelo fato de que procede de alguém e de que se dirige para alguém, constituindo uma espécie de ponte entre locutor e interlocutor. Na teoria bakhtiniana, o termo diálogo deve ser entendido, em um sentido amplo, como dialogismo, referente a toda comunicação verbal, qualquer que seja seu tipo, e não apenas à comunicação de pessoas colocadas face a face, uma vez que qualquer enunciação constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta.

Authier-Revuz (1998) articula à noção de dialogismo bakhtiniano a de heterogeneidade constitutiva da linguagem. Segundo Authier-Revuz, por trás de uma aparente linearidade, da emissão ilusória de uma só voz, outras vozes falam. Há, neste sentido, formas marcadas, mais ou menos explícitas, passíveis de apreensão na materialidade lingüística do texto, que vão constituir o processo por ela denominado “heterogeneidade mostrada”, o qual deve ser compreendido como “formas lingüísticas de representação de diferentes modos de negociação do sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva do seu discurso” (Authier-Revuz, 1990: 26).

 

Interação em sala de aula

Verificando como se processa a interação entre professores e alunos, na sala de aula de língua estrangeira, Cicurel (1994) ressalta o fato de os discursos serem construídos em co-autoria pelo professor e pelos alunos. Segundo Cicurel, isto só é possível porque os participantes - atores da cena pedagógica - possuem previamente uma representação global da cadeia dos acontecimentos que vão ocorrer. Nesse sentido, o roteiro didático é constituído por atores, pela maneira de falar e compreender um ao outro, e pelo lugar de produção do discurso.

Com relação aos atores, verifica-se de um lado o professor, a quem compete interrogar e conduzir a aula, e do outro os alunos, a quem cabe responder às questões propostas, contribuindo no sentido de produzir um texto em conformidade com as intenções do professor, que é uma espécie de diretor da cena pedagógica.

Ressalta-se que inexiste, na sala de aula, uma fala espontânea à semelhança do que ocorre em uma comunicação cotidiana. O professor, enquanto diretor da cena pedagógica, apresenta o tema, em especial o texto, na aula de leitura - material didático a ser lido pelos alunos - e, a seguir, controla o desenvolvimento da aula, indicando quem, quando e o que falam os demais participantes, supervisionando as atividades e verificando a compreensão do texto pelos alunos.

Articulando-se o conceito de polifonia de Bakhtin (Volochinov, 1929), com referência ao fato de a palavra se apresentar como “uma arena em miniatura”, ao conceito de interação de Cicurel (1994: 17) - “um processo comunicativo entre duas ou mais pessoas, segundo a identidade e a palavra do outro” - verifica-se que a palavra à qual Cicurel se reporta assume significado a partir dos valores sociais do interlocutor. Assim, entende-se interação verbal como o lugar de produção da linguagem e dos sujeitos, na medida em que a linguagem se reconstrói a cada interação, assim como os sujeitos, em um determinado contexto sócio-histórico-cultural.

 

O corpus

Os dados - gravados em áudio e transcritos - foram coletados em uma aula de geografia ministrada no 3º ciclo, 5ª série do ensino fundamental, de uma escola pública do município do Rio de Janeiro. O professor propôs aos alunos (cerca de 32) que procedessem à leitura silenciosa do texto “O clima”, cujo tema dizia respeito à meteorologia.

Com relação ao sistema de transcrição, optou-se por manter os sinais de pontuação da escrita, para facilitar a leitura dos dados, com exceção da letra maiúscula após o ponto, por se tratar de transcrição de fala.

A seguir, transcreve-se o debate que se processou entre professor (P) e alunos (As), após a leitura silenciosa do texto O clima:

(1) P: atenção, gente! eu estou falando! o que é clima?

(2) A1: eu sei. minha irmã diz que pintou um clima.

(3) A2: entendi! é ficar!

(4) P: olha aqui ó, o Thiago disse que a irmã dele diz que pintou um clima. será que o clima que a irmã dele disse é o mesmo clima desse? ((refere-se ao texto sobre meteorologia))

(5) As: ((em uníssono)): não!!!

(6) A3: tia, minha prima namora. no primeiro dia que ela beijou ele, aí ela disse: pintou um clima...

(7) P: pintou um clima? esse clima é o mesmo que esse?

(8) A: ((em uníssono)): não!!!

(9) P: esse clima que vocês dois tão falando, João!

(10) A2: não! é clima de namoro?

(11) P: é coisa de namoro?

(12) A1: é!

(13) P: pintou um clima quer dizer pintou uma coisa... né?

(14) A2: ah!..., só pensa naquilo...

(15) P: um sentimento, uma coisa boa, né?

(16) As: ((em uníssono)): é!!!

(17) P: é romântico. agora vamos ouvir esse clima daqui, esse clima de vocês.

(18) A: ((incompreensível))

(19) P: esse clima de vocês ((apontando para o texto que estava nas mãos de A)) fala do quê? quando a moça do jornal vai lá pra televisão e mostra o clima do lugar, ela tá falando sobre o quê?

(20) A4: sobre o tempo.

(21) P: sobre o tempo, as mudanças do tempo, é desse clima que nós estamos falando. pode começar. João, lê!

 

Análise dos dados

Os dados foram organizados de modo a, em um primeiro momento, analisar-se como o jogo de perguntas/respostas constitui a dimensão interacional dos discursos em sala de aula e, em um segundo momento, as não-coincidências do sujeito consigo mesmo, nas quais o dizer se representa, a saber:

· não-coincidência interlocutiva entre dois co-enunciadores, nos retornos em que o tu é explicitado;

· não-coincidência do discurso consigo mesmo, nos retornos em que X encena o jogo de um discurso outro, enunciado anteriormente;

· não-coincidência entre as palavras e as coisas, em retornos que evocam a questão da nomeação, da propriedade e da adequação;

· não-coincidência das palavras consigo mesmas, que fazem jogar em X outros sentidos, as palavras outras da polissemia.

 

A construção dos discursos: a interação

Com relação à dimensão interacional, observa-se que o discurso se tece através de um jogo de perguntas/respostas, no qual o professor ocupa as funções de:

· dirigente da cena pedagógica

(1) P: atenção, gente! eu estou falando! o que é clima?

Ressalta-se que em (1), ao falar, o locutor se manifesta como eu, protagonista do/no discurso, chamando a atenção dos alunos, através de uma pergunta cuja função seria a de esclarecer o sentido do termo clima, tema da aula.

· elemento do grupo de alunos

(21) P: sobre o tempo, as mudanças do tempo, é desse clima que nós estamos falando. Pode começar. João, lê!

Incorporando o discurso do aluno em (20) A4: sobre o tempo, em (21) o professor fala do interior do grupo de alunos, criando a ilusão de que o clima a que todos se referiam é o que diz respeito à meteorologia, quando, na verdade, quem procura manter o tema é o professor; o interesse dos alunos é outro.

Observa-se, com relação às estratégias interacionais, que a incorporação do discurso do outro tem como função facilitar a progressão da aula.

Uma outra estratégia utilizada diz respeito à forma como, após a incorporação, o professor lança uma outra pergunta:

(4) P: olha aqui ó, o Thiago disse que a irmã dele diz que pintou um clima. será que o clima que a irmã dele disse é o mesmo clima desse? ((refere-se ao texto sobre meteorologia))

Observa-se, ainda, com relação ao jogo de perguntas/respostas, que ora o professor se dirige à turma como um todo, obtendo o consenso, como em:

(7) P: pintou um clima? esse clima é o mesmo que esse?

(8) As: ((em uníssono)): não!!!

Ora a um aluno, individualmente, com o objetivo de captar sua atenção, interrompendo a conversa paralela:

(9) P: esse clima que vocês dois tão falando, João!

Da mesma forma que as perguntas-esclarecimento, as perguntas-opinião promovem a interlocução e favorecem a progressão da aula:

(15) P: um sentimento, uma coisa boa, né?

Analisando-se o sintagma “né?” como uma falsa questão, ressalta-se que o professor, através dessa expressão, procura obter a adesão do grupo. Considera-se esse tipo de questão como uma pergunta-opinião, na medida em que sempre haverá, para o aluno, a possibilidade de manifestar-se a respeito do que está sendo dito pelo professor. Na hipótese de não haver qualquer manifestação, o silêncio será entendido como adesão à opinião expressa pelo professor.

Com referência à função desempenhada pelo aluno, é interessante observar que, às vezes, ao responder à questão proposta pelo professor, o aluno, ao submeter sua resposta, imprime uma entonação interrogativa, como se pode verificar com A2. Quando questionado se se tratava do mesmo clima, após responder que não, A2 submete ao professor sua opinião, de forma interrogativa:

(10) A2: não! é clima de namoro?

 

O outro nos discursos da aula de leitura

Ao lado do modo como os atores da cena pedagógica - professor e alunos - constroem o discurso, através do jogo de perguntas/respostas, percebe-se que outras vozes também falam, e que essas vozes são representadas por formas marcadas, passíveis de apreensão na superfície discursiva. A presença do outro pode, com efeito, manifestar-se através de recursos variados, conforme se verifica a seguir:

· o outro que se atualiza através do duplo sentido das palavras:

(7) P: pintou um clima? esse clima é o mesmo que esse?

Observa-se em (7), como lembra Authier-Revuz, que a impossibilidade de uma abordagem monossemizante da palavra coloca em cena a não-coincidência da palavra com ela mesma.

· o outro que se atualiza através do enunciado produzido pelo aluno, do qual o professor se apropria como elemento de interação didática:

(20) A4: sobre o tempo.

(21) P: sobre o tempo, as mudanças do tempo...

· o outro que se atualiza através da voz de um terceiro ausente da sala de aula, ao qual o professor faz menção de forma vaga:

(19) P: ...quando a moça do jornal vai lá pra televisão...

· o outro que se atualiza através da voz de um terceiro ausente da sala de aula, que o aluno traz, dada a semelhança da situação - trata-se da voz de um personagem de programa humorístico cujo contexto situacional é a sala de aula:

(14) A2: ah!..., só pensa naquilo...

· o outro que se atualiza através da não-coincidência do discurso consigo mesmo:

(4) P: olha aqui ó, o Thiago disse que a irmã dele diz que pintou um clima...

(6) A3: tia, minha prima namora. no primeiro dia que ela beijou ele, aí ela disse: pintou um clima...

Observa-se que, em (4), o professor traduz as palavras do outro através do discurso indireto, enquanto que, em (6), o aluno é porta-voz do outro. Ambas as situações são teatralizadas: há a encenação da voz do outro que, recortada de situações anteriores, é trazida para o momento em que os locutores falam.

· o outro que se atualiza através da não-coincidência interlocutiva entre dois co-enunciadores:

(13) P: pintou um clima quer dizer pintou uma coisa... né?

Além das marcas de heterogeneidade analisadas, ressalta-se “né?” como marca lingüística da atualização da não-coincidência interlocutiva entre dois co-enunciadores, na medida em que, através dessa expressão, o tu é explicitado na tentativa de o locutor obter a adesão dos outros (alunos).

 

 

Considerações finais

A análise dos dados nos permitiu verificar de que modo os atores da cena pedagógica controem o discurso através de um jogo de perguntas-respostas cujas características centrais procuramos destacar. Além da referida construção em co-autoria, verificou-se que professor e alunos não são as únicas vozes presentes na sala de aula. Podemos dizer que a marca do discurso pedagógico seria a possibilidade de o professor - enquanto diretor da cena pedagógica - orquestrar as diferentes vozes. Esta orquestração, contudo, se processa em diferentes planos, através da retomada das vozes do outro, cujas formas podem ser capturadas na superfície discursiva.

 

Referências bibliográficas

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Trad. de Pfeiffer, C. R. e outros. Campinas : UNICAMP, 1998.

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. “Heterogeneidade(s) enunciativa(s)”. Trad. de Celene M. Cruz e João Wanderley Geraldi. In: Cadernos de Estudos Lingüísticos 19. O Discurso e suas análises. ORLANDI, E. P. e GERALDI, J. W. (Orgs.) Campinas : UNICAMP, 1990, p. 25-42.

BAKHTIN, M. (Volochinov, 1929). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 3.ed. São Paulo : Hucitec, 1986.

CICUREL, F. Papiers de travail ne 8. Cediscor : Université de Paris III- Sorbonne nouvelle, 1992-1994.