CARTAS DE RECLAMAÇÃO
UM GÊNERO DE DISCURSO EXPRESSIVO

Victoria Wilson (UERJ)

Trata-se de uma análise preliminar do estudo sobre os gêneros discursivos tomando como base a reclamação como ato de fala inscrita no gênero carta num contexto que envolve a expressão de emoções numa interação cliente - empresa.

 

Esse trabalho tem por objetivo refletir sobre a problemática que envolve a categorização dos gêneros do discurso, especialmente, no que diz respeito ao gênero textual carta. Trata-se de uma extensão de pesquisa realizada, em tese de doutorado, no âmbito da sociolingüística interacional, cujo foco de análise estava orientado para o estudo do ato de fala da reclamação em sua dimensão afetiva. O material lingüístico compõe-se de cartas de reclamação escritas por proprietários de imóveis residenciais de classe média e média alta de um importante centro urbano do país dirigidas a uma empresa do ramo da construção civil.

A presente análise, no entanto, ainda se acha numa fase bastante preliminar, uma vez que o estudo da variação tipológica do corpus não foi realizado em razão da relevância que foi atribuída a outros aspectos explorados na ocasião, tais como: a teoria dos atos de fala, a teoria da polidez e elaboração de face, e essencialmente, a competência pragmático-afetiva e suas relações com a cultura, tendo em vista o modo de organização do ato de fala da reclamação por esses proprietários na condição de reclamantes / consumidores inseridos numa situação de interação particular.

A hipótese forte que marcou a pesquisa girou em torno da natureza expressiva da reclamação, isto é, à sua dimensão afetiva e em como esses reclamantes respondem / atuam diante de uma situação de confronto, ou seja, como essa pequena parcela de brasileiros, inseridos numa cultura marcada pela cordialidade (que envolve afeto positivo e negativo), expõe seus sentimentos no espaço público, na relação cliente-empresa, ou seja, num contexto interacional não familiar e impessoal em que não estão previstas relações de cunho pessoal e afetivo nesse sentido.

De acordo com o senso comum, o conceito de cordialidade corresponde apenas aos aspectos positivos do self, reunindo traços como harmonia, simpatia e solidariedade mútua entre os pares. Estudos realizados por Triandis et al. (1984) sobre a cultura hispânica ratificam essa concepção, pois os resultados da pesquisa demonstraram ser essa cultura caracterizada pelo ethos da simpatia de acordo com a denominação dos referidos autores. Ser simpático, nessa cultura, significa demonstrar pré-disposição positiva em relação ao outro: agir de modo agradável e cordial, concepção essa que se aproxima relativamente do caso brasileiro, conforme destaca Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (1998[1936]), ao estabelecer a diferença entre a cordialidade e a polidez, considerando o relacionamento interpessoal dos brasileiros que estendem os laços pessoais de base familiar para a rua. No entanto, cordialidade reúne aspectos positivos e negativos da afetividade.

Estudiosos da área da psicologia social, ao interpretarem as diferentes culturas, observam o comportamento da população em estudo em espaços públicos (sociais / institucionais). Embora admitindo a relatividade dos resultados, distinguem dois grupos distintos de cultura: uma marcada pelo modelo impessoal e independente em termos de relacionamento interpessoal, isto é, culturas cujas emoções são culturalmente centradas no ego (como a cultura norte-americana, por exemplo); e outra cujo self caracteriza-se pela interdependência nas relações pessoais: culturas em que as emoções são dedicadas ao outro, seja esse outro uma empresa, como é o caso da cultura oriental, seja esse outro um indivíduo, caso da cultura latina. (Markus & Kitayama, 1991). Há, também estudos antropológicos e sociológicos que demonstram a existência de culturas que evitam e / ou omitem a expressão de afeto ao lado de outras que admitem e mesmo valorizam a manifestação de emoções. As primeiras são tidas como culturas de hipoconhecimento afetivo; as últimas manifestam-se em termos de hiperconhecimento afetivo.

Mas essa não é a discussão central desse trabalho, particularmente, embora as condições de produção textual estejam diretamente envolvidas com a cultura e com a orientação afetiva definida entre os participantes. E as condições culturais são tão fortes que também afetam do mesmo modo a constituição dos gêneros de discurso (apesar de formas padronizadas e típicas já disponíveis) que vão se ajustando às novas e diferentes realidades, conforme já assinalava Bakhtin em 1979.

Como a reclamação é um ato ilocucional de natureza pragmática (em que dizer é fazer, parafraseando Austin), está sujeita às situações comunicativas e ao tipo de contexto e interação que se estabelece entre os envolvidos. Analisando-a à luz da teoria dos atos de fala, concluímos que a reclamação apresenta uma natureza múltipla e híbrida, não se restringindo às classificações que não incluem a função expressiva nem tampouco pragmática. No dizer de Marcondes (1992, p.41), quando a linguagem é adquirida, o que se adquire não é pura e simplesmente uma língua, com sua regras especificamente lingüísticas, mas todo um sistema de práticas e valores, crenças e interesses a ele associados. Somente uma concepção pragmática e dialógica do discurso poderia dar conta de um ato de fala tão complexo e problemático. Tanto para Marcondes (1992) como para Bahktin (1979) o dialogismo permeia a comunicação humana: a comunicação é experimentada e vivida pela força da dialogicidade. Diz Bahktin (2000, p.317) que por mais monológico que seja um enunciado (...) ele não pode deixar de ser também, em certo grau, uma resposta ao que já foi dito sobre o mesmo objeto, o mesmo problema (...) As tonalidades dialógicas, continua o autor, preenchem um enunciado e devemos considerá-las para compreendermos o (próprio) enunciado.

Portanto, compreender a reclamação requer um rastreamento das suas condições de produção, entendendo que o querer-dizer do locutor se realiza acima de tudo na escolha de um gênero do discurso que, por sua vez, apresenta uma relação imediata com a realidade existente, além de ser constituído como uma resposta a enunciados anteriores dentro de uma dada esfera comunicativa e social. Então, como interpretar as cartas de reclamação tomando-se por base o micro-contexto em que elas se realizam? Como operar com o conceito de gênero em relação à carta, em face de tantas variações tipológicas que se lhe associam: carta de amor, carta comercial, carta de recomendação, cartas pessoais, convites, solicitações, cartas de reclamação?

Excetuando-se o formato externo - cabeçalho, data, assinatura - e algumas expressões formulaicas freqüentes em suas seções iniciais e finais, que dão a configuração típica a essa unidade comunicativa, o espaço interno da carta está aberto para qualquer tipo de comunicação, constata Paredes Silva (1996 a, p.5). Quer dizer, se a variedade de enunciados é grande, por outro lado, nessa variedade pode estar incluído um conjunto mais ou menos prototípico de formas padronizadas, das quais o locutor lança mão, ajustando-se-lhes ou alterando-as. E é nesse ponto que reside o problema e o interesse em interpretar o gênero sob a ótica de Bahktin (1979) e Paredes Silva (1996).

Paredes Silva, em dois artigos - “Variações tipológicas no gênero textual carta”, apresentado no XI Encontro Nacional da ANPOLL, em 1996, e “Forma e função nos gêneros de discurso”, relatório de pesquisa de pós-doutorado apresentado ao CNPq, em 1995, propõe parâmetros para se discutirem os gêneros do discurso a partir da perspectiva funcional, considerando, portanto, a língua em uso inserida em situações de comunicação. Considera a autora, para efeito de análise, unidades como ato e evento de fala, competência lingüística, competência comunicativa e pragmática, assim como conhecimento pragmático, ou seja, o conhecimento de mundo envolvido como forma de apreensão e elaboração da realidade pelo locutor. Para isso, propõe uma tipologia textual em que seja possível maior flexibilidade na classificação dos gêneros discursivos, classificação essa que se torna necessária na medida em que cada gênero impõe restrições específicas à maneira como se começa ou como acaba um texto e se associa a determinadas situações de uso e não a outras. (Paredes Silva, 1996 b)

É com base na perspectiva interacional, metodologicamente centrada em Paredes Silva, que as cartas de reclamação serão interpretadas em sua natureza tipológica. Em primeiro lugar, tomar-se-á como base o nível das estruturas discursivas que a autora retoma (e reelabora) de Schiffrin (1994), entendendo-as como os modos de organização da informação que representam as possibilidades da língua, as rotinas retóricas ou formas convencionais que o falante tem a sua disposição na língua. Baseando-se nesse nível, Paredes Silva destaca os seguintes tipos de estrutura quanto aos recursos lingüísticos típicos de cada uma, a saber: estruturas narrativas, descritivas, procedurais, expressivas (em lugar das avaliativas) e expositivo-argumentativas.

Em segundo lugar, analisar-se-á a carta segundo o critério funcional no âmbito do discurso - isto é, em que tipo de estrutura ou estruturas a carta se enquadra: descritivo? Expressivo? Expositivo-argumentativo?

Em terceiro lugar, será considerado o propósito comunicativo que a carta cumpre, tendo em vista sua força ilocucionária e a “intenção” do locutor. Nessa perspectiva funcional-interativa amplia-se o espectro de possibilidade analítica, pois pode-se prever a noção de indiretividade do ato, a intersecção de gêneros dentro de um mesmo gênero, a co-ocorrência de diferentes atos e forças ilocucionárias para se realizar uma reclamação. Então, por exemplo, uma carta, definida como unidade comunicativa e funcional da língua, (Paredes Silva, 1996 a) pode ser escrita com vários propósitos aos quais já fizemos referência: uma carta de recomendação, uma carta de amor, um pedido, uma carta de reclamação, e assim por diante; como também pode atingir o mesmo propósito por diferentes meios: escolhas lexicais que vão desde expressões formulaicas de polidez (rotinas retóricas ou formas convencioanis) até modalizações (atenuadores ou acentuadores da força ilocucionária).

O ponto de vista funcional-interativo ou da competência pragmática pode ajudar a resolver problemas como esse: como estabelecer a diferença entre uma reclamação que se manifesta por meio do ato de fala de um pedido ou que utiliza o pedido como força ilocucionária para atenuar o grau de ofensa latente na reclamação? Ou ainda, como reclamar não é empregado como performativo - a não ser em estruturas do tipo de perífrases verbais como “venho aqui para fazer uma reclamação”, ou “já é a terceira vez que venho reclamar”, o locutor recorre ao que é prototípico em termos de recursos lingüísticos disponíveis na língua que possam atender a determinados contextos comunicativos. Nesse caso, as formas verbais mais recorrentes estão entre solicitar e seu correlato pedir. Segundo Bakhtin (op.cit., p.312), tiramos de outros enunciados, e, acima de tudo, de enunciados que são aparentados ao nosso pelo gênero, isto é, pelo tema, composição e estilo: selecionamos as palavras segundo as especificidades de um gênero.

Mas, essas constatações ainda não resolvem o problema, pois como distinguir tipologicamente uma carta de reclamação de uma carta pessoal ou de um pedido se não forem estabelecidos parâmetros flexíveis? Como enquadrar cartas de reclamação em que são empregadas diferentes estruturas discursivas? Como interpretar a expressividade do enunciado, já que há consenso entre os estudiosos de que não existe neutralidade no discurso?

Para Bakhtin (2000, p.308-312), a expressividade só ganha significado no plano do enunciado no momento em que o locutor expressa a sua posição emotivo-valorativa, pois, no plano da língua, ao contrário, emoções e juízos de valor são absolutamente neutros. Apenas o locutor pode estabelecer um juízo de valor, expressar um estado psicológico mediante a realização de um enunciado concreto. Na mesma linha, antropólogos e sociolingüistas interacionais entendem o afeto como fenômeno construído na interação e no discurso que tanto pode regular as ações sociais como é por elas regulado. Há contextos cujas normas comunicativas requerem afeto superficial e despersonalizado - como é o caso do discurso acadêmico, das cartas comerciais; reuniões empresariais -; trata-se de contextos em que a expressão de afeto não é aceitável, recomendável ou mesmo aprovada. Há outros contextos que já prevêem a manifestação afetiva, e, até mesmo a sua omissão pode soar estranha (cartas de amor; romances, tratando-se de situações comunicativas; festas e funerais em situações sociais, por exemplo).

Então, como interpretar cartas de reclamação que ora apresentam um enquadre de hipoconhecimento afetivo, isto é, são despersonalizadas e formais ao lado de outras que manifestam o afeto de forma variada? Qual a “possível” intenção do locutor ao omitir a função expressiva em alguns momentos de sua reclamação; ou, em outros, torná-la afetivamente ambígua e, em outros, evidenciar a emoção em sua expressão máxima? Observemos, inicialmente, esses exemplos:

 

(i)

Eu, fulana de tal, proprietária do apartamento 901, situado a x, venho através da presente solicitar a V.S. que vistorie e conserte rachadura em piso de box de banheiro de empregada. [há vários modelos de cartas como esse]

(ii)

Infelizmente, mais uma vez desejo denunciar problemas que afetam o meu imóvel e que pode, num breve espaço de tempo provocar prejuízos maiores e mais importunos para a minha privacidade. Desta vez, trata-se de um vazamento no apartamento 302, no banheiro da suíte master; de onde uma água escorre direto sobre a superfície do meu espelho e, ainda, infiltra em um suporte e madeira, que guarda luminárias.

Seria prudente mandar verificar com urgência, pois só estaremos em casa até a próxima quinta-feira. A demora na avaliação dos problemas por parte dos senhores certamente acarretará prejuízos maiores para sua empresa.

Desejo, na oportunidade, mostrar minha satisfação com a gentileza e seriedade com que meus apelos e reclamações são recebidos por Dr. X e, sobretudo, pelo simpático Sr. Z.

Aguardo providências.

 

(iii)

1- Em 25/07/95 fui, novamente chamado pelo Eng. X para receber o meu imóvel que me devia ter sido entregue em 21/03/95.

2- Lá chegando o Eng. X e o seu funcionário Sr. F viram que uma das janelas de um dos quartos tinha uma diferença de 2 cm (mais estreita na parte de cima).

3- Será que não há ninguém na sua empresa com bom senso para tomar atitudes com a obrigação de fazer pactuada na escritura?

4- Afinal, quando vou receber o imóvel?

5- E, até lá, como a (nome da empresa) vai me ressarcir dos danos por não ter o imóvel que comprei e pago corretamente?

[somente a assinatura]

Quanto ao corpus examinado nessa pesquisa, composto por pessoas que assumem um papel social na condição de consumidores e reclamantes, tem-se, de um lado, o foco centrado no conteúdo informacional, isto é, na exposição de um problema que representa um dano material em que o reclamante lança mão daquelas estruturas discursivas, conhecidas e disponíveis, a que nos referimos, tais como: a estrutura narrativa para relatar o problema, a estrutura descritiva para descrever o problema, isto é, o tipo de dano material ocorrido. O emprego de tais estruturas concorre para dar a impressão de que a função referencial ocupa o plano principal nessas cartas como é o caso do exemplo (i).

No entanto, há variações nesse modo de organizar a informação. Na verdade, o foco, o conteúdo informacional dessas cartas é uma reclamação, ou seja, o próprio ato de fala constitui o objeto de sentido. A reclamação, como ato e objeto, traduz uma informação que envolve a expressão de um estado psicológico, em geral de insatisfação, que fala de um prejuízo (material e por vezes moral) e que, segundo a teoria da polidez, representa um grau de ameaça à face do ouvinte, além do que exige a sua participação para a resolução do problema apontado, como ilustram as cartas (ii) e (iii). Portanto, não podemos falar de cartas de reclamação sem nos referirmos à função expressiva que nelas predomina; nem de chamar a atenção para o fato de que estruturas expressivas se superpõem ou se entrecruzam às estruturas narrativa e descritiva e também às epositivo-argumentativas.

Por outro lado, é preciso lembrar que, independentemente da manifestação de afeto - velada ou aberta - a opção pela expressão aberta ou pelo apagamento do estado psicológico pode sinalizar uma estratégia ou intenção do locutor em razão de vários fatores: as suas próprias experiências subjetivas, a ordem moral local (as condições sócio-culturais do reclamante e o contexto em que ele está inserido); a avaliação da situação; a pertinência ou não pertinência em expressar afeto negativo.

O modelo representativo de apagamento ou economia afetiva foi por nós denominado pseudo-neutralidade, de acordo com uma classificação em termos de expressão de afeto. Cartas dessa natureza revelam uma omissão ou dissimulação afetiva de ordem textual e pragmática que redundou numa escolha prototípica em relação ao gênero: praticamente pode-se dizer que cartas desse tipo se assemelham a pedidos, pelo menos do ponto de vista do locutor. A despersonalização, associada à formalidade, desloca o foco do afeto para a informação ao mesmo tempo que reduz o ato de imposição e o grau de ofensa caso uma emoção de cunho negativo venha a se manifestar. A opção por uma atitude de não-confrontação expressa uma clareza pragmática, padronizada, típica do discurso empresarial, de cartas comerciais de caráter convencional.

Por outro lado, exemplos como (ii) e (iii) recorrem a estruturas expressivas ao lado das descritiva e narrativa. Conforme Paredes Silva (1996 b), verbos preferencialmente no presente; predicados com verbos de opinião, avaliativos ou subjetivos (verbos de cognição, percepção, volição, sentimento, etc.); predominânica da primeira pessoa constituem os traços que compõem a estrutura expressiva em que o envolvimento pessoal apresenta-se subjacente à atividade de fala, diferentemente de estruturas procedurais, por exemplo, marcadas pela impessoalidade, formalidade e distanciamento.

Temos em nosso corpus uma composição mista em função do significado afetivo construído na interação cliente / empresa, que, somente uma perspectiva interacional pode ajudar a dar conta. Já Bakhtin procura resolver essa questão, admitindo, ao lado de formas relativamente estáveis e fixas que cada gênero encerra em termos do tema, da composição e do estilo, formas mais livres e criativas: uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições, específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um gênero. (2000, p.284). Mas, ao produzirem um gênero também acabam por criar subgêneros, uma vez que o enunciado, ao combinar as formas estáveis às formas livres adapta-se às necessidades comunicativas, criando novas possibilidades . Ao lado de gêneros prescritivos convivem possibilidades tipológicas que podem expressar diferentes modos de organização informacional para dar conta das diversificadas atividades da esfera humana/social.

Como os gêneros dos discurso são as correias de transmissão que levam da história da sociedade à história da língua, Bakhtin expande o conceito de língua para enunciado (unidade real da comunicação verbal) e, juntamente com Paredes Silva, que propõe uma teoria de protótipos em que seja possível operar com escalas e gradações, a noção de tomar o gênero numa perspectiva funcional que compreende a língua em uso alarga o conceito de gênero. Assim podemos falar em gênero complexo e híbrido para as cartas de reclamação cujos reclamantes ora empregam modos de organização mais fixos e padronizados em meio a outras formas socialmente pouco recomendáveis ou aprovadas em contextos de natureza semi-institucional.

Diante desse dilema, de ordem pragmática mesmo, os locutores assumem formas ambíguas quando demonstram o grau de insatisfação com a empresa, como ilustra o exemplo (ii). Nesse caso, classificamos de ambivalência afetiva as cartas cujos reclamantes oscilam entre um comportamento não-ofensivo para não romperem definitivamente com os laços de camaradagem e reciprocidade (afeto positivo), a um comportamento de ameaça velada em virtude de atitude vitimizada para envolver (negativamente) o reclamado, colocando-o na condição de culpado. Esse jogo distanciamento / alinhamento afetivo faz emergir um sentimento de ambivalência, produzindo um efeito misto: uma carta de cunho pessoal em que o locutor age ora como pessoa ora como consumidor, misturando as relações formais às mais informais.

Já o exemplo (iii), de acordo com os parâmetros escalares estabelecidos para o afeto em nossa pesquisa, ilustra a categoria a que denominamos hostilidade para cartas que expressam a insatisfação de forma mais ou menos hostil. Nessas cartas, os reclamantes optam por recursos de intensificação da força ilocucionária, por atos de ameaça à face positiva e negativa da empresa, por expressões claras de hostilidade. Em geral, essas manifestações ocorrem em cartas de reiteração em que os reclamantes já fizeram, anteriormente, uso de todos os recursos que pudessem evitar um tipo de confrontação mais ostensiva e violenta. Esses textos, além de reiterarem pedidos, deixam claro o descaso da empresa em relação não só à qualidade dos serviços prestados, mas também à incompetência ou inabilidade da empresa no que tange à execução e administração satisfatória dos serviços que a mesma tem por obrigação dispensar aos seus clientes. Não há negociação - nem tampouco disposição para o alinhamento em termos de afeto positivo - na interação que se estabelece entre as partes. O grau de ofensa é maximizado sem temor algum sobre qualquer tipo de perda - material ou simbólica (face/imagem) do reclamante -, tamanho o prejuízo já experimentado (também material ou simbólico).

Logo, a expressão de afeto está presente em todas as esferas humanas, e a recorrência a estruturas expressivas por esses reclamantes reflete as inúmeras possibilidades lingüísticas que, ao serem atualizadas no discurso, promovem variações quanto à rigidez na categorização dos gêneros do discurso. Além disso, a dimensão afetiva, compreendida nos termos apresentados, traz à tona novamente os estudos da função expressiva ou emotiva da linguagem, antes, dedicados basicamente aos textos literários. Como salientamos, o significado afetivo é socialmente construído e motivado, capaz, inclusive, de transformar a natureza as situação social.(Besnier, 1990; Burkitt, 1997; Ochs & Schieffelin, 1990; Abu-Lughod & Lutz, 1990).

Embora Bakhtin afirme que nem todos os enunciados sejam propícios ao estilo individual, a não ser os gêneros literários, todo enunciado acaba por refletir a individualidade de quem fala, constituindo-se um produto complementar (um epifenômeno) das atividades lingüísticas. Nossos dados, no entanto, contradizem a questão do epifenômeno, tendo em vista não o gênero carta, em si, mas a natureza do ato de fala em questão, propício à exposição de um estado psicológico que afeta e influi (n)a tipologia textual da qual o locutor se vale para reclamar, mesmo que de diferentes modos.

Porém, ao postular sobre a relação indissociável entre estilo e gênero, Bakhtin expande o conceito de expressividade, pois compreende o estilo lingüístico como constituinte de um gênero peculiar a uma dada esfera da atividade e da comunicação humana, sujeito às mudanças históricas: as mudanças históricas dos estilos da língua, diz ele, são indissociáveis das mudanças que se efetuam nos gêneros do discurso. Portanto, o estudo dos gêneros requer que se elabore uma metodologia que leve em conta os problemas da estilística da língua (id.,p.283-6)

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BESNIER, Niko. Language and affect. In: Annual Rev. Antropology, 1990.pp.419-51.

BURKITT, Ian. Social relationships and emotions. In: sociology,31 (1), 1997. pp. 37-99.

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HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1999 [1939].

LUTZ, C. & ABU-LUGHOD, L. (eds.) Language and the politics of emotion. Cambridge, Cambridge Univ. Press. 1990.

MARCONDES, Danilo. Filosofia, linguagem e comunicação. São Paulo, Cortez, 1992.

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PAREDES SILVA, Vera. Variações tipológicas no gênero textual carta. (XI Encontro Nacional da ANPOLL), 1996 a .

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