RECURSOS PARA UMA DESAMBIGÜIZAÇÃO
DAS “FRASES” VEICULADAS PELAS REVISTAS
VEJA
E
ISTO É

Cleide Emília Faye Pedrosa (UFS)

 

1. Introdução

Analisando as “frases” das revistas Veja (secção ‘Veja essa’) e Isto É (secção ‘Semana’/‘Frases’) em um projeto mais amplo, queremos, neste trabalho, fazer um recorte e exemplificar o fenômeno da ambigüidade, provando, assim, que a linguagem veiculada pela mídia impressa pode ser um bom material para a prática pedagógica e confirmando que no uso efetivo da língua, alguns dos fenômenos trabalhados numa gramática tradicional não ocorrem necessariamente como é postulado ali. Vamos descobrir que em contextos situacionais diversos (social, político, econômico etc), os usuários atualizam sua língua de forma que atendam às suas necessidades.

O fenômeno da ambigüidade será analisado considerando seus aspectos semânticos e pragmáticos, pois concordamos que a semântica e a pragmática tratam da significação, ou melhor, fazem referência ao mesmo objeto. Por essa razão, faremos uma preliminar sobre esses dois campos, sobre a noção de ambigüidade, e a concepção de texto, para, logo em seguida, comentar alguns exemplos coletados das duas revistas citadas.

 

2. Semântica

A Semântica é uma ciência recente e ao mesmo tempo antiga, tendo em vista que o uso da linguagem pelo homem já implica que isso sempre seja feito de forma significativa. O paradoxo se justifica pelo fato de que só no século XIX, com a obra de Michel Bréal (1883) Les Lois Intelectualles du Languag: Fragment de Sémantique, é que o termo semântica foi utilizado; a partir de então, os lingüistas voltaram seu interesse para o problema da significação, investindo no estudo do signo. E pelo fato que tudo ou quase tudo que estudamos na atualidade nos foi outorgado pela Filosofia da Linguagem através das obras de Platão, Aristóteles, dos Estóicos (Antiguidade), e de Agostinho, Thomas de Effurt, Tomás de Aquino e outros da Idade Média.

Abordando uma definição resumida, poderíamos dizer que a semântica é o estudo do significado lingüístico, defini-la não é o maior problema. A questão é a definição de seu objeto, o significado. Katz (1982) afirma que qualquer teoria que se proponha a responder a pergunta “o que é significado?” terá que necessariamente explicar os seguintes fenômenos semânticos: os fenômenos de sinonímia e paráfrase; fenômeno da antonímia; fenômeno de hiperonímia/hiponímia; o fenômeno da ambigüidade; o fenômeno de redundância semântica; o fenômeno da contradição; o fenômeno da sinteticidade; o fenômeno das informações implícitas, seja através da implicação ou da pressuposição.

Recentemente a definição de Semântica como ‘ciência ou estudo do significado’ tem sido atualizada para o ‘estudo da significação’ou o estudo do ‘conteúdo’dos signos lingüísticos.

 

3. Pragmática

Cabe à semântica do texto expor a significação de um texto e como ela se constitui, e cabe à pragmática do texto tornar claro qual a função de um texto no contexto extralingüístico, que vem a ser um conjunto de condições de produção e recepção do texto, envolvendo a própria interpretação do texto.

A aplicação da Pragmática à Lingüística textual é um elemento que se inseriu no modelo já organizado de gramática textual, com a finalidade de dar conta da situação do ato comunicativo na qual o texto está incluso.

Oller (Apud Fávero e Koch, 1998: 16) define a pragmática

como a interação dinâmica entre conhecimento do locutor a respeito do universo (incluindo as informações imediatamente percebidas e as dimensões sintático-semânticas). Estas dimensões, entretanto, de nenhuma maneira são independentes. Há a interação entre o conhecimento do mundo e o mundo do texto (sintático-semânticas).

A pragmática desempenha o papel de verificar: sobre o que o autor pretende tratar no texto; a que tipo de destinatário se dirige; qual a sua intenção, em que situação comunicativa o texto está inserido; quais as informações implícitas assumidas, entre outros.

Na tentativa de entender o papel da pragmática na compreensão textual, poderíamos dizer que ela está relacionada com os princípios da língua em uso, que ela está ligada com a performance (Chomsky) e com a interpretação da forma (estrutura lingüística) no contexto.

Pragmática é o estudo dos aspectos relevantes na relação entre linguagem e contexto que são gramaticalizados numa estrutura da língua.

 

4. O fenômeno da ambigüidade

Etimologicamente o termo ‘ambigüidade’ provém de duas palavras latinas: ambo e agere, indicando uma situação que nos remete simultaneamente para duas direções interpretativas distintas.

O professor Ilari (1997) assim se expressou em relação ao fenômeno da ambigüidade semântica:

(...) há interesse em reconhecer que começamos a pensar em ambigüidades semânticas toda vez que, diante de duas ou mais interpretações possíveis para um mesmo enunciado, nos colocamos, por assim dizer, numa perspectiva de dicionaristas e não de usuários, isto é, atribuímos as diferentes alternativas de interpretação que se abrem diante de nós às próprias expressões, não a seu uso ... (03)

Como podemos perceber pela citação acima, a ambigüidade semântica se restringe a uma leitura nos limites do próprio texto, não o extrapolando.

Por outro lado, vamos ligar as ambigüidades pragmáticas ao uso que fazemos das expressões lingüísticas que constam no texto. Geralmente, identificam-se as ambigüidades pragmáticas através do estudo da dêixis, da pressuposição, dos atos de fala e das implicaturas conversacionais; muito embora, os estudiosos no assunto não sejam unânimes quanto a essa identificação.

Alguns fatores lingüísticos são apontados como responsáveis pelo fenômeno da ambigüidade. Ele ocorrerá quando:

- uma sentença aceita duas construções sintáticas diferentes;

- há diferentes correferências possíveis para o mesmo pronome;

- há casos de homonímia lexical;

- há dúvidas no emprego de uma expressão, saber se ela foi utilizada ou não como uma frase feita;

- ficamos incertos em considerar uma palavra em seu sentido denotativo ou conotativo.

 

5. Texto: o material de análise

Um texto diz respeito a qualquer passagem, seja ela falada ou escrita, e que seja um todo significativo, independente de sua extensão. Essa visão de texto serve de base para o estudo que procederemos, tendo as “frases” veiculadas pelas revistas Veja e ISTOÉ como material de análise. Tornou-se óbvio que o todo significativo desses “textos” (frases), para o leitor, só acontece juntamente com o contexto recuperado pela mídia, tendo em vista o leitor não se encontrar presente no momento da enunciação.

O texto escrito, pelo fato de não apresentar uma interação direta entre os envolvidos no processo comunicativo, traz algumas conseqüências apontadas por Charmeux (1997:66), das quais nos interessam duas, particularmente:

- “A impossibilidade de utilizar o não-verbal” - Porém corpus em análise, a revista utiliza fotos para melhor contextualizar a “frase”, como exemplo:“Tenho diversos projetos na cabeça, mas as prioridades serão Kosovo e África.” Ronaldinho, jogador de futebol, ao ser nomeado embaixador Global da Boa Vontade da ONU. (Isto É - 09/02/2000) - Frase acompanhada de uma foto do Ronaldinho, autor da frase.

- “A ausência de evidências em comum, e a impossibilidade de recorrer a feedback”, por isso é necessário que o texto escrito explore seu caráter de explicitude, ser muito preciso e tentar evitar, ao máximo, a ambigüidade. Os indícios podem até ser redundantes. Neste tipo de material que estamos analisando, a ambigüidade é desfeita, principalmente, no contexto situacional recuperado pelo editor, exemplo: “Depois que fui deflorado perderam o interesse em mim.” Bill Clinton, presidente americano, comentando sua viagem à Índia, onde teve de se livrar de uma guirlanda, porque um bando de macacos o atacou para comer as flores. (Veja, 05/04/2000). Há ambigüidade na leitura: fui deflorado (perdeu a virgindade). É claro que o leitor atento iria remeter aos incidentes de assédio sexual em que o presidente se envolveu há um tempo atrás. Mas, o contexto resolve esta questão: guirlanda/flores e macacos, são as palavras chaves para desfazer a ambigüidade.

O próprio uso da língua permite ou autoriza a polissemia ou pode conduzir ao mal entendido, gerado por uma ambigüidade sintática ou lexical, porém tendo como pano de fundo a intencionalidade do autor.

 

6. Análise do fenômeno da ambigüidade

Exemplos

1.“O setor agrícola passou por momentos difíceis. Ele se viu obrigado a buscar ajuda.” Assessor do deputado Odilo Balbinotti explicando por que o seu chefe (dono de fazendas no Paraná em Mato Grosso do Sul) foi o parlamentar que mais faltou na câmera no ano passado. (Isto É, 23/02/2000)

Fica subentendido pela leitura da ‘frase’ que o ‘ele’a que se refere o assessor é responsável pelo setor agrícola do país, porém quando lemos o contexto e, especificamente, a opinião do editor exposta dentro dos parênteses, conseguimos fazer a leitura do que realmente deveria constar na ‘frase’. Observamos que a construção sintática e a escolha lexical do assessor conduziram a uma leitura diferente da proposta pelo editor. Só o conhecimento de mundo, o conhecimento do social e da política nos ajuda a interpretação aceitável, aspectos esses ressaltados pelo editor.

2.“Garotinho não sabe administrar coisa grande.” Luís Inácio Lula da Silva, candidato eterno à Presidência pelo PT, questionando a capacidade do governador do Rio para ocupar o lugar de FHC.(Veja -05/04/2000)

A leitura da “frase” sem o contexto é interessante, tendo em vista a utilização do sobrenome Garotinho, e não o nome inicial Anthony- Gente pequena não sabe administrar coisas grandes! O contexto desempenhou o papel de orientar a leitura, evitando-se a ambigüidade.

3. “Se você deixa que te passem a mão uma vez, vai ter de deixar sempre.” Marília Gabriela, entrevistadora de TV, sobre sua saída do SBT. (Veja, 05/04/2000)

A questão da ambigüidade, no exemplo acima, para ser resolvida, depende do leitor decidir se considera a expressão ‘passem a mão’ como uma expressão feita ou não. Então o editor, em seu processo de contextualização, orienta o leitor para apenas uma leitura, ou seja, a expressão deve ser tomada em seu sentido conotativo.

4. “Por favor, Malan, fale em português.” Fernando Henrique Cardoso, presidente da República, ao dar a palavra ao ministro da Fazenda Pedro Malan, no jantar com senadores no Palácio da Alvorada. (Veja, 26/01/2000)

5. ‘Não vamos deixar a peteca cair.’ Pedro Malan, ministro da Fazenda, garantindo que o governo FHC vai governar até o último dia de olho na estabilidade da economia. (Veja, 04/07/2001)

No exemplo 4, o pedido de FHC a Malan deve ser considerado em seu aspecto literal ou não? Como usuário da língua temos conhecimento dessa expressão (‘fale em português’) como devendo ter a seguinte leitura: o falante deve utilizar-se de uma linguagem de fácil acesso, o que fica subentendido que o ministro da Fazenda apresenta em seu discurso uma linguagem rebuscada. E como nosso conhecimento de mundo nos diz que o evento comunicativo ocorreu aqui no Brasil, confirma-se mais uma vez a leitura de a expressão não deve ser tomada literalmente. Uma outra expressão feita ‘não deixar a peteca cair’ foi utilizada no exemplo 5: “não vamos deixar a peteca cair.”, quem nos garante esse uso é a referência que temos na contextualização do editor, ‘a peteca’ corresponde a ‘estabilidade econômica’.

6. “Aqui no Rio, nem malandro está livre de rasteira.” Bezerra Silva, sambista, ao saber que o cachê de 12.000 reais para cada show que faria pela Riotur no carnaval havia caído par mil. (Veja 01/03/2000)

7.Fui ferrado pelos brancos.” Mário Juruna, líder Xavante e ex-deputado federal, queixando-se de abandono depois que encerrou seu mandato. (Veja, 01/03/2000).

8. ‘Ele só me dá pepino.” ‘Rosinha Matheus, mulher do governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, sobre o fato de seu marido ter-lhe entregue a Secretaria de Ação Social. (Isto É, 26/04/2000)

9. “Sova levou o Quércia, que ficou atrás do Enéas.” Michel Temer, deputado federal (PMDB-SP), respondendo ao ex-governador Orestes Quércia, que criticou sua candidatura à presidência do partido. (Veja 15/08/2001)

Nos casos acima, o leitor precisa decidir se faz a leitura das ‘frases’/textos empregando as palavras ‘rasteira’, ‘ferrado’, ‘pepino’, ‘sova’ denotativamente ou conotativamente. Através do contexto recuperado pela mídia, ele se orienta para a leitura conotativa das palavras, desfazendo a ambigüidade.

10. “Depois que fui deflorado perderam o interesse em mim.” Bill Clinton, presidente americano, comentando sua viagem à Índia, onde teve de se livrar de uma guirlanda, porque um bando de macacos o atacou para comer as flores. (Veja, 05/04/2000).

O exemplo 10 retrata uma textualização e contextualização sob o ponto de vista do editor, pois, talvez o que foi dito pelo presidente americano, em inglês, não tivesse o mesmo efeito de ambigüidade naquela língua, assim o editor explora para nós, falantes, da língua portuguesa, a ambigüidade do termo ‘deflorado’ a fim de fazer referência ao caso de assédio sexual em que Clinton se envolveu. Nesse exemplo, não era o sentido conotativo que deveríamos seguir como pista para a leitura, mas o sentido denotativo da palavra ‘deflorado’.

11. ‘Tudo o que a mamãe tem de bom, peguei.” Rogéria, travesti (Isto É, 21/07/2001).

Só o contexto do editor indicando o locutor e sua opção sexual orienta o leitor para efetuar uma leitura condizente com a interpretação sugerida por Rogéria. Não foram bens materiais que Rogéria pegou de sua mãe, porém sua feminilidade.

12.“É um abacaxi” Gilberto Mestrinho, presidente do Conselho de Ética do Senado e amigo de Jader Barbalho, recusando-se a descascar a fruta sozinho. (Veja 08/08/2001)

Só o conhecimento do contexto político nacional desfaria a ambigüidade, pois nem mesmo o contexto descrito pela mídia soluciona plenamente a questão da ambigüidade, tendo em vista o editor também utilizar-se da palavra ‘fruta’ em referência a abacaxi.

13.“Faça como a Seleção. Leve Gol.” Anúncio de uma concessionária Volkswagen do Rio. (Veja, 08/08/2001)

A ambigüidade, neste anúncio utilizado em forma de ‘frase’, traz um caráter irônico, já que nenhuma Seleção gostaria de levar gol, porém é o que a nossa está levando em suas últimas atuações. Assim, a Seleção pode levar gol, contudo os leitores do anúncio deveriam escolher levar Gol (carro). Explora-se, no exemplo, a polissemia do termo ‘gol’.

 

7. Conclusão

Segundo verificamos nos exemplos, dificilmente conseguiríamos estabelecer as fronteiras de um estudo da ambigüidade de acordo com a ótica da semântica e de acordo com a visão da pragmática.

Com as ‘frase’(texto) analisadas, detectamos que, em nosso uso diário com a língua, convivemos com suas ambigüidades. Podemos acrescentar que, de certo modo, a ambigüidade aguça a curiosidade dos leitores, funcionando, assim, como uma estratégia para atrair a atenção do leitor a fim de que ele perceba o humor e a ironia que estão explícitos ou implícitos em construção com tal fenômeno.

Atualmente somos levados a trabalhar e considerar a ambigüidade mais como um recurso polissêmico da língua em uso do que em seu aspecto de vício de linguagem, tópico tão fortemente caracterizado pela gramática tradicional. Com essa colocação não queremos negar que existam construções ambíguas geradas por inexperiência do usuário da língua, porém, ressaltar que este pode ser considerado um fenômeno produtivo que objetiva explorar a dinamicidade da língua em uso.

 

8. Referência bibliográfica

CHARMEUX, Eveline. Aprender a ler: vencendo o fracasso. 4a ed. São Paulo : Cortez, 1997.

FÁVERO, Leonor Lopes e KOCH, Ingedore G. Villaça. Lingüística textual: introdução. 4a ed. São Paulo : Cortez, 1998.

ILARI, Rodolfo. Aula do Concurso para o Provimento do Cargo de Professor Titular na disciplina de Semântica e Pragmática do Departamento de Lingüística do Instituto de Estudos da Linguagem em 06/06/1997.

KATZ, Jerrold J. (1982) “O escopo da semântica”. In: DASCAL, Marcelo (org.). Fundamentos metodológicos da lingüística: semântica. Vol III, Campinas : UNICAMP, 1982.