A AGONÍSTICA EM GONÇALVES DIAS

Amós Coêlho da Silva (UERJ)

 

Assim como os antigos gregos, os heróis românticos eram dotados de ‘agón’, termo que é um grecismo, ligado a ‘agón’: 'assembléia'; 'luta', 'combate'; 'debate', 'questão'; 'momento crítico' - e ao nosso agonia, o qual, com propriedade, anota Aurélio Buarque de Hollanda [Do gr. agonía,’luta’], mas que a Medicina o tomou emprestado com o sentido de os momentos que antecedem à morte. Este espírito agônico é simbólico do renascimento da hospitalidade, o que é uma lei divina numa sociedade arcaica, como a dos helenos, uma vez que fixava reuniões periódicas com libações aos deuses e confraternização entre os cidadãos de pontos longínquos e diversos da dispersa geografia grega, fortalecendo entre eles os laços amizade. O principal centro de festival fora Olímpia - cidade que originou esses jogos, mas havia outros festivais, os pan-helênicos, isto é, em outros lugares da Grécia: o Pítico - em Delfos, cidade nas faldas do monte Parnaso; o Ístmico - em Corinto; a Panatenéia - em Atenas e o Nemeu - em Neméia, região da Argólida.

Também as sociedades primitivas cultuavam a coragem e a energia, como símbolos de um herói. Surge no Romantismo uma atmosfera fomentadora dos sentimentos e prevalência da emoção sobre a razão, bem como o retorno à natureza. Na Europa, revalorização da Idade Média e, por conseguinte, o ressurgimento do cavalheirismo, análogo ao cavalheirismo homérico e olímpico. No Brasil, a Independência do Brasil em 1822 e sua consolidação estimulam o nacionalismo, mas, pela falta da Idade Média, o nacionalismo nos anima o olhar para o que havia de mais nacional: o índio. O Indianismo sustentou-se sob a égide do bom selvagem, ideal de Jean Jacques Rousseau (1712-1778), ao afirmar que o homem é naturalmente bom e a sociedade o corrompe.Também Gonçalves Dias (1823 - 1864) focalizou o nosso aborígine com o mesmo significado sugerido por Rousseau: o bom selvagem. E, na criação de um discurso nacionalista, se valeu, dentro dessa inédita realidade do Novo Mundo, a América, da onomatopoiía, termo grego, que significa, a rigor, a ação de criar palavras novas, enriquecendo o nosso vocabulário não só com tupinismos mas também com revigoramento da significação de outras.

O seu poema I - Juca-Pirama (DIAS) apresenta uma nota dada pelo próprio Autor a respeito do título: O título desta poesia, traduzido literalmente da língua tupi, vale tanto como se em português disséssemos ‘o que há de ser morto, e que é digno de ser morto’. Esta explicitação do Vate maranhense é a medida de sua preocupação em demonstrar que um nativo brasileiro ombrearia em termos de dignidade heróica com qualquer outro herói, cavalheirescamente, seja pertencente à Idade Média ou à clássica Grécia.

Como introdução há uma descrição das tabas dos Timbiras. É inegável a marca do estilo épico do Renascimento no vocabulário erudito, ao longo das dez partes, em termos como na quarta estrofe, da primeira parte, escravo insulano, numa manifesta comparação com evento da Grécia, na oitava estrofe A coma lhe cortam, o simbolismo do corte de cabelo, coortes, denotando batalhões, prélios, condão de prodígios, significando feitos heróicos, como em Homero ‘cléa andrôn’, os feitos dos heróis, ou mesmo res gestas Caesaris, feitos gloriosos de César. Porém o ritmo é essencial no seu poema. Na expressão de Afrânio Coutinho é como se ouvíssemos a dança, o batepé dos selvagens no festim, conforme a associação, na segunda parte, do verso curto, de rima aguda, com um longo, verso decassílabo. Na segunda parte, concluindo a descrição do preparo ritual, propõe o Poeta uma espécie de monólogo, como se uma voz a perguntar a respeito das preocupações do valente guerreiro Tupi e a sua expectativa de morte do prisioneiro neste exato momento; com efeito, encontra-se conduzido a um rito de passagem, uma vez que toda essa preparação seria para um banquete, em que o cativo, por ser um bravo, e em especial um Tupi, será devorado pelos Timbiras, a fim de que todos os guerreiros assimilem a coragem e a energia Tupi. Assim, uma sociedade primitiva se comporta como agonística (pelo latim agonisticu: scilicet, arte, significando a arte da luta na antiga Grécia). Ou seja, a definição do cacique da tribo se concebe pela sua força de guerreiro valente. No pescoço do orgulhoso cacique há um colar de alvo marfim, insígnia de honra, / Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme, / Como que por feitiço não sabido / Encantadas ali as almas grandes / Dos vencidos Tapuias, inda chorem; /Serem glória e brasão d’imigos feros. (terceira parte, primeira estrofe). O ‘agón’, que principia com a introdução resumida acima, continua com o desafio do cacique: As nossa matas devassaste ousado, / Morrerás morte vil da mão de um forte. O guerreiro Tupi se apresenta no meio do terreiro e ouve o desafio do valente chefe Timbira: Dize-nos quem és, teus feitos canta, / Ou se mais te apraz, defende-te. Exatamente como nos encontros de heróis da épica clássica, grega e latina, quando relatavam a sua genealogia, epítetos, os quais são a síntese dos seus feitos heróicos.

Há neste poema uma variação métrica com objetivo de ressaltar o ritmo. É o caso da quarta parte apresentada em redondilha menor e a sugestão rítmica de um tom marcial de instrumentos de percussão, acompanhando o discurso do bravo guerreiro Tupi. No entanto, pede seja que poupado da conclusão do ritual na quarta parte: Deixa-me viver! / (...) Guerreiros, não coro / Do pranto que choro; / Se a vida deploro, / Também sei morrer. Embora afirme não ser um covarde por pedir algumas horas de sobrevivência, pois, por ser arrimo devido à cegueira e velhice do pai, era ele que lhe restava ainda como guia e amparo nos desafios da densa floresta. Para admiração de todos o cacique ordenou (V parte): Soltai-o! Mas quando o Tupi se dirige ao chefe Timbira para agradecer o julgamento, obtém a seguinte resposta: - Mentiste, que um Tupi não chora nunca, / E tu choraste!... parte; não queremos / Com carne vil enfraquecer os fortes. O seu fôlego de bravo Tupi supera situação tão humilhante e penetra na floresta. Ao aproximar-se do pai, oferece-lhe provisões, a fim de restaurar-lhe as forças perdidas.

Não convencido das explicações do filho e, quem perde a visão, tem a compensação do olfato aguçado, sente o acre odor das frescas tintas, / Uma idéia fatal correu-lhe à mente... E reconhece, ao apalpar ornato macio de penas no corpo do filho, os indícios de um ritual de passagem. Recusa a idéia momentaneamente, para em seguida confirmar no toque de sua mão uma cabeça com corte de cabelo. Não havia dúvida: - Tu prisioneiro, tu? E a confissão: - Vós o dissestes. A nação fora a dos Timbiras. - E a muçurana funeral rompeste(...) O velho Tupi solicita a posição da taba dos Timbiras, faz o filho marcha em sua direção. Apresenta-se ao chefe e, num breve relato das ocorrências, pede, na sétima parte, a lenha, o fogo, / A maça (tacape) do sacrifício / E a muçurana (corda) ligeira: / Em tudo o rito se cumpra! Retruca o cacique: É teu filho imbele e fraco / Aviltaria o triunfo / Da mais guerreira das tribos / Derramar seu ignóbil sangue: / Ele chorou de cobarde; / Nós outros, fortes Timbiras, / Só de heróis fazemos pasto.

Ao saber que o filho de um Tupi chorou na presença de um estranho, o renegou como filho a tal ponto de desejá-lo prisioneiro dos vis Aimorés, oitava parte. A reação foi de imediato. A voz do filho ecoa Noutra quadra melhor. - Alarma! Alarma!, parte IX. Atente-se para o cuidado de linguagem de Gonçalves Dias, quando, como se estivesse esculpindo, o seu cinzel descobre o empréstimo do italiano em vogal temática -a, alarma e a precisão etimológica da expressão italiana alle arme, para as armas. É isso que o gramático Varrão (116 - 27 a.C.) aborda etimologicamente sobre as palavras quae obruta vetustate ut potero eruere conabor, as quais cobertas há muito tempo como puder tentarei escavar. O pai, agora honrado, na parte IX, em pranto copioso, / Que o exaurido coração remoça. Este choro não tem o mesmo significado anterior, em que se depreendeu um ato de covardia, medo perante a morte. São outras lágrimas. São (...)- estas lágrimas, sim, que não desonram., diz o pai na parte IX. E sob o -Basta! do chefe dos Timbiras, reconheceu o cacique, no ímpeto do guerreiro, a bravura de um tupi.

Na parte dez, como se houvesse um aedo ou rapsodo relatando o fato, Um velho Timbira, coberto de glória, / Guardou na memória / Do moço guerreiro, do velho Tupi! / E à noite, nas tabas, se alguém duvidava / Do que ele contava, / Dizia prudente: - Meninos, eu vi! Note-se um dado: a valorização da memória. A memória é a mídia entre as sociedades arcaicas ou primitivas. A modernidade do terceiro milênio desconhece a memória no sentido dos versos gonçalvinos, tanto que, retirada das escolas atualmente o cultivo da memorização, a qual uma nova orientação insiste pejorativamente em denegri-la com a expressão “decoreba”, há, paradoxalmente, cursos de memorização anunciados com freqüência em propagandas. Neste sentido, as sociedades de língua ágrafa preservam a sua história como aponta Gonçalves Dias acima. Tantas vezes a história seria contada quantas vezes fossem necessárias. Por isso, Gonçalves Dias fecha a parte X à moda de estribilho estes versos com pouca modificação: Assim o Timbira, coberto de glória, / Guarda a memória / Do moço guerreiro, do velho Tupi, / E à noite nas tabas, se alguém duvidava / do que ele contava, / Tornava prudente: “Meninos, eu vi!” E o termo prudente está como no latim: providens > *proudens > prudens, que prevê; que sabe.

 

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