A CONTRIBUIÇÃO GRAMATICAL DOS ALEXANDRINOS, DOS SÁBIOS DE PÉRGAMO E A GRAMÁTICA LATINA

Amós Coêlho da Silva (UERJ)

 

Qual, de fato, é o vínculo de afinidade da linguagem? Seria um parentesco natural ou convencional entre a forma vocabular e a sua estrutura semântica?

A hipótese estóica que considerou as palavras dotadas de realidades naturais (phýsis), como foram aprofundadas as pesquisas estóicas de Pérgamo, remontou a Platão. Os estóicos formalizaram a oposição que existe entre forma e sentido, distinguindo na linguagem o “significante” e o “significado” em termos que surpreendentemente lembram a dicotomia ‘signifiant’ e ‘signifié’ de Saussure.(R.H.Robins, Pequena História de Lingüística, p 12) Elas, portanto, por força da natureza (phýsei), têm um elo conseqüente de lei necessária ou até mística entre o som vocal e o significado. Mas este ponto de vista é uma oposição a Aristóteles, un capovolgimento della predominante concezione aristotélica. (Della Corte, F., p. 22). Portanto, Aristóteles, no De Interpretatione, julga a linguagem conseqüência de uma imposição arbitrária (nómos): um produto da convenção, ‘thései’: A fala é a representação das experiências da mente e a escrita é a representação da fala.(Robins, p.15) O Estagirita, ao admitir a força da convenção da linguagem, o fez por método dedutivo; como no silogismo, O homem é mortal; eu sou homem; logo, sou mortal, que contém premissa maior, menor e conclusão. Portanto, partiu do geral para o particular. Os estóicos recusam a distinção do universal e condicionam não simplesmente termos, porém proposições: Se A, B. Donde: Quando A, logo B. À guisa de ilustração: Se bom tempo, eu passeio. Quando não passeio, deduz-se mau tempo. A proposta platônica no Crátilo fora um exame etimológico, no sentido pontual: ‘étymos= verdadeiro; ‘-logos’ = palavra, discurso; sufixo ‘-ia’, direcionando o escopo de sua pesquisa para a filosofia. Como ar em grego tem a forma ‘aer’, foi relacionada a sua etimologia ao verbo levantar, por causa de sua forma ‘aírei’, pois o ar levanta as coisas do chão; o nome ‘héros’, herói, ligando-se a ‘éros’, amor, pois este seria filho do amor - sem levar em conta a substancial oposição entre as respectivas vogais longas do primeiro nome em relação às breves do segundo.

Há conquistas da investigação da linguagem realizada pela sucessão cronológica: Platão aos estóicos de Pérgamo e Aristóteles aos pesquisadores de Alexandria. A doutrina, encadeada desde Platão aos estóicos, ainda que nos pareça caricatural à luz da ciência filológica moderna, em Nigídio Fígulo (final do século II a.C.), (apud Aulo Gélio, II d.C.), foi seguida e até fundamenta com explicação onomatopaica. Por exemplo, a palavra é mimese do objeto denotado através da articulação vocal sonora. De modo que, em “uos” o ar vai para frente, porque é pronome de segunda pessoa e o seu significado com quem se fala: portanto, de acordo com a expiração do ar. Desse modo, lê-se no De Lingua Latina, V, de Varrão (116 - 27 a. C.) certa herança de abordagem estóica, introduzida por Élio Estilão, contemporâneo de Nigídio, tais como anas, pato, porque ele sabe nadar, nare (§78), vitis, videira, de vis, força (§37) - já que as gavinhas da videira agarram com força, cura, cuidado, de cor urere, coração arder (livro VI, §46)- pois as pessoas preocupadas sobrecarregam o coração com emoções. São os mesmos trocadilhos gregos, mas há listas etimológicas válidas nos dias de hoje; além disso, os estudos gramaticais entre os gregos não se restringem à etimologia.

A mais peculiar contribuição da Idade Helenística foram os debates sobre aspectos gramaticais e estudos filológicos dos textos literários. Notícia que os romanos só tomarão conhecimento a partir de uma visita de Crates de Malo em 167 a.C., representante de Pérgamo perante o Senado de Roma. Rival dos alexandrinos, Crates, na esteira de Crisipo, filósofo estóico, que nos legou Perì Anomalias, Sobre as Anomalias, também investigou a linguagem tomando como princípio regente de sua estruturação a anomalia(‘an-’= privação; ‘omal-’= igualdade; ‘-ia’=sufixo formador de abstração).

Uma outra linha de pesquisa se forma, de Aristóteles aos alexandrinos. Estes criaram princípios de abordagem de textos, sobretudo a explicação dos textos homéricos, a exegese, exégesis, rejeitando as interpretações alegóricas dos filósofos estóicos. É na biblioteca fundada pela munificência dos reis egípcios que nasceu a filologia. Entre os eruditos mestres, no exercício de bibliotecários, surgiu a crítica de textos. Recolhiam os manuscritos, os confrontavam, estabeleciam os textos das obras, como os vinte e quatro cantos para a Ilíada e, também vinte e quatro, para a Odisséia - os escoliastas anteriores aos de Alexandria só tinham, até então, conquistado pequenos avanços ecdóticos, ou seja, elaboração crítica para publicação. Conforme opinião dos antigos: teria começado ou com Pisístrato ou Sólon no século VI -, porém, realmente fundamento ecdótico, porque dotado de metodologia, foi a partir dos alexandrinos, os quais organizavam os catálogos, faziam os inventários da antiga literatura e editavam as obras, desde Homero a Ésquilo. O primeiro a usar nome de filólogo, pelo latim philologus, amigo das letras, das obras literárias, da linguagem, foi Eratóstenes (aproximadamente 275-195 a.C.). Este sucedeu a Zenódoto (325-234 a.C.) de Éfeso. São contribuintes também Aristófanes (257-180 a.C.) de Bizâncio, que foi citado explicitamente por Marco Terêncio Varrão): Tertium genus est illud duplex, quod dixi, in quo res et uoces similiter porportione dicuntur, ut bonus malus, boni mali, de quorum analogia et Aristophanes et alii scripserunt.(De Lingua Latina, X, 68), A terceira espécie de Regularidade é aquela, que mencionei, que tem duplo elemento, sobre o qual as coisas e as palavras faladas são pronunciadas com semelhança e proporcionalmente, como bonus (bom) e malus (mau), plural boni e mali; Aristófanes e outros escreveram sobre analogia. Aristófanes, conforme Carísio (IV d..C.), nos legou critérios metodológicos de abordagem analógica: 1) as palavras devem ser da mesma espécie: verbos, apenas verbos ou nomes, apenas nomes; 2) a desinência denote o mesmo número, caso e declinação; a mesma prosódia: breves ou longas. Aristarco já havia esquematizado isso com o princípio de não se misturarem as palavras simples com as compostas. A Téchne Grammatiké de Dionísio foi além dos mestres alexandrinos.

Em outra passagem, Aristophanes improbandus, qui potius in quibusdam ueritatem quam consuetudinem secutus? (Ibidem, IX,12), Aristófanes deve ser censurado, porque nas suas obras preferiu a verdade ao uso (costume)? Aristophanes ut Apollodorus, qui omnes uerba ex uerbis ita declinari uolunt, ut uerba litteras alia assumant, alia mittant, alia commutent. (Ibidem, VI, 2), Aristófanes (de Bizâncio) e Apolodoro (de Atenas; cerca de 180 - mais ou menos 120 a.C.) (afirmaram) que todas as palavras derivam de outras palavras de tal maneira, que certas palavras juntam formas (letras), outras as suprimem, outras as transformam. Aristarco (215 - 145 a.C.) de Samotrácia integra a equipe dos criadores críticos dos “Cânones”, ou seja, listas de autores clássicos e consagrados. Dionísio Trácio foi discípulo de Aristarco (cerca de 190 -70 a.C.) e organizou metodicamente uma Gramática Grega, Téchne Grammatiké. Criou tópicos gramaticais por assunto (1.Da Gramática; 2. Da Leitura 3. Do Acento 4. Da Pontuação 5.Da Rapsódia 6.Do Elemento 7. Da Sílaba 8. Da Sílaba Longa 9. Da Sílaba Breve 10. Da Sílaba Comum 11. Da Palavra 12. Do Nome 13. Do Verbo 14.Da Conjunção 15.Do Particípio 16. Do Artigo 17. Do Pronome 18.Da Preposição 19. Do Advérbio 20.Da Conjunção), destacando sempre temas de morfologia e fonologia. Mais tarde Apolônio Díscolo e seu filho Herodiano (século II d.C.) é que vão tratar pela primeira vez da sintaxe. Da vasta obra de Apolônio, restam fragmentos, os quais não viabilizam a reconstituição de sua doutrina, mas os gramáticos latinos, como nos demais trabalhos gregos, são fontes, sobretudo Prisciano (século VI d.C., uma ponte que ligou os antigos à Idade Média).

Mas retomemos o século I a.C. com Júlio César e Varrão. O ilustre estadista, além de nos legar a obra De Analogia, adotou a regularidade (= analogia alexandrina), rationem adhibens, acolhendo a regularidade, elegeu o uso de flumen, rio, abandonando os sinônimos fluvius e amnis - pois estas duas têm terminações anômalas, ao passo que a terceira declinação é dotada de uniformidade na terminação -men, como numen - divindade, carmen - hino, poesia, acumen - ponta; ferrão e outras. O particípio mortuus - morto é abandonado, porque -uus é mais característico em substantivo, como equus - cavalo; ora, substantivo é uma classe e particípio é outra. Empréstimos gregos receberiam flexão analógica a Cato, -onis - Catão, como há de acontecer com Calypso, Calypsonis, Calypsonem - ninfa Calipso da ilha de Ogígia... semelhante ao termo Iuno, -onis - irmã e esposa de Júpiter, porque seriam nomes próprios...

A descrição de Varrão é epistemológica, isto é, visa à teoria crítica com a pretensão de determinar valores objetivos de princípios e resultados. Há muito de antecipação ao estruturalismo moderno, como na passagem do livro V, 11 é exemplar: Pythagoras Samius ait omnium rerum esse bina ut finitum et infinitum, bonum et malum, vitam et mortem, diem et noctem, Pitágoras de Samos disse que todas as coisas são binária, como finito e infinito, bom e mau, vida e morte, dia e noite. Partindo de princípio filósofico, mas de lá retirando a noção de relação estrutural e aplicando no estudo da linguagem, passa a descrição do latim, descrição essa isenta de subserviência helênica, como se discutirá a partir de então.

Abordaremos agora o livro VIII, De Lingua Latina, que tem por tema contra analogia, ou melhor, As coisas que serão questionadas por que não existe analogia, Quae dicantur cur non sit analogia. Empregará declinatio no sentido de derivação e flexão. Concebe a gramática de uma língua como sendo tripartite: a) a primeira parte é um conjunto de palavras admitidas convencionalmente por um dado grupo social (= imposita); b) a segunda parte é outro conjunto, formado das modificações resultantes a partir do primeiro grupo (=declinata, derivadas); c) o terceiro grupo é composto pelo conjunto de palavras associadas entre si pela mesma razão (= idéia) para exprimir a sentença. A primeira parte foi um trabalho arqueológico, ele expôs nos Livros V, VI e VII. A segunda ocorre por expansão (obliquum) e antes dela há o elemento primário (rectum): rectum homo, obliquum hominis (§1). A declinação foi introduzida na linguagem, não só entre os latinos, mas entre todos povos, porque é útil e necessária: não fosse ela, o número de palavras excederia a capacidade de memória. Varrão afirma que, se o número de possibilidades de declinação fosse infinito, não poderíamos sistematizar o parentesco das palavras. Mas graças à declinação distinguimos ao mesmo tempo a identidade e a diferença, assim quando legi (colhi) está declinada de lego(colho), percebo que se trata de uma mesma coisa e por outro lado, eu disse algo não realizado no mesmo tempo. Mas se utilizássemos duas palavras diferentes, por exemplo, Priamus - no primeiro caso, e Hécuba - no segundo caso, não depreenderíamos a correspondência entre as duas, como ocorre em lego e legi e em nominativo Priamus e dativo Priamo. Enfim, o inventário das palavras é regido por dois princípios: impositio et declinatio, alterum ut fons, alterum ut rivus (LL VIII, §5), primitiva e derivada, uma como fonte, outra como rio. Os nomes primitivos se fixaram em número reduzidíssimo, para que pudéssemos aprender mais rapidamente. Em oposição, as declinadas são muitas, a fim de que pudéssemos exprimir os matizes múltiplos do pensamento (= ad usum), afirmará Varrão. É necessário o estudo histórico do primeiro grupo e a arte orienta o segundo. Nos parágrafos seguintes, apresentará um quadro de declinação (=derivação) com significação interna (= partes orationis). Separa os seguintes aspectos gramaticais: algumas classes como fecundas (=variáveis), como lego (colho) legi (colhi) legam (colherei); outras como estéreis (= invariáveis), como et (e) iam (agora) vix (apenas) cras (amanhã) magis (mais) cur (por que)(§ 9) ; singular e plural(§ 10); as categorias de caso, tempo, gênero (§ 11); a distinção entre nome e verbo (§ 12); a posição das palavras na frase consoante o papel de sua classe gramatical: nomen sit primum (prius enim nomen est quam verbum temporale et reliqua posterius quam nomen et verbum), o nome fica em primeiro lugar (pois, o nome vem antes do verbo ‘temporal’ e as restantes mais posteriores ao nome e verbo (§ 13), etc., no (§ 16), conclui Sine controversia sunt obliqui, qui nascuntur a recto: unde rectus an sit casus sunt qui quaerant, Sem controvérsia são oblíquos os que nascem do reto: donde há quem pergunte se nominativo é mesmo um caso. Neste mesmo § 16, indica lingüisticamente quantos são os casos latinos e gregos: Com toda certeza, nós temos seis, os gregos, cinco: quem é denominado, como (nominativo) Hercules; assim como é chamado, como (vocativo) Hercule; para quem é chamado, como (acusativo) para Herculem; por quem é chamado,(ablativo) por Hercule; para quem é chamado, como (dativo) a Herculi; de quem é chamado, como (genitivo) de Herculis.

No §17, observa que o nome se subdivide em nome propriamente dito (=substantivo) e um outro, como se fosse cognomina, parecido com o nome de família (=adjetivo), prudens (sábio), candidus (sincero), strenuus (ativo). Essa classe possui uma categoria que forma com sufixação (incrementum) para denotar sentido de maior e menor (=grau comparativo e superlativo).

Há um outro quadro de declinação (=derivação), formado por palavras que se referem ao mundo exterior (extrinsecus declinantur): ab equo equile, estábulo (equile) provém de equus; ab ouibus ouile, sic alia, aprisco (ouile) provém de ovelha (ouis), assim outras: haec contraria illis quae supra dicta, estas são ao contrário daquelas que citei acima. São exemplos seus: homem da cidade (urbanus) provém de cidade (urbs), enegrecido (atratus) provém de negro (atrum), Roma provém de Romulus e romano provém de Roma (§ 18)

No § 21, depois de considerar discutido porque a declinação existe e para que foi feita, abordará o terceiro ponto. São duas as espécies de declinações: declinatio uolantaria et declinatio naturalis, e não derivatio, como foi acolhida por Mattoso Câmara, Estrutura de Língua Portuguesa, capítulo X, para explicar a nomenclatura de Halliday relações abertas e fechadas. A voluntária não é constituída por um inventário regular, coerente e preciso. O Prof. Mattoso exemplifica a formação cantarolar proveniente de cantar, mas faltam formações analógicas para falar e gritar, que são também tons da voz humana. Não há correspondência analógica de nomes para todos os verbos portugueses: assim, fala está para falar sem sufixação; consolação - sufixo -ção está para consolar; já para julgar temos

julgamento - sufixo -mento. Por isso, mesmo o dicionário da língua portuguesa do Prof. Antenor Nascentes que contabilizou cem mil verbetes, no novo dicionário do Prof. Antônio Houaiss, poderemos contar trezentos e cinqüenta mil, pois, além empréstimos, as possibilidades estarão sempre disponíveis para serem remanejadas e utilizadas. No entanto, há obrigatoriedade e sistematização coerente na flexão. Ela é imposta pela própria natureza da frase, e é naturalis no termo de Varrão. É o contexto natural da frase que impõe a adoção de um substantivo no plural ou singular ou de um verbo quanto à pessoa, número e tempo. Há concatenação de morfemas flexionais que pertencem a um inventário não aberto, mas fechado com um reduzido quadro de alomorfes. Cada elemento mórfico exclui os demais, e não podemos introduzir neologismos: no caso do português, são provenientes do latim. A conclusão a que Varrão chega é que ambas as doutrinas devem ser seguidas, pois na declinatio uolantaria há anomalia, in naturali, mais analogia.

Note o comentário de outro pesquisador inglês:

Em latim aparece formalmente diferenciado dos outros um caso não existente em grego, o ablativo, que indica ‘por quem a ação é executada’, conforme as próprias palavras de Varrão. Esse caso corresponde a alguns dos significados e funções sintáticas do genitivo e do dativo gregos. Compreende-se, portanto, por que o ablativo foi chamado de ‘caso latino’ ou ‘caso sexto’.(R.H.Robins, p.40-1)

É do fragmentado De Lingua Latina que provêm as seguintes colocações sobre verbo: a) abordagem sobre a formação freqüentativa do sufixo -itare; b) tipo de radical do perfeito com alternância, embora com exemplo contestável, pois pegou o verbo pluo, chover, em estágios cronológicos desconexos: pluit (u breve, presente indicativo) e pluit (u longo perfeito indicativo), sendo este último um exemplo de latim arcaico e o primeiro da época dele; c) levantamento de outras formas de perfeito latino: em -ui, paraui, preparei, com redobro, pupugi, piquei, tutudi, bati, tipo sigmático, pinxi, pintei. Há exemplos aqui que são fragmentos do Livro VIII, conservados in Aulo Gélio.

A trajetória dos estudos lingüísticos havia de demorar um bom tempo para alcançar o comparativismo, que foi fundado, afinal, no trabalho de Franz Bopp. Tanto os tempos quanto as pessoas do verbo já tinham sido tratados pelos gregos, por isso, não deve ter sido fácil para Varrão cotejar o latim com o grego e apresentar uma descrição gramatical sólida. Tanto que os outros gramáticos latinos não o entenderam, por isso mesmo nem prosseguiram a sua investigação, a não ser Prisciano. No Livro X, § 48, dá exemplos com intenção de relacionar formas primitivas a derivadas, isto é, as do infectum como as de ação incompleta: ideo lego ad legebam, por isso, lego(colho) a legebam (colhia). As de ação completa derivam do perfectum: non recte est lego ad legi, quod legi significat quod perfectum, não está correto relacionar lego (colho) a legi (colhi). O infectum se relaciona com o imperfeito, o presente e o futuro imperfeito (tudebam (batia) tundo (bato) tundam (baterei)), que são também de ação incompleta e o perfectum, com o mais-que-perfeito, perfeito, futuro perfeito (tutuderam (batera) tutudi (bati) tutudero (terei batido)), que são de ação completa. O que foi válido para a voz ativa será para a passiva. O texto dele é muito claro a esse respeito: Quod et infecti inter se similia sunt et perfecti inter se, ut tundebam tundo tundam et tutuderam tutudi tutudero; sic amabar amor amabor, et amatus eram amatus sum amatus ero, os que são semelhantes entre si tanto as formas do infectum quanto as do perfectum (...exemplos traduzidos acima); assim amabar (era amado) amor (sou amado) amabor (serei amado) e amatus eram (fora amado) amatus sum (fui amado) amatus erro (terei sido amado).(Livro X, § 48)

Desse modo, os elementos da categoria gramatical, ou seja, a parte interna da língua se fundamenta na regularidade (similitudo, ratio, proportio, enfim analogia). A parte externa se relaciona ao uso (usus, consuetudo). Portanto, porque, como nas construções e na vestimenta, assim no uso para a vida, o domínio é da desigualdade, do mesmo modo na linguagem...

Embora estivesse preso a querela analogia-anomalia, Varrão é profundamente moderno. É certo que a conjugação verbal latina repousa sobre os dois temas infectum (ação verbal incompleta) e perfectum (ação verbal completa), mas Varrão é o único gramático latino a descrever com precisão este quadro. Até o hibridismo gramatical do particípio despertou a sua atenção, pois sendo forma verbal, era, no entanto, dotado de caso, tempo e pessoa.

A análise gramatical de Varrão é um corte epistemológico. Tanto que aborda assuntos gramaticais com a mesma ótica de um lingüista moderno, realçando a distinção entre linguagem corrente ou popular e a padrão: ...alia enim populi universi, alia singulorum, algumas palavras, pois, são do universo do povo, outras de uns poucos. (Livro IX, § 5)

 

Bibliografia

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