A TRADUÇÃO DIANTE DAS VARIAÇÕES DO

CÓDIGO LINGÜÍSTICO ITALIANO

Amarilis Gallo Coelho (UFRJ)

 

Neste trabalho, pretendemos analisar as dificuldades que envolvem a passagem para o português de uma das obras de Carlo Emilio Gadda (Milão, 1893-1973) - escritor italiano de temática social - que tem como título original Quer pasticciaccio brutto de Via Merulana. Não se trata de uma crítica, mas de constatar uma vez mais a complexidade que acompanha o processo de tradução, principalmente quando estão presentes fortes e específicos aspectos do contexto cultural.

Aquela confusão louca da Via Merulana (Record : 1982), título em português, que já de início não traduz a plasticidade da expressão pasticciaccio brutto (que tal “feio pastelão” ou ainda “grossa trapalhada” ou mesmo a forma análoga em português “pastiche”?) é a obra mais conhecida deste autor e narra as aventuras e trapalhadas de um delegado de polícia. Francesco Ingravallo (vulgarmente chamado Dom Ciccio) foi indicado para descobrir os culpados de um roubo de jóias e do assassinato, em circunstâncias estranhas, de uma senhora da burguesia romana.

Partindo de um retrato da Roma de 1927, ao tempo de Mussolini, que pregava a ordem e a segurança, em uma política de moralização enganosa, a narrativa do escritor milanês tenta desmistificar, pela ironia e pelo humor, a nova classe dirigente, mostrando a verdadeira face de seu país, com seus problemas econômicos e culturais.

A leitura em italiano intimida de início, pela “pasta lingüística”, que mistura a língua comum a gírias mais fortes, palavrões, neologismos, língua culta (com a presença do latim e do grego) e termos técnico-científicos, apresentando também a predominância de estruturas dialetais. Tudo contribui para a representação antropológica objetivada pelo escritor: “A língua, espelho do total ser e do total pensamento, vem da conspiração de forças intelectuais e espontâneas, racionais ou instintivas, que nascem de toda a vida universal da sociedade.” (Gadda: 1958)

O pastiche lingüístico representa, assim, o pastiche social, caracterizado por uma complicada rede de linguagens e de intrigas que definem de forma quase surrealista o espaço narrado, ressaltando as diferenças sociais dos que convivem - os mais cultos e aqueles despreparados - em um ambiente repleto da antiga civilização e de uma cultura que está inserida em cada personagem. Todos eles, mesmo os analfabetos, têm sua cultura própria, resíduo de memórias e de tradição: “Diceva anche nodo o groviglio, o garbuglio, o gnommero, che alla romana vuol dire gomitolo.” (Ital. p. 4) (“Dizia também nó ou trama, garabulho ou gnommero, que em romano quer dizer novelo.”(Trad. p. 18)

Estes resíduos ou indícios do passado marcam a linguagem de cada personagem, representando cada mundo em particular e inserindo-se em um mundo comum, a Via Merulana. Por outro lado, as formas dialetais não representam somente o vulgo, o analfabetismo. O próprio Inspetor Ingravallo, possuidor de maior instrução, devido a seu cargo, expressa-se em italiano com cruzamentos de molisano (nasceu em Abbruzzi-Molise), romano e napolitano, conforme a situação e seu estado emocional.

Gadda deseja demonstrar que a língua, manifestação mais completa do ser humano, não pode ser sempre a mesma, visto que acompanha mudanças individuais e sociais . Assim sendo, somos portadores de “linguagens” que variam de acordo com os diferentes aspectos da comunicação : “É óbvio, para mim, que a língua em uso não pode representar todos os campos da conversação humana.” (Gadda: 1958)

O uso simultâneo de linguagens de várias regiões e de vários extratos sociais, misturadas a palavras de uso incomum, reforçam a ironia e o sarcasmo e caracterizam uma rebelião de conteúdo e de estilo. A partir disto, como se deve colocar o tradutor, diante deste duplo Pasticciaccio?

“Quanno me chiammeno!...Già. Si me chiammeno a me...può stà ssicure ch’è nu guaio: quacche gliuommero...de sberretà...”diceva, contaminando napolitano, molisano, e italiano.” (Ital. dialetal + italiano standard, p. 5)

A tradução aqui comentada optou por transcrever, em português, todas as falas dos personagens, sem utilizar nenhum artifício de equivalência que caracterizasse a incorreção lingüística ou as variantes dialetais expressas no original italiano:

“Quando me chamam!... Pois é. Se chamam a mim...pode estar certo de que é uma embrulhada: algum rolo...para desatar...” dizia, contaminando napolitano, molisano e italiano.” (Trad. p. 19)

Se o significado do texto original em estudo se amplia pela articulação de diversos níveis de linguagem, a tradução só seria efetivamente possível se fosse mantida esta metodologia de significação, que caracteriza predominantemente a intenção do escritor.

Sabemos que cada linguagem se encontra enraizada em uma cultura específica , representada por expressões que ocorrem de forma mais ampla e outras que são específicas de uma certa cultura ou área geográfica. Portanto, o reconhecimento das bases culturais de um texto, assim como dos mecanismos que o constituem - cotextuais (internos ao texto) e contextuais (ligados à realidade extralingüística) são indispensáveis à compreensão de seus significados, e à manutenção de sua autenticidade.

Tratando-se especificamente do processo de tradução destas diversas realidades lingüísticas, não podendo haver equivalência perfeita em todos os níveis, seria perfeitamente válido, embora bastante trabalhoso, utilizar empréstimos, decalques, neologismos, transposições semânticas e/ou notas esclarecedoras por parte dos tradutores.

“O trabalho do tradutor exige forçosamente que ele alcance o significado da mensagem na língua original para transportá-lo depois à língua para qual traduz: pois não se pode certamente traduzir sem compreender.”(Mounin : 25)

A dificuldade de seguir o caminho de uma interpretação completa está no fato de que nem tudo é expresso pela linguagem discursiva, pois certos dados têm a função de remeter a informações pré-estabelecidas.

Não se deve ficar atento somente ao jogo lingüístico, para que o intercâmbio não seja nulo; é necessário levar-se em conta a meta-comunicação, na qual o dado lingüístico representa, de qualquer forma, unicamente o suporte. (Arcaini : 1991, p. 45)

Apresenta-se, então, uma dupla exigência ao tradutor: construir o sentido baseado nos elementos explícitos no enunciado (análise interna) e recolocá-lo em uma rede de relações ligada a referências extra-lingüísticas, pois a atividade discursiva está imersa nas circunstâncias e nos ambientes de produção, ou seja, em um sistema de relações pré-constituídas. Portanto, circunstâncias e situações podem em grande parte ser reconstruídas inferencialmente, através dos indícios lingüísticos e dos conhecimentos prévios do mundo narrado, já que de alguma maneira, o autor “data” o seu texto (Arcaini: 1991, p.47), que, obedecendo a nuances de estilo e de intenção, revela geralmente uma situação sócio-histórica.

Na tradução comentada aqui, a passagem a uma unicidade de formas de expressão em português significou falsear a realidade do contexto, diante das dificuldades de transpor a diversidade lingüística entre culturas e, neste caso, dentro de um mesmo espaço geográfico-textual.

Não sendo a língua um todo homogêneo, quando nos encontramos diante de um texto, deparamos com o problema de saber tratá-lo sem que haja ruptura em relação às fontes de produção. Mantendo-se as relações entre língua e cultura, e os reflexos do mundo sobre os fatos da língua, cujas marcas reveladoras estão no corpus, por exemplo, nos códigos diversos, nos níveis variados de língua, nas diferentes funções sociais dos signos, nos dialetos e nos registros, respeitamos o caráter heterogêneo dos aspectos da comunicação :“E se fica obrigado a admitir que nem o lingüístico nem o cultural podem ser estabelecidos como sistemas coerentes que obedeçam a regras rigorosas.(Arcaini: 1991, p.39)

Na realidade da Via Merulana, uma palavra não é fenômeno único de um estado social determinado, já que pode ser utilizada indiferentemente em diversos níveis; mas como indício fundamental, ligada a um conjunto, define melhor as condições contextuais nas quais se vem elaborando a mensagem (Roma, cidade de tradição histórica ao lado da multiplicidade sociolingüística). A palavra, assim concebida, é um topos importante para sair-se da análise interna e inferir-se as condições históricas da produção, passando-se, assim, da estrutura à estruturação.

A língua italiana, como sistema múltiplo (língua/dialetos) , coloca em evidência um ou outro elemento, como reflexo da situação global na qual se manifesta. O leitor-tradutor-pesquisador deve colher não só o que lhe vem oferecido claramente pelo sistema, mas o sentido da intenção do texto. Observados os fatos em sua existência quantitativa, uma primeira operação consiste em analisá-los, evidenciando suas relações internas. A partir daí, outras relações são gradativamente percebidas, levando lenta e continuadamente ao entendimento das operações do sujeito operador (Arcaini : 1991, p.27), o autor do texto (Gadda), estando neste processo o prazer da pesquisa, o exame de algo que não está explícito no enunciado, e que Arcaini chama tecitura intencional.

Esta expressão - tecitura intencional - tem, segundo Arcaini (1991 : 44), o sentido preciso de finalidade geral da comunicação, para além da organização léxico-semântica do enunciado e que se infere a partir dele próprio , segundo uma determinada metodologia.

Neste jogo narrativo de constantes e variáveis, alguns campos foram privilegiados (nomes próprios, gírias, palavrões), assim como efetivos indícios de delimitação espaço-temporal (recorrência de determinadas formas dialetais), através dos quais é possível precisar o papel dos participantes (personagens) no jogo de interação do enunciado, sob o plano lingüístico, histórico e social. O campo de significação se define então como uma rede de relações não obrigatoriamente fechadas.

Em uma primeira fase, durante a análise lingüística do corpus, deve ocorrer um movimento de vai-e-vem, entre o pesquisador-tradutor e o autor do texto, que inclui a suposição de evidências, a partir da intuição do leitor-tradutor e a elaboração de equivalências, a partir das quais pode realizar-se uma transposição preliminar. É nesta primeira fase do trabalho de tradução, ou seja, neste contato íntimo autor/leitor-pesquisador-tradutor que se tornam explícitas as ambigüidades e divergências, os contornos e as nuances que poderão vir a ser a primeira barreira a transpor diante da muitas vezes temida tecitura intencional.

Na realidade não existe correspondência especular entre estruturas lingüísticas e estruturas sociais. Há, eventualmente, uma certa definição geral dos níveis lingüístico-sócio-culturais, mas sobretudo cruzamentos de níveis e interferências de códigos. (Arcaini : 45)

Tendo o autor escolhido determinadas palavras, que às vezes parecem deslocadas no contexto, entende-se que quer dizer alguma coisa a mais, ampliando a força destas palavras dentro do enunciado, inserindo-a em um campo maior de significação . Existe então, sobre a palavra no contexto, alguma coisa que é uma provocação, por efeito de transporte , e que a caracteriza como parte do discurso ou peça do jogo estilístico. Este algo a mais se manifesta através de uma postura lingüística apropriada, aceitando-se que as palavras e suas combinações/denotações/conotações têm desde a origem criadora e/ou re-criadora , e passam a ter no resultado da interpretação, aquele algo mais que as carrega de intenção comunicativa.

Não podemos esquecer que um signo é o reflexo de uma idéia/mensagem da qual se pode desvendar o caminho através de uma série de indícios, ou da ausência deles, e que os indícios podem ter leituras diversas, havendo assim a necessidade de um método de auto e alter-conhecimento que favoreça o processo de interpretação e posterior tradução.

(...) a comunicação tem, na maioria das vezes, uma meta-comunicação tangente que a interpretação argumentativa é incapaz de revelar. É necessário “ler” os argumentos primeiramente não por aquilo que são, mas por aquilo que deverão ser para o receptor. (Arcaini: 51)

O tradutor precisa incluir-se na meta-comunicação, no jogo de indícios intra ou extratextuais , insistindo naquilo que é meta-comunicado, isto é, na intenção tangente, e aceitando misturar-se a este plano.

Se o texto é um conjunto finalizado que revela a tecitura intencional, através das fases de composição, e já que o texto remete ao macro-texto da cultura , o tradutor, aceitando que a argumentação tem uma finalidade própria, independente de interpretações posteriores, precisa manter a relevância daquilo que aparece como mais emergente na análise do texto - a diversidade do repertório lingüístico italiano.

O esforço de reconstrução dos processos de gênese, da essência da mensagem, que o leitor e/ou tradutor, se sabe ler, percebe para além da estrutura lingüística, revela aquele algo mais, elemento de força do discurso, que define o sentido da mensagem e orienta a interpretação.

Em Quer pasticciaccio brutto de Via Merulana não haveria comunicação se não fosse perturbada a ordem léxico-sintático-semântica da descrição, e é neste movimento de desordem inserido na história e no contexto que reside a significação e que se constitui a verdadeira ligação com o mundo referencial, como um documento cristalizado, que é a própria memória vivencial. “A partir do momento em que a mensagem “passa”, o lingüístico revive em sua energia e se torna ativo, com todas as conseqüências.” (Arcaini: 48)

Neste processo, o texto possui um sentido orientado pluri-lateralmente, e não é mais aquilo que se manifesta a partir do enunciado, que parece confuso e polivalente, mas aquilo que aquele enunciado veicula pelos dados adquiridos paralelamente. Desta forma, o texto de chegada terá seu verdadeiro valor se tiver condições, pelo extremo esforço do tradutor, de ser reproduzido mantendo sua finalidade, sua tecitura intencional.

Carlo Emilio Gadda utilizou, na obra em questão, diversos artifícios que representassem com exatidão a complexidade sociolingüística da Itália. Reuniu na mesma rua - Via Merulana - diversas classes sociais e níveis de instrução, como em uma amostra de laboratório, na tentativa de provar, pelos contrastes e convivências lingüísticas, uma realidade complexa e ao mesmo tempo apaixonante.

Na sucessão dos diálogos que acompanham o enredo policial, intercala dialetos e língua culta, gírias e palavrões, como signos espaço-temporais de profunda significação. As variantes lingüísticas são a representação máxima de caracterização histórica e social, sendo portanto indispensáveis ao corpus narrativo. A dificuldade de transposição desta caracterização para outra língua pode ser amenizada pelo maior esforço em explicitar a mensagem, tentando jogos lingüísticos equivalentes na língua de chegada (português): mudanças de estrutura, aliterações, onomatopéias aproximadas, síncopes, apócopes etc.

Na falta de outros mecanismos, a transcrição na forma original (dialetos, neologismos etc.) pode vir acompanhada de notas elucidativas que, além da explicação, coloquem o leitor a par das dificuldades encontradas para a tradução, o que se torna também uma oportunidade de maior compreensão do contexto extratextual de produção.

O método escolhido pelos tradutores em questão anulou, de forma radical, o jogo lingüístico desenvolvido por Gadda, ocultando do leitor a situação de coexistência natural língua-dialeto, dado de caracterização espacial da Via Merulana, micro-cosmo simbólico da Itália como um todo.

Se existe, como acreditamos, no início da comunicação escrita, uma intenção que se articula segundo um esquema, se desenha com precisão e rigor e se origina do universo referencial, o intercâmbio autor/leitor-tradutor é algo mais que um comportamento indicado pelos fatos: é preciso superar os fatos para re-encontrar a estrutura subjacente de forma a constituir na língua de chegada, a intenção e a mensagem.

 

BIBLIOGRAFIA

APEL, F. Il manuale del traduttore letterario. Milão : Guerini Ed., 1993.

ARCAINI, E. Analisi linguistica e traduzione. Bolonha : Pàtron, 1991.

BARILLI, R. La neovanguardia italiana. Il Mulino, 1995, p.99-101.

GADDA, C. E. Quer Pasticciaccio Brutto de Via Merulana. Itália : Garzanti, 1991.

---. Aquela confusão louca da Via Merulana. Trad. de Aurora F. Bernardini e Homero F. de Andrade. Rio de Janeiro : Record, 1982.

MOUNIN, G. Les problèmes théoriques de la traduction. Paris : Gallinard, 1963.