Ada Negri e a sobredeterminação em sua obra

a agressão das palavras

Leda Papaleo Ruffo (UFRJ)

 

Introdução

A escritora nasceu em Lodi em 1870, cidade da província de Milão, na margem direita do rio Adda, cidade afeita aos laticínios e que conservou sinais evidentes de prosperidade: o “Duomo”, a igreja de S. Francisco, a de São Lourenço, o Templo de Nossa Senhora... o Castelo. Ada, porém, de família humilde, era filha da porteira de um edifício (“palazzo”). Conseguiu, com muita dificuldade o diploma de professora primária e formou-se em Letras. A sua obra segue ritmo do seu “espaço”, de caráter autobiográfico. Em 1940, foi escolhida membro da “Academia d’Italia”, o que gerou muitos comentários, já que foi a primeira mulher escolhida para fazer parte de tão ilustre casa. Eram momentos de aflição e dor, pois a ditadura e a figura de Mussolini causavam, por suas contradições, um medo enorme em toda a Itália.

Em 1976, durante minha estada de pesquisa na Itália, visitando várias livrarias, procurei seus livros, e ninguém sabia dizer-me quem era Ada Negri, ou fugiam às perguntas que eu fazia. Sua prosa também me atraía, porque agressiva, por ser espelho de seu mundo. Sua “novella” - ou melhor, seu conto - intitulada “Il posto dei vecchi” foi o início do desafio que eu tinha de atingir.

Há muitos anos, ao tempo em que eu era ainda aluna da antiga Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, lendo Ada Negri, que então me parecera suavizar as agruras que nos impõe a vida, eu me propus trazê-la ao conhecimento dos colegas e alunos, estudiosos de Literatura, na procura dos descaminhos do texto poético. O texto de Ada estruturava-se na sua “prece” permanente e na sua angustiada “primavera”. Para mim, havia somente o canto (prece) e o encanto (primavera). Naquela ocasião a autora completou a fantasia da jovem que eu era. O tempo passou.... A fantasia vestiu-se mais sobriamente. Logo me permiti sentir na “primevera” constante de Ada Negri, a dor de quem de costa dramaticamente para a morte, (Giuseppe Ungaretti), embora entoe hinos de glória à vida. A coragem que me parecera plataforma para vencer o medo, na estruturação de quem procura: “Casa possono le sofferenze. Le tristezze, le fatiche? .... Se... Domani è primavera? (... De nada podem os sofrimentos, a tristeza, o cansaço... Se... amanhã é primavera”?).

Ao reler a obra A poética do espaço, de Gaston Bachelard, na terceira parte da Introdução, verifico não poder parar, porque algo de dúbio me atraía, e muito diriam os versos e a prosa de Ada Negri. O espaço físico era motivo de angústia. A instabilidade, as mudanças, o homem deslocado que já não tem morada. A mulher sofrida, de aparente análise impressionista, na doçura de suas palavras trazia uma explosão agressiva, “a agressão das palavras”, como eu me propus pesquisar em sua obra. A sobredeterminação em sua poesia era uma carga dramática que seu “espaço” sofrera desde a infância. No estudo comparativo de seus versos, onde as estações se amalgamavam na primavera.

 

A sobredeterminação na obra de Ada Negri

Não nos importa saber de onde veio a chamada de Ada Negri à Literatura. Todavia, sentimos nela a força do chamamento em cada palavra, em cada verso, em cada vírgula. De onde tenha vindo, o apelo é caracterizado como fruto do amor humano, cheio de religiosidade, poesia que nos redime e nos faz sentir que Deus perdoará a quem tiver amado muito. Esse amor é derramado, é fuga e auto-afirmação: é procura.

Os caminhos que percorrem nosso mundo, são muitos, a estrada é longa e difícil em sua efemeridade, há um drama de possibilidade (Primavera) desembocado não na possibilidade trágica (“Preghiera”). Nessa última se estrutura a sua prosa.

Não podemos ignorar o peso histórico, que se abateu em uma mulher do povo e que viveu muito e atravessou o século. Na proximidade dos problemas espirituais e sociais há toda a dinâmica determinada de uma mulher aflita, cheia de Deus e procurando-o, através das “sorelle” (irmãs), como ela designava as mulheres sofridas. A sobredeterminação em sua obra, porque “Figlia dell’umilda stamberga” (filha de pobre porteira) fazia com que ela não sorrisse “scetica” (cética) e indiferente à pobreza que a oprimia. Era, ao mesmo tempo, a Valquíria e a Cigana no jogo prece e primavera: “Il nostro cuore si stringe al primo momento, ma poi s’allarga, gonfio di commozione e d’ammirazione” (o nosso coração se aperta no primeiro momento, mas, depois cresce, cheio de comoção e admiração). Sem falar em momentos líricos, sua prosa era a estrutura de suas possibilidades.

Parece-nos, ao primeiro contato de Ada, estarmos sempre à superfície dos problemas, como se esses sendo seus, pertencessem às irmãs do mundo inteiro. As possibilidades imputavam-lhe forças, diziam-lhe “Abbi forza di fare ritorno” (tem coragem para retornar). Retornar é uma constante em sua “primavera”: “invece, e donde ignori, e da qual bocca, una voce ti chiama alla campagna” (no entanto, de onde ignoras e de qual boca, uma voz te chama ao campo).

Toda a beleza do chamamento da primavera está comprometida com a efemeridade da vida, ou melhor, com a problemática social. O céu diz: “eccomi, guarda me: vuoi venire a passegio con me?” (Eis-me aqui, olha-me: queres passear comigo?)

Quando menina, num dia lindo ela nos diz: “Le par giorno di festa, perché i gigli sono fioriti. Le par d’essere in chiesa, e l’aroma che respira le ricorda la santa comunione. Tende le mani come per pregare...” (Parece-lhe um dia de festa, porque os lírios estão floridos. Parece-lhe estar na Igreja, e o aroma que respira ercorda a santa comunhão. Estende as mãos para orar). Quando em se encontrar, surge uma voz da janela: “la rauca voce della signora: - Ei, là, dico. Non si toccano i fiori, guai a te se ti prendi un giglio! (Ei, as flores não podem ser tocadas, ai de ti se colhes um lírio). A pobre menina não queria quebrar aquele encanto. Haverá sempre uma voz para mpedi-la de ser feliz (impossibilidade). Amar a beleza seria pecado? Nessa passagem toda a problemática do drama que envolve a literatura de Ada, sentida através da tensão estruturada num país onde a primavera é sempre esperada, mesmo quando estamos nela.

A luta de Ada está no desabafo de quem está condenado por quem a acordou.

E faz belíssima aproximação dos dois estágios : “pallidi compagni, il dolor vecchio e il nuovo”. (pálidos companheiros, a dor antiga e a nova”). E na medida de nosso compromisso com a vida, o pathos.

 

A narrativa de Ada Negri, apresentação

A agressão das palavras e Il posto dei vecchi

A narrativa nos apresenta um mundo difícil do início do século ( ed. em 1917), quando a problemátidfa social já se agravava no período da primeira guerra mundial (1914-1918). Eram momentos de grande tensão. O amanhã, que é sempre uma incógnita, tinha o sabor amargo da resposta à pergunta - “para onde vamos? “. A intabilidade do momento e a necessidade de preservação da espécie movimentavam o homem, em nome do resultado de uma luta inglória pela sobrevivência terrena. O personagem Feliciana (até o nome à maneira de Machado de Assis) adquiriru uma filosofia prórpia de vida e após a morte esperada e desejada do marido (Chi è inutile è dannoso, e chi è dannoso deve morire”), (Quem é inútil é prejudicial, e quem é prejudicial deve morrer) lançou-se à luta. Tinha dois filhos menores e não podia continuar fazendo enxovais, por que era um trabalho incerto e esporádico. Recorreu a um conhecimento antigo e, assim, entrou para uma Oficina de Lanefício. O seu frágil aspecto não diria a força da mulherzinha... “La donnina che gli stava davanti aveva, infatti, l’aspetto minusculo. Ma lo fissava con gli occhi lucenti di fosforo e energia; gli parlava con una bocca tagliatta drita sopra il mento sporgente(p.4) “A mulherzinha que estava diante dele, tinha, na verdade, o aspecto minúsculo. Mas fixava-o com olhos brilhantes de fósforo e energia; falava-lhe com uma grande boca, rasgada reta sobre o queixo saliente”. E essa mulherzinha, “piccolo organismo d’acciaio, nel quale ogni molla era al proprio osto, ogni rotella funzionava a tempo: Macchina di fattura perfetta” (p.4); “pequeno organismo de aço, no qual cada mola estava no lugar, cada roldana funzionava em tempo: máquina construída perfeitamente”. Em pouco tempo, era chefe de equipe e se alegrava com o trabalho, com o ordenado fixo, embora baixo, porque era mulher. Todavia ela sabia que os tempos eram difíceis. Conseguia alimentar os filhos e fazia-os estudar. Tudo dentro das possibilidades... Essa mulher, que se sintonizava com cada peça da maquinaria, tinha seus pobres e parcos momentos de lazer: “sul balcone della sua unica stanza fioriva un geranio scarlatto, che ella inaffiava alle conque del mattino, prima di partire per l’ufficio e salutava la sera con dolci e gaie parole quasi fosse la sua terza creatura; “na sacada de seu único cômodo florescia um gerânio escarlate, o qual ela regava, às cinco da manhã, antes de ir para o trabalho, e saudava, à noite, com doces e alegres palavras, como se fosse o seu terceiro filho. A flor, naturalmente, era fuga às máquinas com as quais ela se completava para a sobrevivência”. Estávamos na época do futurismo, onde as máquinas funcionavam, tentando destruir no homem aquela humanidade que faz parte de sua estrutura emocional.

Os filhos cresciam e o tempo, inexorável, permitia os vôos rasantes de Feliciana: o descanso em companhia dos filhos. Chegou a velhice, Mas Feliciana prosseguiu... Trabalhava sempre, na procura de sua eterna primavera, porém... “più rapida il mattino, più lenta la sera” (p.6); “ mais rápida pela mnhã e mais lenta à tarde”. E ela prosseguia, quando uma dor ciática, prostou-a em uma cama e “Feliciana abdicò”; Colocou-se nas mãos dos filhos, “adesso tocca a voi” (p.6); “agora é a vez de vocês. O primog6enito Francesco quis ficar com a mãe. Moravam na mesma casa de três cômodos: o filho, a nora e ela. Seu quarto era reversível, dentro da época de pobreza. Dormia na cozinha e a sala de jantar era, ao mesmo tempo, sala de costura e banheiro, à noite. O bloqueio de um anates mais feliz, fê-la uma pobre mulher de coração apertado e ela fugia do ambiente mal cheiroso e angustiado. Pensava no seu vaso de gerânio escarlate, no lar, onde ela criara os filhos. Chegou a hora deperceber que estava em ambiente estranho, no qual nem o filho era o mesmo. Ajudava no que podia e não fazia mais porque já havia perdido o jeito. Restava-lhe a esperança de que outro filho a quisesse e Leonardo lhe escreveu dizendo: “pazienza mammetta! Presto vivrai con voi” (paciência mamãezinha, logo viverás conosco). Esse nós já lhe dizia que também seu filho já se havia casado. Pensou, preocupada, na sorte daquele futuro poeta, casado com uma professora primária... A netinha Titti completava catorze meses e tinha necessidade dela. Feliciana foi embora sem amargor da casa de Francisco. Na nova casa, reencontrou-se, porque a menina a solicitava. Voltou ao passado, quando criara os filhos. Pôde até colocar alguns vasos de poantas na para-peito da janela: “aveva posto qualche vaso di cinerarie e di garofano sul davanzale della finestra””... Dizia Feliciana... “il Signore era giusto” (o Senhor era justo). Todavia vieram mais dois filhos Toto e Bebè. A nora enfraquecida, ficou com os nervos à flor da pela: “a trentacingue anni era irriconoscibile vittima d’una di quelle forme di squilibrio che l’infermità dell’usotero ingenera in tante disgraziate (“aos trinta e cinco anos estava irreconhecível, vítima de uma forma de desequilíbrio gerada por uma doença do útero que costuma fazer tantas infelizes”).

Sua vida já não era boa, entre gritos de crianças e pancada da mãe enferma, essa atmosfer era ainda esmagada pelo sofrimento do filho, cheio de responsabilidades.

Feliciana achava que a morte a havia esquecido. Tinha de seu somente a cama e um cabide. A pequena casa tornara-se ainda mais pequena, como se faltasse até o ar necessário. As crianças que tinham necessidade de brincas, apertavam-lhe o cerco à volta: comia agora, sozinha, em uma vasilha própria, sopa de leite e caldo., embora com a idade tivesse desejo de carne e legumes.

Ela, também, era inútil e “chi è inutile è dannoso, e chi è dannoso deve morire”. O mundo volta ou dá voltas e assim a morte veio, tranqüila. Seu enterro foi um acontecimento dominical, onde não faltaram as palavras ao pé do túmulo, o cortejo e “os rostos de circunstância”. “Il funerale riusci magnifico, tanto più che era domenica: gran numero di operai, camerati di Francesco, lo seguiva, con viso di circostanza, feltro nero e cravatta rossa, (o funeral foi magnífico, ainda mais que era domingo: grande número de operários, [...] di Francisco, seguiam-no com rostos de circunstância, .... negro e gravata vermelha.

 

Bibliografia

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo : Martins Fontes, 1993.

JOLLES, André. Formas simples. Trad. Álvaro Cabral, São Paulo : Cultrix, 1976.

KAFKA, Franz. A colônia penal. São Paulo, 1965.

LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro : José Olímpio, 1976.

NEGRI, Ada. Prose. Verona Mondadori, [s.d.].