FILOLOGIA JURÍDICA: O PRINCÍPIO DA SIMPLICIDADE

E O ACESSO À JUSTIÇA NOS JUIZADOS ESPECIAIS

Antonio do Passo Cabral (UERJ)

 

Filologia do Direito

Toda ciência exprime-se através de uma linguagem peculiar. Essa afirmação vem sendo abordada, modernamente, no sentido de pregar que a ciência, ontologicamente, seria a própria linguagem, porque nesta “se expressam os dados e valores comunicáveis”. Abstraindo a relação existente entre ciência e linguagem, basta, para os objetivos do presente trabalho, que reste assente que para cada braço da atividade científico-intelectual, há uma linguagem correspondente. Ademais, no campo das ciências humanas, e, em especial, do Direito, linguagem significa vocabulário específico, ou seja, a existência de termos técnicos para delimitar as características de institutos jurídicos destinados a compreender as situações fáticas que a realidade social apresenta. Esse vernáculo particular à ciência do Direito pode-se denominar terminologia jurídica.

O Direito é ciência eminentemente verbal. O uso da palavra, escrita ou oral, é fundamental em todas as profissões jurídicas, pelo que não podem os vocábulos legais serem utilizados fora de seus significados técnicos. Propriedade é propriedade. Posse é posse. Usucapião é usucapião. Assim já doutrinava San Tiago Dantas, asseverando que a linguagem é base do raciocínio jurídico, como o cálculo pode ser a base do raciocínio matemático, como o desenho é o pilar comunicativo do arquiteto.

Com efeito, em diversos momentos de sua atuação profissional, o profissional do direito, seja juiz, promotor, advogado, delegado de polícia, ou estudante, depara-se com situações em que deve fazer uso das palavras para desempenhar suas funções com presteza: quando escreve uma petição, quando interpreta uma lei, quando produz suas alegações oralmente em juízo, sempre está em contato com o vocabulário jurídico e deverá lançar mão dos termos científicos adequados para atingir os objetivos a que visa.

De fato, a interpretação é a primeira grande implicação da linguagem no Direito, a partir do momento em que o intérprete da norma jurídica, através de processo lógico, extrai das regras e princípios seu verdadeiro alcance e significado. A lei expressa, em palavras, o comando normativo que busca regular a vida em sociedade e as relações humanas. Assim, a extensão de sua aplicação e a compreensão de seu conteúdo são atividades hermenêuticas primaciais ao operador do Direito. Ademais, cabe ressaltar que o método de hermenêutica literal ou gramatical é apontado por todos os especialiastas como a primeiro a ser adotado ao interpretar-se uma norma jurídica, pelo que se nota, de plano, a interdisciplinariedade existente entre a Filologia e o Direito.

Por outro lado, ultrapassada a fase de exegese das normas, o operador do Direito deve dirigir-se ao Poder Judiciário. Impera, portanto, que as pessoas que procurem a solução judicial para seus conflitos de interesses, o façam auxiliadas por profissional habilitado, que foi preparado para conhecer o intrincado “javanês” jurídico e os meandros procedimentais do sistema judicial pátrio. Esta é a principal razão para que seja privilégio dos advogados, bacharéis em Direito, a capacidade postulatória, ou seja, o direito de dirigir petições ao Estado e falar em nome das partes no processo. Vale dizer que o cidadão, em regra, não pode ir a juízo sem a assistência do advogado.

Inevitável pareceria, portanto, que se escapasse ao denominado conceitualismo jurídico, que representa o purismo dos conceitos no âmbito da ciência do Direito (embora escapando da conotação extremista que a doutrina alemã conferiu a esta noção, entre nós abrandada), ante a necessidade de que o indivíduo que teve seus direitos lesados faça-se representar, em juízo, por profissional especializado. No entanto, a regra em relação à capacidade postulatória comporta algumas exceções, como veremos a seguir.

 

O acesso à Justiça

O Direito Processual Civil, ramo do Direito que se preocupa com a relação que se forma entre os litigantes judiciais, modernamente, abraçou preocupações com o denominado acesso à Justiça, expressão que ficou consagrada após notável obra do processualista italiano Mauro Cappelletti, que identificou os problemas, através de pesquisa em diversos países, e formulou soluções para as deficiências do processo e dos procedimentos adotados na solução judicial dos conflitos de interesses.

Como corolário deste movimento, procuraram as reformas legislativas brasileiras dos últimos anos possibilitar a todos o acesso ao Judiciário, mesmo aos mais pobres, em tentativa de popularizar o processo, fugindo à máxima platônica de que a Justiça é a vontade e conveniência do mais forte.

Movimentos legiferantes ocasionaram diversas alterações legislativas na seara do Direito Processual nas últimas décadas e se iniciaram com a lei que garantiu a assistência judiciária gratuita a todos aqueles que necessitem ajuizar ações e não possuam recursos para pagar custas processuais e honorários advocatícios.

Todavia, essa medida, posto que louvável, não foi suficiente para assegurar o amplo acesso à Justiça ante a lentidão e burocracia procedimental que envenenam a boa prestação jurisdicional. Os indivíduos não se valiam das vias judiciais, mesmo gratuitamente, por causa da infeliz certeza de lentidão na solução das controvérsias, o que gerava um enorme descrédito para o Judiciário e suas instituições. Necessitava-se algo mais. Fazia-se necessária uma mudança que encorajasse qualquer cidadão a “bater às portas da Justiça”, convicto de que seria recebido e protegido pela ordem jurídica. Era preciso aproximar a jurisdição dos homens.

Destarte, os mais recentes diplomas processuais legais excepcionaram a regra da exclusividade da capacidade postulatória nas mãos da categoria profissional dos advogados e estabeleceram casos em que qualquer pessoa possa litigar e se dirigir ao Estado-juiz direta e pessoalmente, sem necessidade de assistência por advogado. Tal medida vai ao encontro do movimento do acesso à Justiça e visa a fomentar a tutela de todos os interesses juridicamente protegidos, e não somente prestar Justiça àqueles mais abastados, que possam arcar, economicamente, com as despesas decorrentes da contratação de advogados. Assim ocorre nos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (antigamente conhecidos como Juizados de Pequenas Causas) e também na Justiça do Trabalho.

Tal modificação simplificadora da forma de postulação em juízo foi muito criticada em doutrina, por diversos fundamentos. De fato, o tecnicismo judicial a que nos referimos anteriormente (e que reclama atuação técnica) é agravado pela inflação legislativa que se observa no Brasil, a qual torna quase impossível, até mesmo para os especialistas, conhecerem a legislação em sua inteireza, quanto mais a um leigo, desprovido de conhecimentos técnicos acerca do tema.

Por outro lado, e entrando até mesmo no campo da Psicologia do Direito, a parte que postula sem advogado pode ser levada pela paixão na defesa de seu próprio direito, enquanto o advogado, representante profissional, estaria mais apto para avaliar o caso e se utilizar da melhor estratégia e dos melhores argumentos, ponderando com maior isenção sobre a causa e as possibilidades legais de seu cliente.

Ademais, a parte sem auxílio do advogado poderia ser prejudicada no seu direito de ampla defesa, restando em posição de desvantagem em relação ao adversário na lide, o que seria indesejável, em virtude da necessária igualdade dos litigantes face à Justiça.

No entanto, tais críticas caem por terra quando se tem em mente que ao juiz cabe manter, no processo, o princípio da isonomia, velando não só pela igualdade formal - tratar igualmente os iguais - como também no seu aspecto material, ou seja, tratar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam, na clássica definição de RUI BARBOSA.

A própria lei dos Juizados Especiais estatui que o juiz poderá aconselhar a parte das conveniências do patrocínio por advogado (art.9º§2º). Além disso, os poderes instrutórios do juiz permitem-no agir, mantendo sua posição eqüidistante das partes, ou seja, sem abrir mão de sua imparcialidade, para que não se observe desigualdade no processo. Fala-se, metaforicamente, em paridade de “armas” no processo. E cabe ao magistrado a prudência para enxergar as deficiências de uma parte e as suprir dentro dos ditames legais.

 

A linguagem e os Juizados Especiais cíveis

Os Juizados Especiais e seu procedimento são regidos pelos princípios da oralidade, celeridade, informalidade, conciliação, simplicidade entre outros, conforme o exposto no art.2º da lei que os disciplina. De fato, o legislador procurou, primordialmente, desburocratizar o procedimento, tornando-o mais rápido e informal.

Todavia, não nos parece que a correta dimensão do princípio da simplicidade está sendo enxergada por todos os autores que trataram a matéria. E nos parece que a questão encontra-se visceralmente ligada à semântica.

Ocorre que muitos juristas identificam, ou aproximam demasiadamente, os princípios da informalidade e da simplicidade. Entretanto, cabe salientar que informalidade significa negação da forma, evitando-se procedimentos desnecessariamente longos e com apego a formalidades despiciendas. Com efeito, o princípio da simplicidade possui uma faceta procedimental, o que, no particular, o aproxima do princípio da informalidade. Mas, de forma alguma, afiguram-se-nos como dois preceitos idênticos, até porque se o fossem, desnecessária seria também a inclusão de ambos no texto legal. Logo, a simplicidade não diz respeito tão somente ao procedimento, mas é imperativo que se observe também em relação ao vernáculo utilizado nos Juizados Especiais.

Primeiramente, se o próprio legislador permite que pessoas leigas, comumente humildes e de instrução limitada, possam, sem qualquer representante técnico, dirigir-se ao Estado-juiz, impende que o princípio da simplicidade atue viabilizando que tais pessoas sejam capazes de compreender os termos daquilo que estão sendo acusadas, os limites do que devem pagar, as conseqüências de seus atos, as razões do magistrado ao decidir, enfim, de maneira geral, todas as palavras adotadas nas petições, de modo que possam exercer, com amplitude, seu direito de ampla defesa e contraditório, com a magnitude que a Constituição da República de 1988 os consagrou. Assim, parte da doutrina processual moderna visualizou, desta forma, nova aplicação do princípio da simplicidade, para atingir também a linguagem utilizada nos Juizados Especiais.

Ressalte-se, outrossim, que a lei dos Juizados Especiais admite que a parte compareça pessoalmente à secretaria do juízo e formule, oralmente, seu pedido, narrando os fatos aos servidores públicos encarregados que deverão registrá-lo, transcrevendo-o “de forma simples e em linguagem acessível”. Através de interpretação sistemática desta disposição legal, pode-se afirmar que a todos os atos deste procedimento especial deverá ser aplicada a regra da simplicidade de vocabulário.

Essa é a concepção do princípio da simplicidade conjugada com os modernos ditames do devido processo legal e do acesso à Justiça, no sentido de adequar a terminologia jurídica à condição peculiar de cada pessoa que procura o Judiciário, seu grau de instrução e formação cultural. Esta é a interpretação que se deve fazer do dispositivo que consagra a simplicidade como um dos princípios norteadores dos Juizados Especiais. Ademais, há, em Direito, regra de exegese que prega que, na aplicação da lei, o juiz deve atentar para sua finalidade social, o que corrobora, ainda mais, a tese ora esposada.

 

Aplicações específicas do princípio da simplicidade

A primeira das aplicações práticas dessa formulação do princípio da simplicidade dá-se nas decisões judiciais. A própria lei dos Juizados Especiais, em relação à sentença, dispensa o relatório, estabelecendo um norte para o julgador, que deverá prolatar decisão concisa, em patente intuito de abreviar o procedimento. Mas também a linguagem da fundamentação das decisões deverá ser simplificada. Em seu aspecto técnico, os fundamentos do decisum têm a função de permitir o controle da sentença pelos órgãos jurisdicionais recursais (instâncias superiores) e de fornecer às partes matéria-prima para a interposição de seus recursos com correção.

Mas a motivação tem outros escopos que não este. Em seu escopo social, a fundamentação atua como pacificador social, eis que as partes também devem reconhecer a justiça da decisão proferida. Resta neste ponto o caráter pedagógico do processo, de harmonização social dos conflitos.

DINAMARCO prega que as sentenças nos Juizados Especiais devem ser objetivas e proferidas “despojadas de mostras de erudição”. Essa assertiva explica-se pelo fato de que as partes são destinatárias da prestação jurisdicional e devem entender os motivos que levaram o julgador a decidir de uma ou outra forma não só para que, no plano psicológico, convençam-se da justiça da decisão, como também para que possam interpor, adequadamente, seus recursos e impugnações.

Outra observação cotidiana do princípio, na concepção segundo a qual o abordamos no presente estudo, é a atuação que se espera do magistrado quando uma petição ou ato processual estiver transcrito em complicado jargão jurídico. Nesses casos, não raros na vivência diária dos Juizados Especiais, se a parte a que couber o exercício do contraditório, manifestando-se sobre os termos técnicos, estiver desacompanhada de advogado, o juiz deverá determinar que a linguagem seja simplificada, ou que haja explicações para os vocábulos apontados como de difícil compreensão para o leigo. O magistrado atuante nos Juizados Especiais deve estabelecer verdadeiro diálogo entre as partes e com elas, atentando, sempre, para o princípio da simplicidade.

 

Conclusão

O acesso à Justiça não significa mera possibilidade de alcançar as vias judiciais. Sua concepção deve ir além, para conceder aos indivíduos reais oportunidades de contraditar as alegações do adversário, produzir seus próprios argumentos, entender a fundamentação das decisões, tudo dentro das suas capacidades intelectuais. O movimento do acesso à Justiça não se pode limitar a popularizar o acesso às vias judiciais e elitizar a prestação e os debates judiciais. Ao contrário, deve tornar também acessível a todos os cidadãos, destinatários dos pronunciamentos do Judiciário, o exercício do seu direito de defesa e a exata compreensão das peculiaridades legais dos litígios levados a juízo.

Conceitualismo jurídico e purismo terminológico deve ser exigido dos técnicos e dispensado dos leigos. Victor Hugo dizia que “a palavra, como se sabe, é um ser vivo”. E os homens, usuários da palavra, devem-se sintonizar com a conjuntura social do seu país (e dos “seres vivos” que nele habitam) e perceber que a erudição não é a regra em uma sociedade tão desigual como a nossa. Dessa forma, poderá ser observada uma Filologia do Direito libertária e transformadora da realidade social.

 

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