ITALO SVEVO E A ESCRITURA DO “EU”

Anamaria Vieira Magalhães (UFRJ)

 

A literatura italiana, desde seus primórdios, teve a característica de criar figuras ou temas emblemáticos que, mais tarde, foram reelaborados por outras literaturas. Vale dizer que esta literatura é, ainda, um exemplo para outras, ou melhor um exemplo que pode ser seguido. A Itália é o berço da cultura Ocidental, do triunfo da arte sobre a natureza, ou melhor, o seu inconsciente é o seu passado. Sendo este país o berço da latinidade, foi com certas reticências que absorveu as novas teorias psicanalíticas que surgiram no início do século XX. A primeira razão que podemos apontar para esta não-absorção é o mito-latino, o qual não podia ser deixado de lado ou esquecido. A segunda razão leva-nos às conseqüências da Segunda Grande Guerra Mundial, dentre elas o antigermanismo. Segismundo Freud, figura máxima dos estudos relacionados à mente, tinha suas raízes no mundo germânico.

Enquanto, de um lado, os filósofos e críticos não absorviam as novas teorias surgidas a partir dos estudos freudianos, pois estavam, ainda, muito arraigados ao mito latino, por outro lado os poetas e escritores italianos foram os primeiros a fazê-lo. Aceitar as novas teorias significaria aceitar a transformação do mito (Itália grandiosa). A latinidade foi, sem dúvida, um obstáculo para que as idéias de Freud fossem aceitas na Itália. Outro fator de resistência foi devido à influência do médico Cesare Lombroso que seguia a corrente do positivismo - na Itália. Dessa forma, tinha um tipo de análise com um ponto de vista anatômico (técnico), físico-químico. Ao contrário de Freud que partia da experimentação.

Este trabalho tem como objetivo evidenciar a influência freudiana na literatura italiana do início do século XX, tendo como corpus para demonstração desse estudo alguns trechos da narrativa de Italo Svevo (1861-1928), considerado o precursor da narrativa psicológica italiana. A presente leitura dará destaque aos elementos psicanalíticos e autobiográficos que nortearão toda a obra poética do escritor triestino.

Italo Svevo é o pseudônimo de Ettore Schmitz, nascido em 19 de dezembro de 1861 na cidade de Trieste (norte da Itália) e morto em 1928 num acidente automobilístico em Treviso. Sua infância foi feliz na casa paterna, pois o pai era um judeu comerciante de posses. Aos doze anos de idade começou sua formação não só italiana, mas também européia, indo estudar junto com os irmãos na Baviera, onde deveria preparar-se para a carreira que o pai havia escolhido, a de comerciante. Logo aprendeu a língua alemã, tendo contato com os grandes clássicos europeus e alemães, bem como os estudiosos da época: Freud e Schopenhauer.

Quando voltou a Trieste aos dezessete anos, freqüentou o Instituto Superior de Comércio. Nesta época o jovem Italo concluiu que não havia nascido para o comércio, mas devido à falência dos negócios do pai, foi trabalhar num estabelecimento financeiro. Este emprego é importante na vida do escritor, pois sua experiência com os negócios bancários é facilmente observada no decorrer de sua literatura que é considerada autobiográfica. Permaneceu durante muito tempo como empregado bancário, saindo somente desta atividade quando se casou com Livia Veneziani, filha de um industrial. Após o casamento foi trabalhar nos negócios do sogro, tendo oportunidade de viajar constantemente para o exterior, intensificando assim, seu contato com a cultura européia.

Além das influências alemãs registramos na obra sveviana a presença dos veristas italianos, dos narradores franceses como Balzac, Maupassant e Flaubert, além de sua grande amizade com James Joyce. Sob o pseudônimo de Italo Svevo esconde-se o judeu italiano Ettore Schmitz que em 1880 publicou seu primeiro artigo literário no L’indipendente. Svevo não teve uma formação literária regular, mas conheceu bem os clássicos italianos e europeus. Em 1906 em Trieste teve contato o escritor irlandês James Joyce que inclusive ministrou aulas de inglês ao jovem escritor, do qual se tornou grande amigo.

Dentre as muitas influências apreendidas no texto sveviano, notamos alguns resíduos de presença positivista através de Darwin, com a sua teoria da evolução da espécie, seleção natural que se processa pela sobrevivência do mais forte, a adaptação ao ambiente e a incidência da hereditariedade. Mas a presença que se faz mais marcante na obra de Svevo é a psicanálise freudiana, que lhe serviu como um instrumento precioso de trabalho na exploração do inconsciente de seus personagens. Svevo considera a corrente freudiana mais adequada à literatura do que aos próprios doentes. Pessoalmente dizia que as teorias e a terapia aplicada aos doentes deixava-lhe uma impressão de desgosto, quando não o fazia rir. Para Svevo esta doença é uma condição sem a qual não se dá a vida. O estado normal do homem é a doença, por isso observamos tantos personagens svevianos neuróticos, sublinhando, dessa forma, a influência de Nietzche

São evidentes as semelhanças entre a vida e a obra do escritor, pois todo o cenário sveviano é a cidade de Trieste, de onde ele era originário, recebendo uma força descritiva aguda, por causa da capacidade introspectiva e lingüística do escritor. Outra semelhança que podemos apontar é a condição de pequeno burguês. Até os 40 anos ele foi empregado de banco, pois se casou tarde. Seus personagens também são pequeno-burgueses e alguns deles são bancários como Emílio de Senilità (1898). Outro aspecto foi o isolamento cultural em relação à tradição cultural italiana. Ele vivia em uma cidade separada do resto da Itália, mas não estranha à cultura européia. Muitos de seus personagens são literatos e padecem deste isolamento. Outros são originários de Trieste. Os romances Una vita (1892) e Senilità (1898) atuam como uma espécie de ensaio para obra-prima A consciência de Zeno (1923), pois a maioria dos estados psíquicos que encontramos nestes dois livros, estão retratados de forma mais aguda na obra-prima.

Svevo começa escrevendo peças teatrais, pois entendia a literatura como glória, com o teatro sonha conseguir um rápido sucesso, que só veio através dos romances. A peça teatral Atto único foi escrita em dialeto triestino e Terzetto spezzato, onde o habitual triângulo marido-mulher-amante já se faz notar em suas projeções psicológicas. Vê na figura da mulher a mãe freudiana e no amante a sexualidade que será adequadamente desenvolvida na sua obra-prima.

A literatura de Svevo segue uma linha que irá acentuar a prática instrumental do “escrever”. É uma relação da própria literatura com os aspectos íntimos da vida. Existem referências ao processo de formação da genial máscara de Zeno (personagem de La Coscienza di Zeno). Estas referências podem voltar-se para uma reconsideração do primeiro e originário autobiografismo sveviano, sobre o qual a crítica reservou um tratamento mais apressado, se não redutivo. A questão que podemos retomar não é mais aquela dos personagens romanescos (Alfonso, Emilio, etc) vistos como contrafiguras daquele único indivíduo psicológico Svevo/Schmitz. Estes personagens fazem parte de uma categoria de narrativa autobiográfica, na medida em que são figuras ficcionais das quais o leitor pode suspeitar das semelhanças que acredita descobrir entre o autor e o personagem, enquanto , muitas vezes, o próprio autor nega esta identidade, ou ao menos não afirma que este aspecto se realize. Assim definido, o romance autobiográfico compreende, também, contos pessoais (identidade entre narrador e personagem) e contos impessoais (personagens indicados na terceira pessoa). Podemos observar, então, a autobiografia na obra sveviana com relação ao conteúdo.

Existe uma escritura memorial que é metade autobiográfica e metade jornal íntimo. Não se trata de fazer da psicologia ou melhor da psicanálise do sujeito-autor uma âncora da obra sveviana. Mas existe, inegavelmente, um jogo ritual que confirma um prazer ou uma felicidade da explícita conotação sexual que sempre estará presente na obra poética do autor. Svevo parece seguir uma fórmula original, densa e sintética do discurso que leva a uma reflexão autocrítica, um interesse especulativo, o jogo ainda não padronizado da análise. Existe uma forma rudimentar no diário que tem correspondência nos contos, como por exemplo Una lotta, La tribu e também em L’Assassinio di via Belpoggio. É uma prática produtora de esquemas repetidos e, no teatro, uma pesquisa também ingênua de efeito dramático, onde existe a âncora de provocação das idéias, inclinadas a delinear o décor burguês dos desempenhos e dos comportamentos.

A instância de representação de si mesmo para Ettore Scmitz-escritor não se encontra num trabalho de acúmulo analítico, mas na dimensão de um verdadeiro e próprio jornal. Muitos olhares complexos surgem da exibição de si mesmo que Schmitz/Svevo é chamado a fornecer ao público-leitor em uma linha incerta dos confins entre: a verdade irrelata, as sombras interiores do tédio e da dor e o exercício laborioso das fantasias. Os temas são muito conhecidos: o ciúme irracional, a indiferença pela vida, uma inveterada atitude que ofusca a sinceridade dos sentimentos, o remorso pela ironia amarga da palavra e ainda as enervantes desconfianças por cada gesto e um desamor constante. O pacto autobiográfico está na afirmação desta identidade do texto, que em última instância remete ao nome do autor na capa do livro. Philippe Lejeune afirma que:

Le forme del patto autobiografico sono molto diverse: ma tutte manifestano l’intenzione di onorare la propria firma. Il lettore potrà cavillare sulle rassomiglianze, ma mai sull’identità. Si sa fin troppo bene quanto ognuno tenga al proprio nome.

As formas do pacto autobiográficos são muito diversificadas: mas todas manifestam a intenção de honrar o próprio nome. O leitor poderá enganar-se sobre as semelhanças, mas nunca sobre a identidade.. Sabe-se o quanto cada um preza o próprio nome.

Uma função autobiográfica pode ser exata, quando o personagem de uma história, assemelha-se com o autor; e inexata, quando o personagem se apresenta diferente do autor. Mas esta é uma questão complexa, pois quem julgará esta semelhança/diferença?

A influência do Decadentismo italiano se faz presente através das tramas amorosas contidas em seus romances, sempre tendo como base o tormento da razão e o próprio sentido da vida. A relação ética que mantém com Livia Veneziani, proporciona a sua vocação institucional, ao mesmo tempo estabelecendo a ambigüidade sobre o questionamento a respeito de sua liberdade. Este ponto sobre a questão amorosa já é suficiente para demonstrar os profundos estratos da cultura filosófica sveviana e para evidenciar nessa combinação os elementos decadentistas de final de século. Os pensamentos polêmicos e as reflexões sobre a instituição matrimonial, sobretudo no livro A Consciência de Zeno , convergem para as doutrinas de Kierkegaard e Schopenhauer, demonstrando mais uma vez o lado europeu da cultura de Italo Svevo. Juntamente com este tipo de argumento notamos a presença de uma escrita destinada a preservar o tom confessional e diarístico:

Ma esso [il mio desiderio di Carla] ingrandì costantemente. Già conoscevo quella fanciulla molto meglio che non quando le avevo stretta la mano per congedarmi da lei. Ricordavo specialmente quella treccia nera che copriva il suo collo niveo e che sarebbe staro necessario di allontanare col naso per arrivare a baciare la pelle ch’essa celava.

Mas este [o meu desejo por Carla] aumentou constantemente. Já conhecia aquela moça muito melhor do que quando tinha apertado sua mão para despedir-me dela. Recordavo especialmente aquela trança negra que cobria o seu pescoço branco e que seria necessário afastar com o nariz para chegar a beijar a pele que ela ocultava.

No pequeno trecho acima observamos a tendência à análise, juntamente com a confissão das pulsões obscuras e tormentosas que povoam a mente do personagem Zeno acrescentando-se também, a obsessão pelo fumo: Ma invece continuai a meditare e a fumare ... (Mas, ao contrário, continuei a meditar e a fumar) A figura tanto da esposa, quanto da amante fazem parte de núcleos muitos densos do imaginário do autor, trabalhado juntamente com filosofias e ideologias de proveniência já conhecida (Bebel e Ibsen) . A personagem Augusta representa o que Livia Veneziani é enquando mulher-esposa., na sua serena adaptação a papéis e lugares impostos pelas convenções da vida social. Este procedimento na mente de Svevo se faz necessário a fim de que o distanciamento/aprofundamento da matéria autobiográfica fique presente na obra. Trata-se de lugares svevianos mentais muito freqüentados pelo autor, relatando, dessa forma a pseudo-autobiografia com algumas inovações.

O que resulta mais evidente e mais óbvio é que os detalhes da crônica familiar tornam possível estabelecer o pacto de cumplicidade numa complexa narrativa autobiográfica.

Insomma mia moglie, i miei suoceri, le cugine, i cugini dicono ch’io sono un buon marito e il peggio si è che quando me lo dicono io non mi adiro.

Em suma, minha mulher, meus sogros, minhas primas e primos dizem que sou um bom marido e o pior é que quando me dizem eu não me encolerizo.

Freqüentes sinais de tensão, de incongruência, de equívoco dissemina Svevo-Zeno no território da esposa. Não há alternativa para o tortuoso e penoso caminho da consciência, para o qual todos os sujeitos confluem. É no interior deste universo poluído que encontramos um forte traço do processo autobiográfico, isto é, na confissão dos vícios mais privados. E não há dúvida de que Svevo trouxe para sua obra poética elementos heterogêneos de sua tumultuada formação, juntamente com uma incessante necessidade da busca pela normalidade. Este caminho, observado desde os primórdios de sua narrativa tem como base a reflexão e a análise interior que muitas vezes estão contidas na configuração de temas como: virtude/vício, verdade/falsidade, patrão/empregado, ativo/passivo. Assim, fazem emergir toda uma gama de relações, papéis, tipos codificados e legitimados por sociologias e ideologias dominantes.

O tema da procriação, serve como exemplo de abordagem de assuntos complexos. O retorno aos sonhos infantis frustrados é uma prova incontestável das virtudes e das culpas transmitidas, revelação dos sinais profundos que estão contidos na luta pelo dia a dia, funcionando, ainda, como um estranho princípio de estranhamento pela própria vida.

A relação entre biografia e literatura surge desde o início do século XX como base, muitas vezes, do instável e precário sistema de formas, de linguagens e de gêneros, caracterizando o complexo problema da topicidade dos atos psíquicos e de uma incerta definibilidade do “eu” como instância coerente na organização de um novo sistema de cultura.

O caminho empreendido por Svevo para explorar a consciência o consagra como autor, o “eu”autorizado e, também, o autor encontra-se no âmago da sua parábola analítica. A solução autobiográfica surge, neste ponto, como uma translúcida operação de mimesis: nem verdade, nem ficção, mas aparência próxima da realidade e simulação mínima da ficção, com um uso da máscara do personagem e uma estruturação de planos do texto simplesmente virtual e, em um certo sentido combinatório.

Poderíamos concluir que para Svevo não só a autobiografia, mas o próprio romance autobiográfico evidencia uma medida rígida e impraticável da escritura: a constituição dinamicamente irresoluta do eu-narrador não lhe consente conclusões ultimativas de si mesmo. Após a morte de Svevo, Livia Veneziani empenhou-se na publicação de Vita di mio marito. Mas esta tentativa de reordenar e recapitular este especial laço conjugal foi vã, contribuindo, dessa forma, para o crescimento e fascínio que a literatura de Italo Svevo suscita nas gerações que se sucedem.

 

BIBLIOGRAFIA

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GUGLIELMINO, Salvatore. Guida al Novecento. Milano : Principato editore Milano, 1975.

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