O REFLEXO DA MEMÓRIA SOCIAL NA TOPONÍMIA:

O ESPONTÂNEO E O POPULAR.

Zara Peixoto Vieira (USP)

 

Parte dos aspectos toponímicos discutidos neste artigo integram minha dissertação de mestrado que, como objeto de estudo, analisou a micro-toponímia do município de Socorro, estado de São Paulo. O projeto original buscou subsídios metodológicos no ATESP.

A Toponímia é uma das disciplinas que integram a ciência Lingüística por investigar o léxico toponímico considerando-o expressão lingüístico-social que reflete aspectos culturais de um núcleo humano existente ou preexistente; propõe o resgate da atitude do homem diante do meio, através do estudo da motivação dos nomes próprios de lugares.

As pesquisas toponímicas desenvolvem-se em uma linha documental ou de campo e seguem o método onomasiológico em que o dado selecionado é observado, registrado, classificado, analisado e interpretado de acordo com a identificação dos fatores determinantes à configuração do corpus.

Os topônimos, de acordo com sua natureza, podem ser levantados em pesquisa documental, ou ainda pesquisa de campo, se necessário o levantamento de dados específicos, não documentados oficialmente.

As nomeações paralelas, aqui analisadas, foram encontradas em livros de memória, diários particulares e entrevistas com antigos moradores. Mostram-se presentes apenas no cotidiano popular e são desprezadas pela administração pública que não atentando ao seu valor cultural, não as registra.

A toponímia paralela, constantemente, sofre a ameaça de desaparecimento pelo desuso com o distanciamento temporal das razões motivadoras do signo toponímico, que permanecem apenas na memória de alguns de seus usuários. Isso se justifica pois o signo toponímico nem sempre é transparente a todos, especialmente quando se trata de topônimos paralelos que atendem a um grupo específico de usuários, como será discutido posteriormente.

Extraídos originalmente de uma língua viva, os topônimos são enunciados lingüísticos, formados por um universo transparente significante, passam pelo crivo de um denominador, que os seleciona e interpreta de acordo com seus conceitos, valores, intenções, códigos e usos convencionais que representam também os do seu grupo, a fim de tornar o termo escolhido um possível referente para o receptor. "... como diz FOUCAULT (1995: 153), quase "uma linguagem segunda a partir dessa linguagem primeira'". (DICK, 1998: 101).

Os topônimos paralelos, portanto, necessitam de registros e receberam atenção especial neste artigo por trazerem em suas formas, inúmeras vezes, evidências claras do cotidiano, tornando-se valiosos fundos de memória social.

Os topônimos, na qualidade de designações dos espaços por meio de nomes próprios, fazem parte da onomástica, subcomponente da figurativização. Juntamente com os antropônimos e os cronônimos, permite uma ancoragem histórica que visa a constituir o simulacro de um referente externo e a produzir o efeito de sentido 'realidade'. (GREIMAS, 1989: 464).

A toponímia paralela tem, como característica principal, sua existência não oficial. Seu caráter espontâneo colocado no signo toponímico, torna-o de fácil aceitação.

De uso social mais restrito, por se tratar de signos sem registro, os topônimos paralelos são enunciados que caracterizam melhor a visão de mundo de seus usuários, e por isso, atendem apenas a pequenas comunidades.

Ressalte-se que, as chamadas pequenas comunidades, não significam exatamente um número restrito de usuários. Quando se pensa em toponímia paralela, pensa-se também em um fenômeno capaz de "padronizar" um comportamento lingüístico social, sem que o mesmo tenha sido trabalhado para isso. Até mesmo nas metrópoles há ocorrências de toponímia paralela, dentro de um segmento social, e, nesse caso, o fenômeno atende a milhares de usuários.

O signo paralelo é, com maior frequência, um símbolo transparente, caso contrário, seria difícil resistir à passagem do tempo ou atender a um grupo um pouco mais numeroso, como é o caso de alguns topônimos existentes.

Quando esta pesquisa foi iniciada, no município de Socorro, acreditava-se que os topônimos paralelos eram em maior número. Levantou-se apenas doze nomes. Após o levantamento de todo o corpus, pôde-se perceber que algumas das ocorrências, embora apresentem uso concomitante com outros topônimos, são, na verdade, os antigos topônimos espontâneos e populares, também presentes em outros locais do país.

Esses são os casos da rua do Comércio, rua Direita e praça da Matriz que, oficiosos no século XIX, ainda se mantêm no elenco toponímico ativo.

O fato denota o grau de representatividade desses designativos que, presentes em muitas cidades, são espontâneos e comportam-se como topônimos perenes e gerais às comunidades.

Utilizá-los, portanto, como exemplo de toponímia paralela é não aceitar que existe algo ainda mais paralelo e espontâneo que esses nomes, e que caminha marginal à toponímia oficial, sem jamais ter sido oficioso como os anteriores.

Contudo, negar sua existência paralela, é também ignorar um fato social de incrível relevância - a força da ação e da memória popular.

Chega-se, então, à grande causa da permanência da toponímia popular e paralela - a memória social.

Observa-se no elenco da toponímia paralela de Socorro, a ocorrência de três topônimos paralelos para um mesmo lugar: "rua da cueca engomada", "rua do pito-aceso" , e "rua do vira-pinico".

O fato social, que envolve as três denominações, é o meretrício.

Sendo, o meretrício, atividade condenada pela igreja, pela lei ordinária dos homens e conseqüentemente pela sociedade, a região do meretrício é a mais nomeada, indireta e analogicamente, podendo-se até considerar suas nomeações como um código, semi--secreto, que atende a um grupo restrito - o masculino. Prova da intenção desse código é que, ainda hoje, tantos anos após a recuperação social da rua, muitas senhoras da cidade desconhecem alguns desses denominativos vulgares. Dick, em seus trabalhos, chama-as de nomeações popularescas.

O mais popular, dentre eles, é o "vira-pinico", provavelmente por se tratar de enunciado de alerta (de higiene) a toda a comunidade, não parece ter sido criado com a intenção de ser código restrito. Pelo contrário, toda comunidade sabe de sua existência ainda hoje e, provavelmente pelo caráter pitoresco de seu nome, é um dos raros casos em que se percebe a extensão de um nome popularesco para áreas vizinhas. Observou-se que, o que era uma rua, para os jovens socorrenses de hoje parece estar se tornando um quadrilátero. Apenas o tempo precisará se essa expansão será fixada ou se, a tempo, as gerações anteriores, farão a correção da localização exata do topônimo.

A motivação do designativo, apesar de mostrar-se transparente, também é desconhecida em detalhes, desta vez não só pelos jovens, mas também por alguns cidadãos antigos que, mostrando-se à parte daquela realidade, demonstram deter o conhecimento da ação "vira-pinico", mas não da sua motivação "o porquê do vira-pinico".

A história, resgatada pela memória oral de informantes, conta que o nome originou-se do hábito de as meretrizes jogarem o conteúdo de seus pinicos pelas janelas, para não precisarem sair de seus quartos. Segundo contam, todos sabiam do perigo de se passar naquela rua, quem passava ali, passava "bem longe", enfatizou, certa vez, um informante.

O enunciado "vira-pinico" não contém nenhum juízo de valor moral. Seu teor semântico indica atividade humana, falta de medidas sanitárias. Pode ser considerado também como um alerta àqueles que tinham o hábito de andar nos passeios públicos, distraidamente.

Os tempos mudaram e a região central, urbana, expandiu-se. Hoje o "vira-pinico" está tão próximo à prefeitura e à matriz que é difícil imaginar que, um dia, a rua abrigou atividades escusas.

O uso do denominativo é concomitante à nomeação oficial, rua Cap. Roque de Oliveira Dorta, nome do "fundador da cidade".

Os outros dois designativos para esse mesmo logradouro ("pito aceso" e principalmente "cueca engomada"), foram de uso quase que exclusivamente masculino, pelo teor de sua enunciação. Nesses enunciados, percebe-se a malícia do discurso sugerido e a euforia existente no lugar, conotada pelos adjetivos expressos nas nomeações.

Assim como as denominações da rua do meretrício remontam ao início do século, a rua da Palha data da mesma época. Esse nome, também muito freqüente em outros municípios, foi encontrado apenas nos registros de memória da cidade. Considera-se, rua da Palha, denominativo paralelo por jamais ter sido citado nos documentos pesquisados no século passado, o que indica que a denominação apareceu após 1890, época em que a mesma rua foi nomeada como rua Mal. Floriano Peixoto, citada em inventários, anteriormente, como "rua do(s) Carvalho(s)" .

Apenas a algumas quadras dali, está o logradouro que abriga a maior parte das atividades comerciais e financeiras e, naturalmente, é de grande importância à comunidade. Seu nome, totalmente transparente, indica sua motivação: rua Principal.

A rua do Cemitério , também, é topônimo transparente, portanto, indicativo do referencial presente, o cemitério da cidade. Enunciado completo, convive também, como em outros lugares, com a denominação oficial por ser indicativo preciso e claro a qualquer usuário do nome.

A presença do referencial, e sua importância social, são elementos decisivos à permanência da toponímia paralela, visto que, sem registros, conta apenas com a memória popular. Este fato é comprovado pela constatação da existência, por volta do início do século XX, da "rua da caixa d'água", situada atrás da cadeia velha, portanto, de uso paralelo ao topônimo (oficioso) rua Boa Vista. A rua aparece em alguns relatos de memória antigos (livros e diários), e hoje, poucos sabem de sua antiga existência e localização, visto que o referencial não está mais presente.

"Juncal" e "Cafundó" são denominativos paralelos que, como a Rua da Palha, quase já não são conhecidos. Esses topônimos fazem parte da memória de alguns cidadãos antigos, e raros são os descendentes que os conhecem. Nas entrevistas gravadas com o informante, A.O.S., ambos os topônimos foram mencionados como local de lavouras trabalhadas por italianos: "...em Juncal, a família Montini e em Cafundó, os Reginato e Beneduzzi". Apesar desses nomes estarem ainda tão vivos na memória desse informante, seus descendentes já não sabem precisar suas localizações, embora tenham certeza de sua antiga existência.

"Cafundó", africanismo deixado na toponímia socorrense, é um vestígio raro da presença do negro no município que não demonstra, sequer no tipo físico do homem da roça, ou ainda, da cidade, qualquer marca desse povo no município.

Constata-se, com este pequeno corpus estudado, que a toponímia paralela registra a memória social, sem qualquer cunho ideológico. Enquanto seu significante for representativo à realidade, ele permanece, como uma tradição (lingüística) não oficial; quando se tornar opaco, perder-se-á no tempo, juntamente com a memória daqueles que o detiveram.

Evidenciaram-se, nesta pesquisa, algumas peculiaridades nos topônimos paralelos que serão classificados como: paralelos originais, paralelos oficiosos, paralelos ex-oficiais e paralelos correlatos.

Consideram-se topônimos paralelos originais aqueles que, espontaneamente, são criados pelos usuários por não lhes ter sido oferecido uma denominação oficial. Aqui se inserem todos os primeiros denominativos, encontrados em núcleos humanos, que expressam a visão do denominador e sua relação com o referente e permanecem mesmo após a nomeação oficial.

Verifica-se, com o mesmo corpus, que os topônimos paralelos originais podem vir a ser reconhecidos oficiosamente, como no caso da rua Direita, rua do Comércio e praça da Matriz, que aparecem em documentos oficiais sem jamais terem tido seus nomes reconhecidos pela administração pública, responsável pela oficialização dos nomes. Esses serão considerados paralelos oficiosos. Os topônimos paralelos oficiosos podem, porém, tornar-se oficiais, como aconteceu na cidade de São Paulo, onde o poder público oficializou o nome rua Direita, reconhecendo nela a tradição do enunciado lingüístico que sugere "caminho direto de um ponto a outro", no caso de São Paulo, "caminho direto da Sé ao Anhangabau".

Observa-se também na categoria dos topônimos paralelos , alguns que se tornam paralelos devido a substituição de seus nomes, anteriormente oficializados, por um outro novo. Esses serão chamados de paralelos ex-oficiais. A possibilidade do antigo topônimo tornar-se paralelo existe, não só pela tradição de uso mas também pela transparência semântica do nome anterior. Retirado também da cidade de São Paulo, toma-se como exemplo o topônimo, rodovia dos Trabalhadores, que hoje permanece paralelo ao novo nome: rodovia Ayrton Sena. Apesar de não ter sido observado esse caso específico em Socorro, observou-se o mesmo caso com topônimos oficiosos que, substituídos por outros, permanecem ainda hoje no elenco toponímico dos falantes. Por esse motivo, buscou-se exemplo na cidade metropolitana de São Paulo, que pelas dimensões e dinamismo, torna-se um campo toponímico muito rico.

Ressalta-se, ainda, a existência de topônimos que já nascem paralelos aos oficiais. Esses serão referidos como topônimos paralelos correlatos pois trazem em seu sema, a relação com o fato social ou físico presente. Esse é o caso das nomeações paralelas criadas para área de meretrício, onde os topônimos indicam direta, ou indiretamente, a atividade humana. Em São Paulo, retiramos como exemplo da correlação do fato físico, o elevado Costa e Silva, viaduto que percorre boa parte da região central da cidade ligando em via expressa regiões distantes e de grande tráfego. Esse viaduto, pelo seu comprimento e traçado sinuoso, recebeu o nome popular de Minhocão, antes mesmo de inaugurado e ter seu nome, "elevado Costa e Silva", oficializado.

O topônimo paralelo é, portanto, um signo escolhido que registra a memória social, sua rotina e sua existência. É, certamente, um dos mais valiosos fundos de memória.

Sabe-se que não foi possível esgotar o assunto pois, apesar de cidade pequena, os estudos toponímicos demandam muito esforço do pesquisador no que diz respeito às investigações, levantamento e análise dos dados que devem ser contextualizados com o auxílio de outros procedimentos e leituras.

Pôde-se perceber, com este estudo, que a Onomástica proporciona, ao pesquisador, alguns recursos que escapam às ciências sociais. Seu principal objeto de estudo, o nome, traz subsídios valiosos ao pesquisador por se tratar de expressão lingüística que, tão bem, reflete o ambiente, seja ele antropo-cultural ou físico.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. A Dinâmica dos nomes na cidade de São Paulo - 1554 / 1897. São Paulo : ANNABLUME, 1997.

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VIEIRA, Zara Peixoto. Estudo Onomástico do Município de Socorro: reconstituição dos antropônimos e da memória da imigração. Dissertação de Mestrado. São Paulo : FFLCH/USP, 2000.