UM MORCEGO SE ENCONTRA COM HOMERO

Thomaz Pereira de Amorim Neto

 

Introdução

Este trabalho pretende analisar três obras comparativamente: duas de Homero - Ilíada e Odisséia - e uma obra que completou dez anos em 1997: Batman - O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller.

Não se pretende, neste trabalho, discutir a questão de história em quadrinhos vista como literatura (sabendo-se que este é o tópico do trabalho: quadrinhos são literatura). Não se irá discutir, também, o caráter de autoria das obras homéricas, neste caso, consideraremos um único autor para as duas obras e o chamaremos de Homero.

O foco deste trabalho está na figura heróica pertencente às três obras acima citadas, pretendemos traçar um paralelo que acabará na afirmação: a literatura se renova, mas, às vezes, utiliza-se das velhas formas para se enriquecer.

 

Pequenas Explicações

Utilizei Batman - O Cavaleiro das Trevas, por motivos simples: o primeiro é que esta é uma Graphic Novel, por isso o que se apresenta é uma abordagem única do personagem, em contraponto das abordagens que são utilizadas na série regular, o que temos é um Batman único; o segundo é a tentativa de aproximar dois mundos tão distintos: a mitologia homérica e o mundo das literaturas de massa, cujo representante maior é o vulgarmente chamado gibi.

 

Características Narrativas

Homero, nas suas duas epopéias, utiliza-se de um narrador onisciente, o que seria inaplicável na obra de Miller, já que se tratam de duas formas de literatura um tanto distintas. Este narrador homérico, além de contar os fatos necessários para a composição do enredo, intercala os fatos com pequenas lendas, mostrando assim todo um imaginário mítico cercando suas histórias. Frank Miller se utiliza de uma forma equivalente para contar sua história. O autor intercala a história principal com pequenas cenas, narrativas que se encaixam no contexto não por onde estão mas pelo que significam (tal qual as lendas que intercalam a Ilíada),estas formam o imaginário vigente em Gotham City.

Ainda falando do narrador, temos na Odisséia, principalmente, porém são encontrados alguns casos na Ilíada, a presença de outros narradores, como por exemplo Ulisses que narra suas aventuras aos feácios. Em Batman - O Cavaleiro das Trevas, temos três narradores básicos, são eles: Batman, Robin e Super-Homem. Diferente das épicas, estes personagens apontam seu ponto de vista, não se interessam somente em narrar feitos, mas os interpretam e, em alguns casos, é daí que se tem o substrato para sua ação posterior.

Na narrativa homérica, há a presença de uma pormenorizada descrição, principalmente em cenas de luta o que causa um certo espanto para nós leitores de um século onde a guerra não é cultuada como símbolo de bravura e honra. Porém, na obra de Frank, temos cenas de caráter violentíssimo, mesmo para os padrões americanos da indústria de quadrinhos. Vejamos duas cenas:

Matou, então, Antinous e Hipeiron, pastor do povo, atingindo um no peito, com a lança de ponta de bronze e ferindo o outro com sua grande espada na clavícula, perto do pescoço e separando o ombro do pescoço e das costas.

 

(Ilíada, livro V, p. 52)

(Batman - O Cavaleiro das Trevas, cap. “O Retorno do Morcego”, p. 33)

 

Nos dois casos temos uma descrição de uma brutal cena, em Homero temos a cena detalhada par dar a noção exata de uma guerra e no caso de Miller temos a união entre palavra e imagem, o que nos dá também a noção da guerra em que Batman se insere.

 

A Questão das Vestes

 

Na Ilíada conta-se a história de Aquiles, que tendo a sua honra ferida por Agamemnon se afasta da guerra. Após várias derrotas perante os troianos, os aqueus se encontram em pleno recuo perto de suas embarcações e Pátroclo, amigo de Aquiles, pede-lhe sua armadura para que possa lutar na guerra. Aquiles entrega-lhe a armadura, Aquiles, aquele que sabe que morrera jovem e com imensa glória. Pátroclo morre nas mãos de Heitor e este veste a armadura do herói. Irado Aquiles pede a sua mãe para que Hefestos faça uma nova armadura de combate, para que o herói possa lutar. Com a armadura pronta, Aquiles enfrenta Heitor e o derrota. Nota-se, nesta epopéia, a figura da armadura sendo o elo narrativo usado por Homero para que Aquiles encontra-se a sua fortuna. A armadura (que, em alguns casos, é considerada a mortalha do herói) recebe a importância de determinar a ordem do destino aos mortais, pois era uma armadura condenada.

Batman - O Cavaleiro das Trevas tem a figura do uniforma do herói como sendo o rito de passagem para esta nova concepção da personagem. Há dez anos sem atuar em Gotham, Bruce Wayne se tornou um verdadeiro playboy, que é atormentado por seu alter ego, mesmo sabendo que se encontra muito velho para este combate. Ele não consegue resistir e retorna a usar o manto do morcego. Utilizando sua antiga roupa, ele continua cometendo os excessos que cometeria se fosse jovem e acaba sendo derrotado. Porém, ao mudar sua vestes, nota-se uma mudança de atuação da personagem, singela mudança, mas importante: ele não comete mais excessos, age com o cérebro e derrota a todos inclusive o Super-Homem, o maior e mais poderoso dos heróis de todos os tempos.

Nos dois casos nota-se que a veste assume o primeiro plano narrativo, é ela que, na mão de seus autores, mudará o encaminhamento da narrativa. Aquiles só volta a lutar porque recebe uma nova veste e Batman se torna mais sábio utilizando uma veste nova.

 

O Auxílio Divino

Homero, nas suas épicas, condiciona a ação de um herói ao deus que lhe protege. O herói mítico é sempre auxiliado por um deus que lhe manda atuar desta ou daquela forma para que seu protegido possa sobreviver às peripécias da ação. Na Odisséia, temos Atená que auxilia Aquiles, o disfarça de velho quando este chega em Ítaca para que possa adentrar sua casa e matar os pretendentes; o auxilia nas terras dos feácios. Atená não auxilia somente Ulisses, mas também Telêmaco, o jovem filho do herói, para que este pudesse viajar e voltar à pátria com os ensinamentos necessários para poder superar os inimigos/pretendentes.

No caso de Batman, que o auxiliaria na luta contra o crime? A resposta não esta em nenhum aliado ou outro herói, já que houve, depois da desistência do homem-morcego, uma sanção presidencial impedindo a atuação de vigilantes no território americano. O único herói que sobreviveu a esta sanção foi o Super-Homem, mesmo porque ele passou a trabalhar para o Estado em missões fora dos EUA. Com a volta de Batman, o único meio de parar a ação das autoridades seria pressioná-las, aí entra o papel da mídia e de Lana Lang. Lana, ao defender a atuação de Batman, consegue o apoio do povo nesta questão, ela freia o processo policial que levaria à prisão do Batman ao máximo e, ao mesmo tempo pressiona o Estado a tomar uma atitude e o que se vê é um total conflito entre poderes, pois nenhum deles quer ser o responsável por uma calamidade pública.

Assim os dois autores articularam, cada um a seu tempo, a questão do auxílio: um divino e o outro “mídiavino”.

 

A Concepção das Personagens

Ilíada e Odisséia nos apresentam heróis como “a representação de seu povo, sua pátria, é a coletividade, é a sociedade do tudo pela nação”. Assim, o herói épico é decidido, voraz e segue a Môira, mesmo que esta seja a sua morte certa. Aquiles sabe que vai morrer e Ulisses sabe que retornará ao lar, e sabe também que deverá passar por imensas tribulações para conseguir chegar.

Batman - O Cavaleiro das Trevas nos mostra um personagem que “não tem conflitos emocionais, nem é amargurado por dúvidas existenciais ou angústias atrozes. Resumindo, não se sente culpado pelo que faz”. Temos aqui um herói decidido sagaz, que gosta do que faz e não mede esforços para isso. Ele chaga até a usar uma menina para lutar ao seu lado (Robin) e, quando esta quase morre, porém é salva pelo herói, este a chama de bom soldado.

Nos dois casos, o herói representa algum tipo de valor nacional: em Homero temos, respectivamente, o ímpeto da juventude e a sabedoria do guerreiro vivido. No caso de Miller temos as duas características na mesma personagem, pois Batman, na primeira fase da obra se iguala a Aquiles, este não estava preocupado com seus compatriotas aqueus e aquele não se preocupava com seu corpo; na segunda se iguala a Aquiles que é o prudente e cheio de ardis tal qual Batman.

 

Fantástico

Nas obras homéricas têm-se todo um mundo fantástico que interage nas lendas e nas aventuras. Temos ciclopes, bruxas, sereias; cada um desses seres representa um âmbito psicológico humano: ciclopes/desobediência, bruxas/paixão, sereias/sedução, etc. Homero traça esses perfis para demonstrar que seus heróis são mais fortes que todas as provações que se colocam contra os mesmos.

Em Batman - O Cavaleiro das Trevas, Frank Miller, se utiliza dos vilões da mesma forma, cada um deles tem um formato doentio da psiquê que formou o Batman antes de sua volta, quando este ainda atuava. Temos a dicotomia Coringa/paixão, este vilão que estava em estado catatônico até a volta do herói. Duas-Caras/dúvida, ele encarna um reflexo distorcido da luta interior de Batman (Bruce x Morcego). Mulher-Gato/decadência, representando a vida de Bruce, os rumos que esta vida estava levando sem as figura do Morcego.

Assim, tanto Homero quanto Miller, formam arquétipos com os quais os heróis de suas histórias interagem.

 

Concluindo

Este trabalho teve a pretensão de comparar dois universos distintos, o mundo homérico e o mundo dos super-heróis, tentando aproximá-los e compará-los. Diferenças existem, mas igualdades também, e este foi o tópico deste trabalho.

Com o fim dele, espero que outras possam surgir da mesma forma para que sempre haja a comunicação entre as literaturas.

 

Bibliografia

REVISTA Principia. Ano 1 número 1. UERJ, Departamento de Letras Clássicas e Orientais, 1997.

REVISTA Wizard. Ano 1, número 8. São Paulo : Globo, 1997.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis : Vozes, volume1, 1998.

GOIDANICH, Hiron Cardoso. Enciclopédia dos Quadrinhos. Porto Alegre : L&PM, 1990.

HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de Literatura Clássica - Grega e Latina (tradução de Mário da Gama Kury). Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1987.

HOMERO. A Ilíada (tradução de Fernando C. de Araújo Gomes). Rio de Janeiro : Ediouro, 1999.

------. A Odisséia (tradução de Fernando C. de Araújo Gomes). Rio de Janeiro : Ediouro, 1999.

MILLER, Frank. Batman - O Cavaleiro das Trevas. São Paulo : Abril, 1985.