ASPECTOS TEATRAIS

NA OBRA POÉTICA DE GREGÓRIO DE MATOS

José Pereira da Silva (UERJ)

 

Começarei minha exposição, lendo o que Adriano Espínola escreveu nos últimos parágrafos do “Prefácio” de seu inteligente trabalho de reinterpretação crítica da obra de Gregório de Matos:

É com a imagem especular/especulativa por trás do poeta - que não deixa por um só instante de olhar fixa e farsescamente para os olhos do espectador/leitor, enquanto desenha várias outras cenas - que tentarei ver/ler a página virada (para nós) de sua obra, sobre a qual projeta a luz ambígua da verdade poética e biográfica. No caso de Gregório de Mattos, a máscara dramática é o espelho em que se realiza o jogo da duplicidade e da representação. Sobretudo em relação às personae biográficas, o licenciado Rabello e o padre Lourenço Ribeiro, vislumbradas aqui na intrigante luz desse espelho ardiloso.

Não foi fácil assumir essa perspectiva na análise da obra movediça do escritor baiano e chegar aos resultados que seguem. Muitas dúvidas, idas e vindas me assaltaram. Tive a impressão, às vezes, de ter entrado em um labirinto ou no meio de uma comédia barroca repleta de falas, ecos e mal-entendidos - um teatro dentro do teatro. Talvez este trabalho pudesse ter o mesmo título da comédia de Lope da Vega, Lo fingido verdadero, ou da de Calderón de la Barca, En la vida todo es verdad y todo mentira. De resto, era gosto da época realizar no palco as artes do engano e os enganos da arte...

(ESPÍNOLA, 27).

Gregório de Matos - é possível sintetizar - faz teatro permanentemente em sua obra poética, criando personagens a partir do real e de sua produtiva imaginação artística.

Devemos acrescentar que a idéia acerca do caráter dramático, teatral, da obra do bardo baiano não é inteiramente nova. Tentaremos, tão-somente, aprofundá-la, dentro de nossos limites, para chegar a alguns resultados que possam contribuir para uma elucidação maior do sentido e do funcionamento de boa parte da poesia atribuída a Gregório de Mattos. (ESPÍNOLA, 30)

Ronaldes de Melo e Souza, em “As Máscaras de Gregório de Matos”, que refletiu demoradamente sobre os originais d’As Artes de Enganar, de Adriano Espínola, na qualidade de examinador de sua tese de doutorado (ao lado de Antônio Carlos Secchin, Domício Proença Filho, José Maurício Gomes de Almeida e Paulo Roberto Pereira), escreve convictamente

que Gregório de Matos se comporta como persona ficta, ostentando várias máscaras, fingindo diversas vozes, representando, enfim, a proliferação indefinida de um ser que não cessa de ser outro. A heterogeneidade radical do poeta se manifesta nas múltiplas vozes (religiosa, erótica, lírica, jocosa, satírica, encomiástica), que presidem à gênese e ao desenvolvimento de sua obra essencialmente dialógica e polifônica. (SOUZA, 15)

E conclui, mais adiante:

A mutação vertiginosa do protagonista da enunciação desautoriza a leitura mais fácil da obra, que consiste em decompor o todo em partes, no ingênuo pressuposto de que cada parte é um texto confinado em si mesmo, determinado por um único tom, seja religioso, erótico, satírico, etc. A ficção teatral do poeta mutante solicita que cada texto seja lido em diálogo com outros textos. Na mascarada gregoriana, todo texto é, na verdade, um intertexto.

Perfeito fingidor, o poeta finge, não somente a sua obra, mas também a sua vida pessoal, de persona convicta. E finge tão completamente, que chega a fingir duas máscaras opostas: uma adjuvante e outra oponente. (SOUZA, 16)

O adjuvante é o Licenciado Rabelo, que redige a biografia de Gregório de Matos e as didascálias que antecedem a cada uma de suas poesias, explicando detalhes minuciosos dos contextos em que o poeta as escreveu.

Analisando essas didascálias, fica evidente que o referido biógrafo “consegue saber tudo acerca do poeta e seu ofício” e isto só pôde acontecer porque, de fato, o Licenciado Rabelo era o próprio Gregório de Matos que ali se apresenta duplamente representado como biógrafo e como biografado.

E é novamente o apresentador da obra referida que nos convence de que Adriano está com a razão. E isto já nos parece claro, antes mesmo de lermos o autor apresentado, dada a segurança com que o afirma Ronaldes:

A validade exegética do argumento se impõe, não só porque determina o nexo literário entre os poemas e a biografia, mas também porque abre uma nova via de acesso ao sentido da obra gregoriana, precisamente ao evidenciar que a didascália do poema funciona como súmula metatextual. Mesmo um poema sacro adquire tonalidade satírica ao ser introduzido pela didascália: “Ao braço do menino Jesus da Sé quando desapareceu do corpo”. O texto tipicamente gregoriano tem de ser lido como intertexto e metatexto. (SOUZA, 17)

Fica mais ou menos claro que o soneto em questão nos transmite a lição de que não é somente o corpo do menino Jesus que não pode ser separado em partes, visto que “a parte o faz todo, sendo parte”. Acredita-se que o poeta nos transmite, neste soneto, uma lição de análise de sua própria obra, ou seja:

Também as partes da obra de Gregório de Mattos - as máscaras, inclusive as biográficas - não podem ser vistas em separado, pois “em qualquer parte sempre fica o todo”. Ao compor um jogo de idas-e-vindas entre elas e o conjunto, o autor mostra que se encontram (as partes e/ou as máscaras) lúdica e dramaticamente interligadas. (ESPÍNOLA, 117)

Eis o soneto:

AO BRAÇO DO MESMO MENINO JESUS QUANDO APPARECEO

 

O todo sem a parte não é todo.

A parte sem o todo não é parte,

Mas se a parte o faz todo, sendo parte,

Não se diga, que é parte, sendo todo.

 

Em todo o Sacramento está Deus todo,

E todo assiste inteiro em qualquer parte,

E feito em partes todo em toda a parte,

Em qualquer parte sempre fica o todo.

 

O braço de Jesus não seja parte,

Pois que feito Jesus em partes todo,

Assiste cada parte em sua parte.

 

Não se sabendo parte deste todo,

Um braço, que lhe acharam, sendo parte,

Nos disse as partes todas deste todo.

(AMADO, 67)

 

No teatro barroco, a mistura dos estilos com características opostas, tais como o erudito versus o popular, o trágico versus o cômico, assim como a encenação de personagens marcados por características antagônicas, constitui a fonte que alimenta a poética de Gregório de Matos, que assim se credencia como um dos maiores poetas barrocos de todo o mundo.

Gregório de Matos se auto-representa de modos diferentes, conforme coloque a máscara religiosa ou a máscara erótica, a máscara ou personificação do adjuvante ou a personificação do oponente.

A máscara religiosa representa uma catolicidade inconsistente do poeta, que “também sabe louvar a Deus e aos Santos” e é colocada no início de sua obra, logo após a “biografia”, na tentativa de salvá-lo da má fama de Boca do Inferno, começando com o soneto À memória do dia de Cinza, no códice preparado pelo “Licenciado Rabelo”:

Que és terra, homem, e em terra hás de tornar-te

Te lembra hoje Deus, por sua Igreja.

De pó te faz espelho, em que se veja

A vil matéria de que quis formar-te.

 

Lembra-te Deus, que és pó para humilhar-te,

E como teu baixel sempre fraqueja

Nos mares da vaidade onde peleja,

Te põe a vista à terra, onde salvar-te.

 

Alerta, alerta, pois que o vento berra

Se assopra a vaidade e incha o pano,

Na proa a terra tens, amaina e ferra:

 

Todo lenho mortal, baixel humano,

Que busca a salvação tome esta terra,

Que a terra de hoje é porto soberano.

(Códice Inocêncio, 58)

 

Fazendo assim, o poeta procura comover o interlocutor com o impacto comunicativo para deixá-lo temeroso e crédulo. A mensagem do texto se torna verossímil e crível e a máscara religiosa de Gregório de Matos, convincente e atuante.

A máscara erótica mostra um poeta que se revela pródigo “na tarefa prazerosa de dedicar o corpo e a pena ao que ele chama de ‘doce emprego’” (ESPÍNOLA, 158), no qual “o erótico dialoga por oposição com o espiritual, no jogo barroco das máscaras.” (ESPÍNOLA, 159). Gregório de Mattos agora é outro. Em tudo oposto ao primeiro. Se este, “aterrorizado pelo silêncio eterno dos espaços infinitos, escrevia sob inspiração religiosa mais alta”, o poeta erótico “se vingava da condição humana com poemas satíricos e obscenos”. (Cf. MARTINS, 1999)

Na quarta décima em que o poeta descreve o “Encontro que teve com huma dama, muy alta, corpolenta, e desengraçada”, podemos encontrar uma síntese dessa poesia erótica de Gregório:

Fodamo-nos, minha vida,

Que estes são os meus intentos,

E deixemos cumprimentos,

Que arto tendes de comprida:

Eu sou da vossa medida,

Se este membro vos emboca,

Creio, que a ambos nos fica

Por baixo crica com crica,

Por cima boca com boca.

(AMADO, 818)

No exame das máscaras biográficas de Gregório de Matos percebe-se que se opõem nas palavras do Licenciado Rabelo e do Frei Lourenço Ribeiro, ora como anjo e herói, ora como demônio e vilão.

Não se pode dizer que uma ou outra é a correta. Na verdade, as duas se complementam.

A persona biográfica adjuvante do Licenciado Rabelo assim inicia a sua “Vida do Doutor Gregorio de Mattos Guerra”:

Abreviarei a vida do excelente poeta lírico, o doutor Gregório de Mattos Guerra, pouco cuidadoso a estendê-la no espaço da eternidade, que lhe franqueou as portas, escrevendo costumes, vida e morte do mestre mais excelente de toda a poesia lírica por especial decreto da natureza. (ESPÍNOLA, 349)

 

A persona biográfica oponente do Frei Lourenço Ribeiro apresenta a face negativa de Gregório, dando-lhe o troco de quantas sátiras fizera a autoridades, padres, fidalgos presumidos, mulatos, comerciantes, a cidade da Bahia, etc., escrevendo dois poemas com 450 versos satíricos contra o Boca do Inferno. O poeta, ao responder-lhe, só escreveu 154 versos, e o tom de sua réplica e de sua tréplica não atingiu o tom de destruição a que chegou seu oponente.

Eis como inicia o Frei Lourenço Ribeiro, parecendo pegar o poeta de surpresa:

Hoje, a musa me provoca

A que bem pelo miúdo

Nada cale e diga tudo

Quanto me vier à boca:

Como digo, hoje me toca

Meter minha colherada,

Que nem sempre ter calada

A boca parece bem:

Mas não o saiba ninguém.

 

Parece que já começo

A dizer alguma cousa,

E para Que o mundo me ouça,

Já mil atenções lhe peço.

................................................

 

Conheça toda a Bahia,

Quem é o sátiro magano,

Que lhe há feito tanto dano

Desonrando-a cada dia:

Pois sem ser de estrebaria,

Mais do que um burro esfaimado,

Se jacta de grão letrado,

Sendo asninho parlafrém:

Mas não o saiba ninguém.

(AMADO, 595)

Depois da réplica de Gregório, Frei Lourenço treplica com mais 28 décimas, cuja primeira assim começa:

Doutor Gregório Guaranha,

Pirata do verso alheio,

Caco, que o mundo tem cheio,

Do que de Quevedo apanha:

Já se conhece a maranha

Das poesias, que vendes

Por tuas, quando as emprendes

Traduzir do Castelhano;

Não te envergonhas, magano?

(AMADO, 603)

Em comunicação oral apresentada no II Congresso Nacional de Lingüística e Filologia, o Prof. Adriano Espínola deixou claro que a técnica da peleja foi praticada, pro Gregório de Matos, neste caso, como uma modalidade de discurso preliminarmente oral, como fica explícito na primeira décima de sua primeira sátira, nas palavras que deixei grifadas.

Como faz também Fernando Pessoa mais tarde, Gregório de Matos converte todo o seu texto num verdadeiro palimpsesto, rasurando seu próprio eu para que assim pudesse fingir os outros eus e, desse modo, sempre escondido por algum tipo de máscara, construir o seu enigma ontológico e filológico.

Enfim, Gregório de Matos, através de sua poesia de técnica barroca, experimentou sua criação artística através de diversos personagens, como numa grande comédia dos costumes baianos e brasileiros de sua época.

 

BIBLIOGRAFIA

AMADO, James (Ed.). Gregório de Matos: obra poética. 3ª ed. Preparação e notas de Emanuel Araújo. [Rio de Janeiro] : Record, [1992], 1333 p. [Em dois tomos, indevidamente denominados volumes].

ESPÍNOLA, Adriano. As artes de enganar: um estudo das máscaras poéticas e biográficas de Gregório de Mattos. [Rio de Janeiro] : Topbooks, [2000], 428 p.

MARTINS, Wilson. O Globo. Rio de Janeiro, 14 de agosto de 1999. Suplemento “Prosa & Verso”, p. 4.

SOUZA, Ronaldes de Melo e. As máscaras de Gregório de Mattos. In ESPÍNOLA, Adriano. As artes de enganar: um estudo das máscaras poéticas e biográficas de Gregório de Mattos. [Rio de Janeiro] : Topbooks, [2000], p. 15-17.

TOPA, Francisco. Edição crítica da obra poética de Gregório de Matos. Dissertação de doutoramento em Literatura Brasileira apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto : Edição do Autor, 1999, 4 vol.