UM PERCURSO DE LEITURA

DA APOLOGIA CONTRA RUFINO, DE SÃO JERÔNIMO

Luís Carlos Lima Carpinetti (UFJF)

 

Introdução

O estudo que ora apresentamos é um ensaio que resulta de leituras diversas e consulta a textos bíblicos e textos teóricos, tendo em vista explorar um fragmento de texto da Apologia contra Rufino, focalizando os comentários nessa obra ao prefácio que São Jerônimo escreveu para outra obra sua, intitulada Comentário sobre Isaías.

A presente comunicação apresenta um percurso de leitura do fragmento citado, o qual se insere no quadro de atividades de elaboração de tese acerca do estilo polêmico de São Jerônimo. As contribuições históricas, as fontes textuais bíblicas, especialmente as do profeta Isaías corroboram para tornar mais compreensível o fragmento em questão e possibilita uma segurança maior quanto às escolhas lexicais e sintáticas para a tradução do texto como um todo.

A Apologia contra Rufino faz parte de um prolongado conflito em que se digladiaram Jerônimo e Rufino, motivados pela publicação de uma tradução da obra de Orígenes intitulada Perì Archon (Tratado dos Princípios), feita por Rufino. Logo em seguida, Jerônimo publica uma resposta à obra de tradução de Rufino, traduzindo a mesma obra de Orígenes. Aconteceu entre os dois uma situação muito constrangedora que consistiu no fato de que Jerônimo causou melindres em Rufino com a publicação da tradução da mesma obra, o Perì Archon. Segundo o próprio Jerônimo, sua obra não continha erros nem de língua, nem falseava as verdadeiras opiniões de Orígenes; já a tradução de Rufino ficou muito mal vista depois da publicação da tradução da mesma obra por Jerônimo. Rufino endereçou a Jerônimo dois livros contendo insinuações e ironias que levaram o título de Apologia contra Jerônimo, acusando-o sutil e indiretamente por meio de elogios. A esta investida de Rufino, Jerônimo responde denunciando a falsidade e acusa Rufino de incriminá-lo de forma cruel, sob a aparência de elogios. A resposta de Jerônimo é sua oportunidade de autodefesa e exposição dos elogios falsos de Rufino. No todo, a obra é instigante, pois apresenta o ser humano buscando a verdade da fé, tentando escapar ao estigma da heresia imputada à obra origeniana, da qual grande parte Jerônimo traduziu. O estilo da obra traz a marca do calor do debate, o tom de total engajamento.

Quando for o momento de falar do fragmento, citá-lo-emos integralmente. Por ora, é importante lembrar por meio de breve relato histórico a personalidade histórica responsável por uma profecia clássica na literatura hebraica, alguém que durante meio século profetizou e viveu durante uma das piores crises que o seu povo enfrentou na Antigüidade.

 

Quem foi o profeta Isaías?

Nós encontramos o profeta Isaías na segunda metade do oitavo século antes da era cristã, época em que o povo hebreu estava politicamente dividido em dois reinos: o do Norte, o reino de Israel, e o do Sul, o reino de Judá. No reino de Judá estão reunidos as tribos de Judá e a de Benjamin e no reino de Israel as dez tribos restantes do antigo grupo das doze tribos que eram descendentes dos doze filhos de Jacó.

Na época à qual nos reportamos, o reino de Israel estava vivendo uma profunda política que era decorrente em grande parte de uma crise religiosa que consistia no afastamento que então se verificava no seio da sociedade hebréia, no reino de Israel em grau mais profundo do que no reino de Judá, um distanciamento do povo com relação à aliança selada por Moisés, a qual impunha um pesado código religioso e moral. Nós temos notícia por meio de Amós dos diversos crimes de Israel no tempo do rei Ozias. Nesse texto, Amós nos dá a conhecer um panorama de todas as transgressões do reino de Israel: as transgressões entre irmãos, entre classes sociais, e entre regiões geográficas diferentes.

No reino do sul, em Judá, a instabilidade é menor, porém não muito menos grave que a situação do Norte. Enquanto no reino do Norte, o rei Menaém já havia pagado tributo a Teglatfalasar, imperador assírio, e desta forma rendia-se ao seu poderio militar e religioso, em épocas posteriores será formada uma coalizão anti-assíria, reunindo forças dos povos ameaçados a oeste pelas invasões imperialistas dos assírios, povos estes a exemplo dos reinos de Israel e Judá que tentavam salvaguardar sua soberania. Cabe citar uma passagem do livro de Oséias em que encontramos menção ao culto aos ídolos em Israel. (Oséias 4, 11-14)

Chamado à missão profética no ano da morte de Ozias, Isaías pairou sobre a cena de sua época durante cinqüenta anos, guiando a nação através de suas horas de tragédia e crise. Embora tudo leve a crer que ele pertencesse à própria corte, sua missão sempre foi censurar a corte e os poderosos com os termos mais severos.

Os homens de seu tempo não acreditavam muito na aliança que Moisés selou com Iahweh e que prescrevia um complexo de leis religiosas e morais, mas davam crédito maior à aliança de Davi com Iahweh, que representa um culto à soberania política dos reinos hebreus. O profeta Isaías, zeloso do projeto religioso e social de que Israel é depositário por obra e graça de Moisés, pretende resgatar a crença nesta aliança e levar Israel a perceber os desregramentos desastrosos dos hebreus.

Isaías articula a crença na pessoa do rei com a aliança de Moisés com Iahweh. Visto que o rei é o sustentáculo das esperanças do povo de Israel, Isaías toma o modelo da aliança de Davi e anuncia que haverá de vir para os hebreus um messias de atributos excelsos, capaz de suportar com paciência o peso dos pecados e dos crimes de seu povo, capaz de trazer para seu povo a realização de todas as aspirações de paz, de relações equilibradas entre os homens e desses com Deus e a criação, coisas que a Aliança de Moisés com Iahweh codificava em sua lei e, como recompensa à fidelidade do povo de Israel à aliança, Iahweh prometia uma vida feliz. Esta articulação teológica é a resposta de Isaías a uma situação presente de crise, de ausência de soberania política, de idolatria e de miséria social de todas as ordens.

 

O prólogo do Comentário

sobre Isaías, de São Jerônimo

Neste prólogo, é necessário assinalar uma citação clássica que bem retrata o trabalho multifacetado de São Jerônimo que é “Ignoratio Scripturarum, ignoratio Christi est” (Ignorar as escrituras é ignorar o Cristo ). Tal fato nos leva a refletir sobre o caráter de texto precursor da profecia de Isaías atribuído pela exegese cristã à pessoa, ministério, vida , paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, quando o texto da profecia de Isaías traça todo o perfil do messias em seu caráter, atitudes , gestos, palavras. Isaías insiste sobre a santidade do Deus de Israel e no pequeno número de pessoas escolhidas que escapariam à corrupção generalizada, aquilo que o profeta chamou de resto de Israel. O retrato desse messias torna-se para os cristãos uma prefiguração da figura do redentor, uma vez que o próprio texto evangélico retoma textos proféticos, em especial de Isaías. Só para recordar, o texto em que, no Evangelho de São Mateus, Jesus cala-se diante de Pilatos. Este texto alude a uma passagem de Isaías que diz: “Foi maltratado, mas livremente humilhou-se e não abriu a boca” (Isaías 53, 7). Neste mesmo prólogo encontramos termos latinos tomados de empréstimo à língua grega: “evangelizantium”(aqueles que trazem boas notícias), termo também de uso corrente no texto grego do Novo Testamento (Migne(1845), p. 18). O texto de São Jerônimo assinala também passagens do profeta Isaías que se referem ao Emanuel que haveria de nascer de uma virgem e realizar obras portentosas e grandes sinais.

Quanto aos mistérios com os quais o profeta se debate e que luta por comunicar à gente de sua época, São Jerônimo realiza uma interpretação alegórica da imagem de um livro selado para aqueles que sabem ler e que o selo lhes impede que o leiam e, de outro lado, um livro sem selo para aqueles que não sabem ler, mas que, por conta dessa ignorância, em vão o livro se lhes é oferecido. Assim, muito belamente, São Jerônimo fala da pregação profética como fala cuja realização de seu conteúdo profundo acha-se obstruído no seio do povo, onde o profeta desejaria tornar profícuo o dinamismo interior da palavra de que é mensageiro.

No término do prólogo, São Jerônimo lembra o esforço e o trabalho que os tradutores gregos tiveram ao transferir o colossal livro de Isaías, e toda a literatura do Antigo Testamento para a língua grega, ressaltando Orígenes, Eusébio, Dídimo e Apolinário.

 

Ataques de Rufino às traduções bíblicas realizadas por Jerônimo

Jerônimo diz, na Apologia contra Rufino, que recebeu uma carta de Eusébio na qual este fala de uma carta que ele crê que tenha sido escrita por Jerônimo, e que, no texto de sua suposta autoria, Jerônimo confessava que fora induzido pelos hebreus a traduzir para o latim os volumes hebraicos e que, ainda mais, confessa que nada há de verdadeiro nesses volumes. Jerônimo confessa que, ao tomar conhecimento desses fatos, fica admirado. Jerônimo tomou conhecimento desses fatos também por meio de outras pessoas que lhe escrevem, além de Eusébio. Jerônimo alude ao costume romano de dar-se crédito a duas ou mais testemunhas que sustentem a mesma posição, nunca a uma só testemunha, por maior credibilidade de que a testemunha possa ser detentora. Nisso, Jerônimo atribui a Rufino o ato de escrever em nome de Jerônimo uma carta contendo as afirmações acima citadas. O texto da carta ficou conhecida nos meios eclesiásticos romanos e Jerônimo reconhece nestas cartas cheias de artifícios o trabalho de imitação do estilo de Jerônimo por parte de seu rival Rufino, embora reconheça que o trabalho de redação das cartas não chega a convencer a quem vá ler, mas que mostra bem o caráter e as artimanhas de Rufino.

Chegam até Jerônimo os comentários de pessoas que leram as cartas forjadas por Rufino e estes comentários consistem em que a intenção de Jerônimo, ao traduzir os textos hebraicos que já contavam com a tradução grega dos Setenta, era condenar o trabalho dos sábios gregos que ficou conhecido como a Bíblia dos setenta. Em qualquer hipótese, quer sejam os textos hebraicos verdadeiros, quer sejam falsos, o trabalho de Rufino estaria sujeito a algum tipo de acusação diante da situação criada por Rufino com as cartas forjadas conforme o estilo de Jerônimo.

Diante desta situação, Jerônimo preocupa-se em demonstrar o seu apreço à tradução grega dos Setenta, salientando o lugar que esta tradução vinha ocupando ao longo de sua vida, desde a mais tenra idade até à sua maturidade, ressaltando as práticas devocionais como a salmodia e as homilias, as citações textuais, tudo extraído da tradução dos Setenta. Jerônimo concede honra à tradução grega dos Setenta e sustenta que sua tradução latina não representaria nenhum demérito à tradução grega. Jerônimo clama por compreensão a seu modo, retratando neste trecho da Apologia a sua posição de isenção em relação ao texto grego dos Setenta, ao propor a versão latina dos livros do Antigo Testamento.

 

O prólogo do Comentário sobre Isaías

na refutação de São Jerônimo

aos ataques de Rufino

O texto do profeta Isaías na tradução grega dos Setenta apresenta, segundo Jerônimo, a totalidade dos mistérios do Cristo e da Igreja e, neste texto profético, Isaías assemelha-se mais a um evangelista que a um profeta. A tradução grega dos Setenta tem para Jerônimo a finalidade de ocultar ao grande público o tesouro da desvelação dos mistérios da fé cristã, sob pena de incorrer na vulgarização de verdades e mistérios essenciais à compreensão da fé e da verdade cristã encerradas no texto profético de Isaías.

E retomando a idéia exposta mais acima acerca da defesa da isenção de julgamento depreciativo da tradução grega dos Setenta por parte de Jerônimo, quando de sua tradução das Escrituras a partir das fontes hebraicas, Jerônimo ressalta a importância da existência da pluralidade de traduções para uma compreensão mais ampla do texto original. E para exemplificar esta idéia, Jerônimo cita o caso de autores cristãos gregos como Teodocião, Símaco e Áquila que apresentam contribuições importantes aos leitores de língua grega na compreensão da Sagrada Escritura. Com isso, torna-se importante para os leitores latinos a tradução para o latim, a qual poderá trazer luzes novas ao texto hebraico e ser uma opção tão válida no que diz respeito à compreensão do texto hebraico quanto a versão grega pode ser. Para finalizar e reforçar a sua posição, Jerônimo aponta a necessidade da existência de várias traduções, argumentando que a compreensão dos livros proféticos demanda ao leitor um grande esforço e um trabalho de paciência e que o resultado a que o tradutor costuma chegar pode parecer irrisório e desprezível aos olhos de quem o recebe, mas normalmente o resultado é fruto de intensa labuta.

 

Conclusão

Como percurso de leitura e como exercício de análise textual, este trabalho representa uma iniciação a temas da literatura profética hebraica, uma visitação a textos clássicos como o livro do profeta Isaías, apesar de Ter usado com parcimônia o recurso a citações de textos bíblicos, pois o interesse maior foi falar de São Jerônimo, na obra Apologia contra Rufino, focalizando o tema da profecia de Isaías. Este trabalho também representou um início de abordagem intertextual da obra Apologia contra Rufino em sua interface com o texto bíblico.

 

Bibliografia

A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo : Paulinas, 1985.

BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo : Paulinas, 1980.

HINNELS, John R. Dicionário das religiões. São Paulo : Cultrix, 1984.

MIGNE, J.-P. Patrologiae cursus completus. Tomo 24. Paris, 1845.

PENNA, Angelo. Isaia. Roma : Marietti, 1964.

SAINT JÉRÔME. Apologie contre Rufin. Introduction, texte critique, Traduction, index par Pierre Lardet. Paris : Cerf, 1983.