A LINGUA PORTUGUESA NO BRASIL

Flora Simonetti Coelho (UERJ)

O português, não só em Portugal e nas suas colônias ou províncias ultramarinas, é falado também no maior dos estados sul-americanos. Mesmo sendo fundamentalmente a mesma, é lógico, todavia, que a língua tenha assumido, desta parte e daquela outra do Atlântico, alguns aspectos peculiares autônomos, sobretudo de ordem fonética e sintática. Tais peculiaridades, mais numerosas no uso popular e nas zonas de nível cultural mais baixo, são, ao contrário, em número limitado no uso corrente das pessoas cultas e na linguagem jornalística para desaparecer, quase completamente, nos livros de ciência, técnica, arte, crítica etc.

Buscaremos, neste apêndice, expor sucintamente os pontos característicos que distinguem o português da América do europeu, desconsiderando unicamente os pontos de ordem lexical: o léxico, sabe-se, é o aspecto da linguagem que mais se ressente das condições ambientais; a diversos sistemas de vida, a uma fauna, a uma flora, a um elemento humano autóctone diferentes, correspondem necessariamente palavras distintas, muitas vezes sem exata correspondência entre si, ou palavras idênticas que no novo ambiente assumiu uma carga semântica nova. A isto se acrescenta a presença, no léxico brasileiro, de um certo número de palavras importadas dos fronteiriços países de língua espanhola e introduzidas pelos imigrantes provenientes dos mais variados países. Finalmente, para algumas palavras técnicas tomadas por empréstimo das línguas mais desenvolvidas em tal setor da atividade humana, o molde lingüístico ou a adaptação fonética do empréstimo realizou-se por uma base diversa para os dois léxicos (cf., por exemplo, o termo brasileiro trem e o termo português comboio, italiano “treno”).

 

PECULIARIDADES FONÉTICAS

A principal característica fonética que destingue um brasileiro de um português é, naturalmente, o ritmo da frase: já foi dito e repetido que os brasileiros pronunciam as palavras muito mais lentamente do que os portugueses, articulando mais claramente as sílabas; G. Daupiás (apud. BOLÉO, p. 22) demonstra o quanto esta opinião é infundada, esclarecendo que aquilo que dá à pronúncia brasileira um aspecto original é a diversidade de colocação do acento na frase, que cai, freqüentemente, sobre uma sílaba átona, prolongando-a e abrindo-a de modo insueto. Donald Pierson e C. Borges Teixeira (apud SILVA NETO, p. 245) afirmam que algumas populações do estado de São Paulo “falam, em geral, com grande velocidade, economizando os movimentos dos lábios.”

Entre as particularidades mais notáveis da pronúncia dos fonemas, recordaremos:

01) as vogais e e o tônicas são freqüentemente pronunciadas fechadas quando a sua pronúncia, em Portugal, é aberta: Antônio [o tônico muito fechado] (Port. António [o tônico aberto], prêmio [e tônico fechado] (Port. Prémio [e tônico aberto] etc.;

02) a vogal o pretônica se pronuncia como o fechado, e não [= u] como em Portugal: Portugal se lê [Portugál] e não [Purtugál], automóvel se lê [automóvel] e não [autumóvel] etc.;

03) e pretônico ou postônico final se pronuncia como [i]: senhora [pron. sinhora], gente [pron. genti], monte [pron. monti], de [pron. di] etc.; quando se encontra em posição pretônica, precedido por nasal, e conserva a sua pronúncia portuguesa: nenhum [pron. nenhum];

04) os ditongos ei e oi, ou se fecham respectivamente em ê e ô: péxe (por peixe), bêjo (por beijo), ôro (por ouro), tesôro (por tesouro) etc. Às vezes do ditongo ei se pronunciam ambos os elementos: em tal caso, porém, o e do ditongo é fechado, enquanto, em Portugal, é aberto. O ditongo nasal escrito em o ens se pronuncia no Brasil êi ou ê (em Portugal quase ãi): sem [pron. sê], também [pron. tambêi] etc.;

05) os grupos consonantais formados po p, b, t, k (= c gutural) seguidos por outra consoante, podem ser separados (somente na pronúncia) com a inserção, entre as duas consoantes, de uma vogla analítica, e ou i : apto [áptu ou ápitu], abstrato [abstratu ou abistratu], claro [claru ou kelaru], credo [credu ou keredu], absolutamente [absolutamenti ou abissolutamenti] etc.;

6) o r final, principalmente no infinitivo dos verbos, é suprimido no uso popular: faze’ (por fazer), ama’ (por amar), muie’ (por mulher);

07) a palatal lh passa, no uso popular, a i semivocálico: muie’ (por mulher), foia (por folha) etc.;

08) o s final não é nunca pronunciado como š de "scimmia", mas conserva sempre a pronúncia sibilante, sonorizando-se, contudo, por razões de fonética sintática (cf. Primeira parte, § 79 - 2);

09) as consoantes dentais t e d , e, em algumas zonas do Brasil, também a gutural c , quando são seguidas por i se palatalizam: esta palatalização varia de intensidade conforme a região e o grau de cultura dos falantes, dum mínimo que se aproxima estas três consoantes às correspondentes consoantes inglesas a um máximo que transforma t e d respectivamente em c e g palatais italianas de "cima", "gita": tive [tiìvi ou civi], noite [noitiì ou noici], dia [diìa ou gia], verdade [verdadiì ou verdagi], quinze [kiìnzi] etc. A pronúncia mais palatalizada [ti = ci, di = gi] é considerada eminentemente regional, ou seja, limitada a certas zonas do Brasil;

10) geralmente, não se faz conexões entre as palavras no corpo da frase: conseqüentemente, não se evita o hiato sintático com a inserção entre as duas vogais no hiato de uma semivogal epentética (cf. Primeira parte § 47).

 

PECULIARIDADES MORFOLÓGICAS

Muito menos importantes e menos vistosas do que as fonéticas, as características morfológicas, que destinguem o português da América do europeu, podem reduzir-se à tendência, que é limitada ao uso familiar das pessoas menos cultas, de suprimir o s do plural nos substantivos e, às vezes, nos adjetivos e nos verbos, sempre que haja um artigo plural, um numeral, um pronome pessoal ou outro morfema do qual apareça claro o número gramatical: cinco mês (es) mais tarde, você não entende nada das lei (s), três dia (s) de (s) pois, ele desandou com as bexiga (s), nós havemo (s) de anda'. Tal tendência se nota, também, nos verbos, nos quais a 3 ª pessoa singular substitui praticamente todas as formas plurais, distinguidas somente pelo pronome sujeito, cuja presença, então, se torna indispensável: nós não pode com tanta dispesa (= despesa).

 

PECULIARIDADES SINTÁTICAS

Na sintaxe, assim como na morfologia, "as diferenças entre a língua culta de Portugal e a do Brasil são mínimas."

A característica principal do uso sintático brasileiro é a da colocação dos pronomes átonos, para as quais valem as seguintes indicações:

01) de regra, nenhuma frase pode começar com um pronome oblíquo; de fato, na linguagem falada, isto, também, pode ser admitido: eu o chamei, mas chamei-o (em Portugal o pron. átono segue o verbo em ambos os casos);

02) o pronome átono precede o verbo numa frase negativa ou depois de um pronome relativo: não faltam, entretanto, exemplos de uso contrário junto aos bons escritores;

03) num tempo composto, o pronome átono pode preceder ou seguir o auxiliar; não pode nunca seguir o particípio passadio (Port. segue sempre o auxiliar, a menos que a frase seja introduzida por uma negação, por um pronome relativo etc.): eu tinha-lhe falado ou eu lhe tinha falado;

04) na língua corrente não se costuma inserir o pronome átono entre os dois membros do futuro do presente e do pretérito, preferindo-se, em todos os casos, fazer preceder o pronome à forma verbal: eu o comprarei no lugar de comprá-lo-ei;

05) em todos os outros casos, o uso brasileiro conhece grande liberdade na colocação do pronome átono, cuja disciplina se torna, assim, uma questão de estilo pessoal: minha mãe o chamou ou chamou-o, me dá água ou dá-me água, me desculpe ou desculpe-me. Nota-se que o e destes pronomes é pronunciado no Brasil como [i]: então, como justamente nota Sá Pereira (PEREIRA, p. 114), aquilo que para um português seria inatural, ou seja, começar a frase com um som mudo, torna-se natural para um brasileiro que dispõe de um som bem mais caracterizado (cf. no italiano “mi disse”, “ti ho incontrato.”

Outras diferenças de ordem sintática verificáveis no uso brasileiro são:

a) as formas combinadas dos pronomes (mo, to, so, lho, no-lo, vo-lo etc.) não são empregadas. Geralmente se elimina um dos dois pronomes, de preferência o pronome oblíquo objeto direto: ele comprou o livro e me deu: ou se substitui o pronome indireto pela forma tônica correspondente, precedida pela preposição: não vendi o livro, dei-o a ela;

b) popularmente é usual a substituição do pronome átono pela forma tônica correspondente, e do pronome direto pelo indireto: leve ela para a sala ao invés de leve-a para a sala, fui visitar-lhe ao invés de fui visitá-lo;

c) sempre no uso popular, o pronome reflexivo de 3ª pessoa substitui o de 1ª pessoa singular: eu vou deitar-se na cama. Também, se pode notar o uso pleonástico de uma dupla forma do pronome reflexivo: me pediu-me em casamento;

d) o verbo ter é, correntemente, usado, no lugar de haver, com o significado de “existir” (ezisti): tem muita gente na rua;

e) o gerúndio é usado depois do verbo estar para indicar que uma certa ação está em curso, exatamente como no italiano: estou escrevendo, estou fazendo etc. (em Portugal, estou a escrever, estou a fazer).

Concluiremos estes breves apontamentos sobre as diferenças entre uso português e uso brasileiro, retratando o que demonstrou M. de Paiva Boléo, no seu mais citado artigo Brasileirismos (Problemas de Método), ou seja, que a maior parte das peculiaridades do uso lingüístico brasileiro, especialmente fonéticas, encontra correspondência exata no uso popular ou dialetal do português europeu ou na língua arcaica.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SILVA NETO, Serafim da. Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil. Rio de Janeiro, 1950.

VASCONCELOS, Leite de. Esquisse d’une dialectologie portugaise, Paris-Lisboa, 1901.

PEREIRA, Sá. Brazilian Portuguese Grammar Boston, 1948.

BOLÉO, Paiva. Brasileirismos - Problemas de Método), in “Brasília”, III, 1946.