AS ADJETIVAS REDUZIDAS DE GERÚNDIO

Luciano Arêas (UFF)

Mariângela Rios de Oliveira (UFF)

 

Introdução

Inserido nas pesquisas funcionalistas realizadas pelo Grupo de Discurso & Gramática da Universidade Federal Fluminense (UFF), o presente trabalho vem, numa perspectiva sincrônica, analisar o uso das orações reduzidas subordinadas adjetivas de gerúndio na região metropolitana do Rio de Janeiro.

Além de assinalar a ocorrência do fenômeno, ou seja, quantificá-lo, buscou-se realizar uma análise dos dados que tentasse ultrapassar a abordagem tradicional e normativa, tendo em mente a concepção dos funcionalistas sobre a Gramática como “um conjunto de regularidades decorrentes de pressões cognitivas e, sobretudo, de pressões de uso”, (MARTELOTTA, 1996, p. 48) e lembrando-se também da importância, dentro desta vertente teórica, da observação do discurso dos falantes, ou seja, “de um uso potencial e particular da língua, dentro de uma determinada situação comunicativa”. (Idem)

Dessa maneira, foi contemplada também a análise qualitativa, voltada para a observação das motivações do contexto, ou seja, do nível pragmático-comunicativo. Assim, procura-se analisar os usos de orações adjetivas de gerúndio numa metodologia a conjugar a abordagem quantitativa e qualitativa.

Vale assinalar que a linha funcionalista utilizada para a pesquisa é a norte-americana, fundamentada principalmente nos estudos de Givón sobre os princípios de iconicidade (Givón, 1990) e de marcação (Givón, 1995); e ainda, no trabalho de Hopper e Traugott (1993) sobre a determinação de graus de vinculação sintático-semântica entre as orações (parataxe < hipotaxe < subordinação).

A partir dessa base teórica desenvolveu-se uma reflexão sobre usos mais sistemáticos deste tipo de estrutura, na articulação de textos orais e escritos de indivíduos dos mais diversos níveis de escolaridade, para tentar entender um pouco mais até que ponto as adjetivas reduzidas se integram ao sintagma nominal antecedente.

 

Corpus

Neste estudo foi utilizada a coletânea A língua falada e escrita na cidade de Niterói, material produzido na década de 90 pelo Grupo de Discurso & Gramática, no qual se encontra o registro de textos orais e escritos de 19 informantes niteroienses, integrantes da comunidade estudantil - do ensino fundamental ao superior.

Com o objetivo de documentar e servir como base para a pesquisa de fenômenos lingüísticos entre falantes da cidade de Niterói, onde a Universidade Federal Fluminense (UFF) exerce a maior parte de suas atividades, este corpus reúne de cada um de seus informantes cinco modalidades de textos: narrativa de experiência pessoal (contar um fato que tenha acontecido com o próprio entrevistado); narrativa recontada (contar algo que tenha ocorrido com terceiros); descrição de local (no caso, o lugar preferido); relato de procedimento (narrar como se executa uma tarefa); relato de opinião (dissertar sobre um tema da atualidade ou ligado ao cotidiano imediato do informante).

Para cada uma dessas modalidades, o entrevistado teve que produzir dois textos: primeiro, oral e, a partir deste, escrito. Com isso, cada um dos entrevistados produziu ao todo 10 textos, totalizando 190 registros.

O objetivo da variação de modalidades e de canal (oral e escrito) foi verificar que tipo de diferenças poderiam ser encontradas em cada um destes formatos de texto, observando-se as particularidades de usos da língua entre os gêneros (narração, descrição e argumentação) e até mesmo entre suas distintas manifestações na oralidade e na escrita.

Além disso, para analisar se a escolaridade implicava alterações no uso da língua, selecionaram-se alunos que estivessem nos mais diversos níveis de escolarização. Para facilitar uma padronização, optou-se neste item por entrevistar informantes das séries terminais de cada segmento, segundo determinadas faixa etárias, que foram as seguintes:

Tabela de Escolaridade / Faixa Etária

Alfabetização

7 a 8 anos

Quarta série do ensino fundamental (antigo primário)

9 a 11 anos

Oitava série do ensino fundamental (antigo ginásio)

13 a 16 anos

Terceiro ano do ensino médio (antigo 2º grau)

16 a 21 anos

Último ano do ensino superior (antigo 3º grau)

23 a 35 anos

 

Prestou-se também atenção em controlar, durante a coleta de dados, a variável sexo, distribuindo informantes femininos e masculinos em cada um dos graus de escolarização pesquisados.

 

Pressupostos Teóricos

Em conformidade com a análise funcionalista, que se volta para o estudo dos fenômenos da língua na situação comunicativa, ou seja, no contexto interacional em que são produzidos, este estudo tem como objetivo identificar as motivações que levam os usuários a articularem os variados tipos de arranjo da adjetiva de gerúndio, além de propor uma escalaridade desse vínculo em termos de integração sintático-semântica com o sintagma nominal antecedente.

Dentro do funcionalismo, encontram-se diversas vertentes, dentre as quais, para esta pesquisa, foi escolhida a norte-americana, que tem como um dos nomes mais representativos o de Givón .

Este teórico nos apresenta dois princípios fundamentais para a estruturação de nosso trabalho: o da iconicidade e o da marcação. (ABRAÇADO, 1990)

O princípio da iconicidade (Givón, 1990 e ABRAÇADO, 1990) prega que as formas da língua são portadoras de determinados significados e vice-versa. Deste postulado partem três subprincípios:

Quantidade: quanto maior a quantidade de informação, maior a quantidade da forma. A complexidade do pensamento tende a se refletir na complexidade da expressão;

Integração: conteúdos mais próximos cognitivamente também estarão mais integrados no nível de codificação (o que está mentalmente junto, coloca-se sintaticamente junto);

Ordenação linear: a informação mais importante tende a ocupar o primeiro lugar da cadeia sintática. A ordem dos elementos no enunciado revela a sua ordem de importância para o falante.

Já o princípio de marcação (Givón, 1995) preconiza que as estruturas em uso na língua se dividem em duas categorias: marcada e não-marcada. Esta última seria a mais comum e corrente entre os usuários. Por outro lado, a primeira - mais rara - seria utilizada em casos especiais.

Por este princípio, distribuem-se três subprincípios:

complexidade estrutural: a estrutura marcada tende a ser mais complexa (ou maior) que a estrutura não-marcada correspondente;

distribuição de freqüência: a estrutura marcada tende a ser menos freqüente do que a estrutura não-marcada correspondente;

complexidade cognitiva: a estrutura marcada tende a ser cognitivamente mais complexa do que a estrutura não-marcada correspondente. Incluem-se aqui fatores como: esforço mental, demanda de atenção e tempo de processamento.

Outro pressuposto teórico importante, empregado na pesquisa, é o de planos ou focos discursivos (Traugoutt e Hopper, 1983). Segundo esta perspectiva teórica, todo o texto seria dividido em duas partes: figura (porção central, nível de maior saliência, portador de informações nucleares) e fundo (porção periférica, nível subsidiário, referente aos conteúdos secundários). A definição do que é um ou outro no texto está estritamente vinculada com as condições do discurso, principalmente às relacionadas ao gênero textual (narrativo, argumentativo, descritivo).

Assim, por exemplo, nos textos narrativos, a figura se apresenta na narração de eventos concluídos sob a responsabilidade de um agente, através de verbos com alta transitividade.

Já o fundo, nesta modalidade de texto, seria a descrição de ações secundárias e estados; ou, então, a localização de participantes da narrativa ou a elaboração de comentários avaliativos. Em suma, seria o contexto da história, apresentado principalmente por verbos de baixa transitividade.

 

Metodologia

Inicialmente, buscou-se detectar no corpus todos os tipos de orações reduzidas adjetivas, ou seja, ver quais eram as orações de particípio, de infinitivo e de gerúndio que se enquadravam neste perfil. No entanto, a partir de uma análise mais apurada, descartaram-se as adjetivas de particípio, pelo fato desta forma verbal estar muito próxima do adjetivo, inclusive com flexão em número e pessoa.

No caso do infinitivo, o corpus apresentou uma única ocorrência deste tipo de oração adjetiva:

A gente pegava oito e meia... ele era sempre umas das primeiras pessoas a chegar.

A partir destas constatações, e por ter uma freqüência muito mais expressiva entre os entrevistados, as orações reduzidas de gerúndio se tornaram o objeto do presente estudo.

Definidas as orações adjetivas de gerúndio como foco da pesquisa, partiu-se então para a análise de seu uso, tendo como ponto de partida as categorias de texto utilizadas no próprio corpus.

A partir daí, foram levados em conta os seguintes procedimentos para o estudo dos casos:

Definir os tipos de textos nos quais eram mais comuns o uso dessas orações de gerúndio e em que forma de registro (oral ou escrito);

Analisar a natureza dos verbos empregados no gerúndio, observando questões como carga semântica (verificar se se tratava é um verbo de ação, por exemplo) e transitividade destes verbos;

Observar a proximidade destas orações adjetivas em relação ao sintagma nominal que estão qualificando, na tentativa de, a partir desse procedimento, criar uma escala que vai desde a ocorrência mais categórica (nome + adjetiva de gerúndio) até a mais distante do modelo padrão (nome + pausa + verbo conjugado + adjunto adverbial + adjetiva de gerúndio);

4) Observar as motivações de uso destas formas.

 

Considerações Preliminares

Observou-se a ocorrência maior do gerúndio em textos narrativos (experiência pessoal e experiência recontada), em especial no registro oral.

Geralmente os verbos encontrados no gerúndio são de ação, intransitivos e, por conta desta forma verbal, acabam servindo como fundo, ou seja, como elemento que ajuda a dar a ambientação da história, como nos dois exemplos abaixo, nos quais um mesmo informante narra uma briga num baile funk, utilizando estruturas SN + gerúndio para mostrar o contexto de sua história :

... aí estava a equipe Las Vegas ... aí baile/ baile rolando ... baile bom ... aí de repente saiu uma briga ... aí de repente saiu uma briga ... aí todo mundo correndo ... aí veio os segurança e pararam a briga...

... aí os segurança discutiu com um cara da equipe ... da equipe Las Vegas ... discutiu com ele ... aí ... aí briga comendo lá fora ... e o segurança discutindo com o DJ da Las Vegas. (Idem)

Mesmo assim, não se pode descartar a ocorrência desta estrutura em textos escritos, como na narrativa recontada do informante 7, na qual ele conta como aconteceu um acidente com um de seus colegas de trabalho na estação das barcas:

Imaginem a cena: a barca se aproximando para ancorar na estação da Praça XV e um jovem cai dentro d’água.

Há ainda casos em que a adjetiva de gerúndio aparece em textos descritivos e opinativos, principalmente na modalidade oral. Mesmo assim, como no caso dos textos narrativos, os verbos mostram uma ação que se encontra num plano secundário. Ou seja, as reduzidas de gerúndio continuam ainda sendo empregadas no plano de fundo.

Isso ocorre, por exemplo, quando o entrevistado 17, em sua descrição de local, fala sobre casas noturnas, procurando passar para seu interlocutor o que seria a ambientação desses lugares:

... são lugares onde têm música ao vivo... boates... onde tem show... banda tocando...

Outro exemplo dessa estrutura SN + gerúndio, agora inserida em um relato de opinião, se verifica quando o informante 7 fala sobre o tema família, apresentando argumentos para sua idéia de desestruturação familiar nos dias atuais:

as famílias são muito divididas... os membros das famílias não... não... são... não se dão bem entre si né... pai brigando com filho ... filho brigando com o pai

 

Comentário final

A partir das primeiras análises do corpus, foi possível montar a seguinte tabela sobre as variações do fenômeno em estudo, levando-se em consideração graus de proximidade do SN ao gerúndio:

Categoria

Nº de Ocorrências

SN + gerúndio Exemplo: uma garota usando um biquini

18

SN + pausa + gerúndio Exemplo: ... trabalhando o pé ... a ponta de pé ... aquecendo

01

SN + pausa + marcador + gerúndio Exemplo: moleque ... né? andando assim

01

SN + circunstanciador + gerúndio Exemplo: há um processo de oxigenação no cérebro trazendo uma sensação ...

01

SN + Vb intransitivo + gerúndio Exemplo: todo mundo voltou dançando.

01

SN + circunstanciadorl + pausa + gerúndio Exemplo: o nascente do sol ali ... nascendo lá embaixo

01

SN + maiores constituintes + gerúndio Exemplo: lá a gente senta ... conversa com os nossos colegas ... vê gente nova ... lancha ... sempre conversando ...

01

Total

24

 

Observou-se que o uso das adjetivas reduzidas de gerúndio é bem restrito entre os informantes. Pode-se talvez considerar este uso, segundo os pressupostos funcionalistas, como uma forma marcada da língua, face ao padrão não-marcado, representado basicamente pelas adjetivas desenvolvidas, principalmente as restritivas.

Os subprincípios de iconicidade, sobretudo o de proximidade, poderá auxiliar na interpretação dos níveis de integração das reduzidas, conforme a proposta de escalaridade que começamos a esboçar.

Contudo, é prematuro qualquer comentário mais conclusivo, pois a catalogação e a análise dos dados ainda está em fase inicial. Nesse sentido, entre as próximas etapas da pesquisa, está previsto o acréscimo de outros corpora da região metropolitana do Rio de Janeiro, incluindo-se nesse conjunto materiais escritos (textos jornalísticos) e falados (diálogos do Projeto NURC/RJ), buscando não só levantar a freqüência deste fenômeno na atividade comunicativa, como apontar seus níveis/estágios de integração e a motivação pragmático-comunicativa dos mesmos.

 

Referências bibliográficas

ABRAÇADO, Jussara, VOTRE, Sebastião, OLIVEIRA, Mariângela Rios de, CARDOZO, Vanda. A ordenação vocabular do português sob a perspectiva do funcionalismo americano. In: Cadernos de Letras. 1º semestre 1997, V. 14. Niterói : Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras.

BECHARA, Evanildo. Lições de português pela análise sintática. Rio de Janeiro : Padrão, 1983.

MACEDO, Alzira Verthein Tavares de. Funcionalismo in Revista Veredas. Juiz de Fora : EDUFJF, 1998. V 1, nº 2 - jan/jun 1998.

MARTELOTTA, Mário, VOTRE, Sebastião, CEZARIO, Maria Maura. Gramaticalização no português do Brasil: uma abordagem funcional. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro: UFRJ, Departamento de Lingüística e Filologia, 1996.

VOTRE, Sebastião e OLIVEIRA, Mariangela Rios (org.). A língua falada e escrita na cidade de Niterói. Rio de Janeiro: Grupo de Estudos Discurso & Gramática : Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, 2000.

VOTRE, Sebastião et all. Marcação e iconicidade na gramaticalização de construções complexas. Niterói : Revista Gragoatá. 2º Semestre/1998.