O DIALETO VIRTUAL

ESTRANGEIRISMOS DE INFORMÁTICA NA LÍNGUA PORTUGUESA

Roberto Moura Souza (FERLAGOS)

 

No vocabulário de informática do Capítulo II desta Monografia, notou-se a criação de um número expressivo de palavras, cuja inovação envolve alterações vocabulares no âmbito da homonímia. Como assinalou Lecours e Parente num livro intitulado Dislexia, “a homonímia pode ocorrer em três diferentes formas: homografia homofônica, homografia heterofônica e heterografia homofônica” (1997, p. 45.). Segundo ele, são homógrafas homofônicas as palavras como “papa” (verbo) e papa (substantivo), porque os significados são diferentes mas a grafia e a fonologia são idênticas; são homógrafas heterofônicas /selo/ (substantivo) e /sεlo/ (verbo), porque as formas gráficas são idênticas, mas os significados e os fonemas são diferentes e são heterográficas homofônicas <caça> (verbo) e <cassa> (substantivo), porque os significados e a fonologia são idênticos mas a forma gráfica é diferente.

Vejamos alguns casos de homonímias, colocados a seguir, que nos fazem pensar não em três formas, mas em quatro. Observe estes exemplos:

a.1 navegar: V.t.d. Int. Inform. Consultar ou pesquisar [bancos de dados eletrônicos: arquivos, páginas, programas e endereços], utilizando-se de programas de computadores, disponíveis em um computador ou em uma rede de computadores, em busca de informações. (SOUZA, Dialeto Virtual, 2001.) Exemplo: Durante quase dois anos, o rapaz baixinho e magrelo que quase nunca pára quieto navegou [sem grifo no original] na internet em uma sala da procuradoria. (ALMEIDA, 2000, p. 13.).

a.2 navegar: [Do lat. navigare.] V. t. d. 1. Percorrer (o mar e, p. ext., a atmosfera ou o espaço cósmico) em navio, embarcação, aeronave, astronave ou outro veículo.(...) Int. 2. Viajar sobre água, ou na atmosfera ou no espaço cósmico, utilizando um veículo apropriado; seguir viagem (a embarcação) (Aurélio, 1997, p. 1183.)

Aqui, a única diferença está no fato de a.1 ser um “neologismo semântico” de a.2. Ambos são verbos, identificam-se na forma gráfica, têm os mesmos fonemas, os mesmos grafemas, mas se realizam em campos discursivos diferentes, com diferentes traços de significação. Isso implica dizer que o semantema dessa palavra terá semas diferentes. Enquanto o sema do primeiro refere-se a banco de dados eletrônicos e programas de computadores; o segundo, refere-se a mar e a navios. Essa sutil modificação lingüística, capaz de postular uma nova palavra, é resultado de uma variação contextual. São inovações lexicais que nos estudos semânticos foram denominadas de Neologismos Semânticos, mas que não foram caracterizadas ainda nos estudos da palavra. Quando se fala da Significação das Palavras, costuma-se mostrar quatro classificações que lhes são inerentes: o sinônimo, o antônimo, os homônimos: homógrafos, homófonos e perfeitos, e os parônimos (CUNHA, 1985, p.96-97.). Mas, os lexemas, classificados acima como neologismos semânticos, não se enquadram em nenhuma dessas classificações. São palavras que apresentam como característica o fato de terem valores sêmicos diferentes, embora tenham a mesma forma, a mesma classificação gramatical, os mesmos fonemas e os mesmos grafemas.

Esses lexemas que tomam vida própria, ao serem atualizados na fala por um sema inédito, atestam a existência de forma que deveriam receber uma abordagem no âmbito da gramática. Mas, como esses aspectos das inovações lexicais - inerentes à significação da palavra e denominados em Semântica de polissemia - ainda não tenham sido tratados como fatos gramaticais, neste estudo, chamá-los-emos de virtuônimos, por representarem semas virtuais.

Observe as comparações entre o lexema “rodar” (um programa) do “campo lexical” (VALENTE, 2000, p. 58.) da informática e do processamento de dados e rodar (percorrer). Entre eles, pode-se dizer que:

a. não são sinônimos, porque não têm significações idênticas;

b. não são antônimos, porque não têm significações opostas;

c. não são homônimos homógrafos, porque têm a mesma grafia, mas não têm vogais com intensidades diferentes;

d. não são homônimos homófonos, porque são iguais na pronúncia, mas não têm grafias diferentes;

e. não são homônimos perfeitos, porque têm a mesma pronúncia e a mesma forma, mas não têm o mesmo sentido; e

f. não são parônimos, porque não são vocábulos semelhantes na grafia e na pronúncia, são iguais. Além disso, também não são diferentes no sentido - são iguais.

O mesmo se aplica a:

a.1 - portal (s.m.). Equivalente a Porta principal, ou conjunto das portas principais, dum edifício nobre... (FERREIRA, p. 1369, 1997.), em relação a portal (s.m. Inform.) que quer dizer tipo de site (sem grifo no original) que oferece um sistema de busca de informações, notícias...” (GENNARI, 1999, p. 263.). Exemplo: O governo eletrônico está longe de funcionar como se imagina, quando transformado em um grande portal [sem grifo no original] internético . (ABRANCHES, 2000, p. 94.);

Além dessas palavras, há ainda outros neologismos semânticos como rede, aplicativos, atalhos, rodar, baixar e carregar, etc, produtivos no campo discursivo da Informática. Alguns até já incluídos em dicionário, como rede. Mas não prosseguiremos com a abordagem desses virtuônimos, que deverão ser objeto de outra pesquisa, porque ultrapassam os limites desta Monografia.

 

A DIALÉTICA EM “ESCANER”

Neste tópico, parece conveniente salientar uma questão lingüística que também repousa sobre os estudos dos estrangeirismos de informática: a dialética que surge em face da invariabilidade do sistema diante de uma convivência contínua com o universo mutável do idioma - um subsistema de unidades sintópicas, sinstráticas e sinfásicas (CARLOTA FERREIRA, 1994, p. 12.) que expõe uma complexidade de variações que lhes são pertinentes. Essa dialética coloca em evidência a teoria triádica de Eugênio Coseriu: sistema - norma - fala, porque quando se pensa no idioma, pensa-se na língua viva, na língua que está em transformação em todos os cantos e em todos os lugares de uma comunidade de falantes; mas pensa-se, por conseguinte, na fala ou nos falares... que constituem modos variáveis de realização da norma, que por sua vez é a contextualização dos elementos pertinentes e não-pertinentes do sistema por uma comunidade. Isso faz supor que há um núcleo incorruptível, uma semente ou embrião idiomático, que não admite mudanças e que é, sobretudo, necessária - o sistema, a língua. A dialética que se constrói é exatamente sobre esse fato. A Professora Doutora em Letras, Maria Luiza de Carvalho Armando, denomina essa estrutura do sistema lingüístico de "núcleo básico" e considera que é a partir dela que se pode pensar em uma língua portuguesa fundamental.

Se por um lado, essa “semente ou embrião idiomático” representa a língua incorruptível, imutável e estática, por ser um depositório de normas, convenções, acordos e sistematizações puramente prescritivas; por outro, ela permite a produtividade lingüística com elementos que prioritariamente não têm legitimidade no sistema, sendo, portanto, flexível e espontânea, como o caso, que veremos a seguir, do vocábulo scanner que, mesmo sendo do inglês, acabou se tornando produtivo no português atual, por meio da norma e da fala, que são genuinamente germes de criação.

A questão, portanto, que se coloca é que, enquanto esse “embrião idiomático” é imutável, arbitrário, restrito e estático; os germes de criação são flexíveis, ilimitados e espontâneos. Assim, o fato lingüístico torna-se a expressão do estável diante do mutável. Do arbitrário diante do flexível e formal. Essa Dialética sinaliza seus princípios no caso dos aportuguesamentos. O que não se entende como condenável, mas que se constata.

Ao se aportuguesar o estrangeirismo scanner, para escaner (s.), criamos também escanear (v.) e nos deparamos com uma questão morfológica bastante complicada: essas palavras são palavras vernáculas ou são empréstimos? Se por um lado, podemos considerá-las como vernáculas, por terem sido resultado de uma RFP (Regra de Formação de Palavras), em que se produziu um substantivo por derivação prefixal (em escaner), acrescentando como elemento mórfico o prefixo -e, que significa “movimento para fora” (AZEREDO, 2001, p. 85.); e, se derivamos de “escaner” um verbo por processo da derivação parassintética (escanear), com o acréscimo, simultâneo, do prefixo -e, que, ai, se realiza como sendo a vogal alofônica /I/, posicionada antes do radical da forma primitiva -scanne, e da terminação -ar, que se põe depois, e é formada pela vogal temática -a-, representativa dos verbos da 1ª conjugação e pelo sufixo -r, que define o infinitivo impessoal - esse processo, no entanto, deu-se sem a anuência do sistema, porque a regra só prevê formação de palavras com vocábulos vernáculos e o radical -scane não o é, como já foi dito.

Mas a existência dos lexemas “escaner” e “escanear” parecem afetar mais a taxionomia dos fatos lingüísticos que a própria língua. Na verdade, a existência de palavras que migram de uma língua para outra já é um fato incontestável, como mostrou o ensaísta Sérgio Corrêa da Costa, em seu livro Palavras sem fronteiras (COSTA, 2000.). Esse autor relaciona umas 3000 palavras que aparecem em textos de diversas línguas, sempre se mantendo a forma e o significado originais. Isso significa dizer que o vocábulo -scane pode se justificar no seio do idioma como uma forma ambulante, peregrina. Admitindo-se, portanto, que é legítima a existência de -scane, fica então indefinido pelas gramáticas atuais o processo que a teria forjado. Talvez se pudesse pensar em compostos híbridos ou em eruditos. Aqueles que (embora sem o consenso de muitos gramáticos) formam-se

de elementos tirados de línguas diferentes. Assim, em automóvel o primeiro radical é grego e o segundo latino; em sociologia, ao contrário, o primeiro é latino e o segundo grego. (CUNHA, 1985, p. 129.)

Esses compostos são criações, normalmente, resultantes da

nomenclatura científica, técnica e literária, constituídas fundamentalmente de palavras formadas pelo modelo da composição grego-latina, que consistia em associar dois termos, o primeiro dos quais servia de determinante do segundo. (Idem, p. 124.)

Nenhuma dessas definições se ajusta à forma escaner, por dois motivos: primeiro porque apenas um dos seus elementos é de outra língua - do inglês; depois, porque o cerne da composição é a combinação de radical + radical e em escaner tem-se a combinação de prefixo + radical. A desarmonia dessa criação talvez tenha um motivo: trata-se de uma forma que não é um hibridismo, porque não encontra uma justificativa especificamente diacrônica. Também não é uma forma vernácula, porque o lexema ‘scane’ não pertence ao inventário atual do português. Tem-se, aí, uma formação atípica com formas que viriam a representar as duas dimensões da língua: a diacronia e a sincronia, simultaneamente. Para evitar essa incongruidade, ficamos com o conceito do Professor Horácio Rolim de Freitas:

As palavras estrangeiras, introduzidas em nossa língua, devem ser analisadas na morfologia vocabular sob o mesmo critério das palavras que já faziam parte do nosso léxico, desde que se tornem correntes no uso do sujeito-falante e sejam valorizadas dentro de um critério sincrônico. (FREITAS, 1981, p. 127.)

 

O TRATAMENTO DADO PELOS GRAMÁTICOS

AOS ESTRANGEIRISMOS

É notário observar na maioria das gramáticas a ausência de um capítulo que trate, exclusivamente, das inovações léxicas oriundas de empréstimos externos: os estrangeirismos. Se, hoje, o falante brasileiro recorresse a uma gramática, buscando orientações de como se orientar diante de estrangeirismo como download, muito provavelmente ficaria sem respostas. Segundo Nelly de Carvalho, uma das justificativas para a exclusão desses tipos de empréstimos da gramática é a de que os “gramáticos consideram a língua uma água límpida que não pode ser contaminada. Por isso, em nome do purismo, não aceitavam os empréstimos”, mas salienta essa autora que uma “água parada, mesmo límpida, estagna e apodrece” (CARVALHO, 1984, p. 58-59.).

Um dicionário como o Michaelis on-line, por exemplo, apresenta certos descuidos: ao mesmo tempo em que não aportuguesa Internet, mas dá-lhe um significado ou mesmo atribui uma definição a browse, não comenta neologismos semânticos como “navegar”. Em alguns casos, dá a origem incorreta dos estrangeirismos. Deletar, por exemplo, é dado como palavra importada do inglês, quando na verdade, o inglês a tomou emprestado do latim.

Quanto ao fato dos estrangeirismos não serem comentados pelos gramáticos, é interessante observar que, no âmbito da formação vocabular portuguesa, os neologismos semânticos e, principalmente, os sintáticos decorrentes de influência estrangeira têm dado uma ampla contribuição à língua, porque põem o sistema a produzir. Essa idéia, no entanto, não justifica o emprego de estrangeirismos, mas mostra que devemos questiona-los com isenção.

 

TEORIA PARA APORTUGUESAMENTO

SERÁ QUE NÃO ESTAMOS PERDENDO NOSSO IDIOMA?

Quando se coloca a questão do uso de estrangeirismos e, como neste estudo, mais especificamente a das lexias recentes e inovadoras de informática, logo se percebe que se tratam de unidades ligadas à tecnologia da informação e à especialidade do universo eletrônico do processamento de dados. Mas não são formas alheias. Fazem parte de um discurso (mesmo como lexias estrangeiras) que se manifesta no bojo de um Plurilingüismo, no dizer de Mikhail Bakhtin (1988, p. 74.). E embora os termos da informática e do processamento de dados constituam índices particulares, ou seja, signos que compõem uma linguagem específica - um dialeto, denominado nesta pesquisa de Dialeto Virtual - vale lembrar as considerações do autor acima sobre a estratificação profissional da língua. Segundo ele,

a linguagem do advogado, do médico, do comerciante, do político, do mestre-escola, etc. (...) diferenciam-se evidentemente não só pelo vocabulário: elas implicam determinadas formas de orientação intencional..., são carregadas de conteúdos determinados, concretizam-se, especificam-se, impregnam-se de apreciações concretas, unem-se a determinados objetos, a âmbitos expressivos de gêneros e expressões. (...) Deste modo, em cada momento da sua existência histórica, a linguagem é grandemente pluridiscursiva. (BAKHTIN, 1988, p. 96-98).

Estando, portanto, num ambiente pluridiscursivo, esse Dialeto Virtual além de “espoliar as possibilidades intencionais da língua por intermédio de sua realização concreta específica (...), sobrecarregando suas palavras e formas com suas próprias intenções e acentos típicos” (Idem, p. 74.), passou a contagiar os discursos dos falantes e a ser expressivo também em outros estilos fora de seu contexto.

Mas a maior parte dos falantes brasileiros, embora aprove essas inovações lingüísticas, não concorda em utilizar formas vocabulares, com grafias e fonemas incompreensíveis e desconhecidos da fala do cotidiano e do padrão lingüístico. Muitos perguntam por que esses vocábulos não são aportuguesados. É o que se nota, por exemplo, nas Tabelas nº 2 e 5, representativas de um questionário aplicado em uma escola pública e em uma particular: 40% dos alunos-informantes acham que os estrangeirismos de informática são estranhos. Para 25% dos alunos da escola pública, esses estrangeirismos devem ser aportuguesados. Na escola particular esse percentual é de 47%. Portanto, parece natural ao falante o fato de se aportuguesar um estrangeirismo, porque pensam no português como uma língua de 1.000 anos, com princípios, categorias e propriedades elaboradas ao longo da sua tradição histórica. Embora, ainda não o tenha, o Português, em sua trajetória histórica, desde o português arcaico do século XII, com as Cantigas de Amigo, de Amor e de Escárnio e o Testamento de Afonso II (SILVA, 1996, p. 33.), um documento do terceiro rei de Portugal, datado indiscutivelmente em 1214, acrescentou ao seu vocabulário as mais diversas procedências etimológicas, que incluíram desde o latim popular, o árabe, o grego e o francês até o malaio, o persa e o tupi, entre outras. Em cada tempo histórico, o português foi elaborando seus padrões lingüísticos próprios, fundamentados na analogia das maneiras e dos hábitos que falantes portugueses haviam desenvolvido em outros tempos.

Portanto, não é difícil supor que há normas para que uma determinada palavra se inclua ao léxico português. No entanto, quando se põe a procurar essas normas, vê-se que elas existem no âmbito dos estudos lingüísticos, principalmente, da Fonética e da Fonologia, mas não se acham relacionadas a serviço de uma teoria do aportuguesamento. A maioria dos estudiosos, dentre esses, os lexicógrafos, lingüistas e gramáticos, limita-se a seguir a tradição lingüística, o processo diacrônico da língua, e a observar como se deu a passagem para o português dessa ou daquela palavra. Diante do registro da transformação vocabular, estabelecem uma analogia. Mas não seguem nenhum critério.

Não se deve descuidar de que em nenhum momento histórico do Português, desde o Português arcaico, a língua se viu tão cercada de estrangeirismos. Nenhum outro momento exigiu tamanha atenção aos empréstimos lingüísticos. No século XVI, durante o Renascimento, ele foi bombardeado pelo italiano; no século XVII, foi a vez dos galicismos. Mas, nessas épocas como em outras, a sociedade seguia a passos mais lentos. Uma palavra circulava com mais dificuldade, penetrava com menos intensidade e até fazer parte do hábito dos falantes, decorria décadas inteiras. O processo social permitia à linguagem analisar, escolher e assimilar os étimos estranhos. Hoje, não parece haver tempo para identificar escolhas etimológicas. Se uma palavra estrangeira é necessária ao comércio, ao progresso tecnológico ou ao avanço cultural, os meios de comunicação em apenas alguns dias ou meses sedimentam essa palavra na linguagem do dia-a-dia, tanto na linguagem escrita quanto na oral.

Assim, diferentemente do passado, quando não se justificava um estudo criterioso sobre as formas de aportuguesamento, hoje parece haver uma necessidade disso, principalmente, quando se observa que colocamos em nosso universo lingüístico, com caráter permanente e definitivo, palavras como site, que não representam nenhuma forma de evolução da nossa fonética ou fonologia. O uso de formas como essa mostra que temos abandonado a capacidade produtiva da nossa língua e os processos de formação de palavras que refletem a articulação dos portadores de significado gramatical - os prefixos, sufixos e lexemas - e constituem o inventário fechado da língua (ROSA, 2000, p. 102-103.). Nesse sentido, esses empréstimos lingüísticos podem até estar tomando o lugar da própria língua! Será que o nosso idioma contentar-se-á com essa marginalização? Será que ao negligenciarmos os processos produtivos da língua não estaremos perdendo nosso idioma? Também, por outro lado, será necessário a ele um padrão rígido e sofisticado de produção lingüística? Parece que nem uma coisa nem outra. Mas parece irrefutável que o idioma precise ser valorizado pelos seus falantes. (...)

Se continuarmos impondo a ele um ostracismo, em favor de inovações lingüísticas estrangeiras que a rigor não se justificam no âmbito da língua escrita e encontram resistência no discurso falado (como ficou demonstrado nas tabelas nº 2 e 5) - a face contemporânea da língua ou seu vernáculo, como definiu Fernando Tarallo, ao dizer que vernáculo

é a língua que usamos em nossos lares ao interagir com os demais membros de nossas famílias. É a língua usada nos botequins, clubes, parques, rodas de amigos; nos corredores e pátios das escolas, longe da tutela dos professores. É a língua falada entre amigos, inimigos, amantes e apaixonados. (TARALLO, 1986, p. 19.)

 

A ASSIMILAÇÃO

E A TRANSCRIÇÃO DE LEXIAS ESTRANGEIRAS

Um estrangeirismo depois de ser ratificado no uso corrente de uma comunidade de falantes e ser aceito no idioma importador, deve ainda submeter-se ao sistema dessa língua, para que venha representar enriquecimento do léxico. E nesse caso, primeiramente, deve acomodar-se às leis lingüística da língua que o recebe: ao seu sistema ortográfico e fonológico e à sua ortoépia. Isso, no entanto, não parece ser o que ocorre nos dias atuais com os Estrangeirismos de Informática. Quando pronunciamos [saite] e escrevemos site, estamos representando a pronúncia /ai/ por i. Ocorre que esse som /ai/ caracteriza um ditongo e em português, não há ditongo representado por um único grafema. Além disso, nesse sentido, fica evidente uma inconsistência entre o grafema representado pela letra “i” e a pronúncia em português. Segundo Ricardo Shütz (Disponível na Internet, URL: http://www.english.sk.com.br/sk-grint.html.), esse tipo de irregularidade já é notória no inglês. Como exemplo, cita o fato da grafia representada pela letra “i” ter seis fonemas diferentes, entre os quais, encontra-se:

/ay/ - arrive, wife, bite, hide, etc.;

/iy/ - machine, elite, pizza;

/i/ - bit, his;

/ay/ - bite, hide;

/y/ - noise, toilet;

/â/ - pencil, bird, firm; e

mudo - sovereignty, parliament.

Vimos acima que a língua inglesa já começa a dar mostra de que seu sistema lingüístico apresenta irregularidades acima de uma margem aceitável. Todo sistema lingüístico funciona dentro de um padrão de coerência e regularidade, sustentado pela norma, por isso tem a conceituação de sistema. Ao se afastar desse padrão de coerência, extingue-se a possibilidade dos processos lingüísticos manterem-se funcionais. O português já vem apresentando irregularidades não resolvidas já de longa data, como a questão das consoantes posvocálicas que travam a sílaba, ao se realizarem por meio de uma redução do som da vogal. Essas consoantes, como salientou Mattoso (1995, p. 56.), normalmente de origem “erudita”, mostram ser exemplos da enorme tolerância lingüística do falante do português, principalmente, do falante brasileiro. São formas, vindas por empréstimo do Latim ou do Grego, que se permitiram fixar sem nenhuma atenção às peculiaridades idiomáticas. Foram, portanto, mal aportuguesadas e não justificam o processo fonológico da epêntese nem em apto nem na recente software, por exemplo. São tipos de neutralização da pronúncia da vogal postônica - nos casos acima, engendrando sílaba no segundo segmento vocálico - que denotam representação artificial do sistema vocálico no seio da vitalidade do português contemporâneo. Essa nuance fonológica, pertinente ao sistema do Latim, passou despercebida na passagem dessas palavras para o Português, mas devem ser mais bem contempladas a partir de agora. Se possível, devem ser até evitadas. No momento em que abandono os recursos lingüísticos disponíveis no sistema da língua portuguesa, para privilegiar empréstimos mal elaborados de língua estrangeira, com a justificativa de que são palavras mais representativas, aguçadas ou necessárias, deixo de possibilitar que o português evolua. Qualquer evolução lingüística estabelece a partir da norma. Se esse nível da linguagem não for exercitado, tende não apenas a limitar a criação vernácula, mas, sobretudo, a ampliar o lugar dos desvios a ela.

Alguns poderão argumentar que a norma é inflexível, mas o sistema lingüístico precisa de um âmago incorruptível. O lugar das irregularidades é o idioma. Nele se aceitam as variantes. Deixar de perceber isso, compromete a língua. Obviamente essas duas considerações supõem uma dialética, mas a unidade lingüística é resultado desse contra-senso: ela precisa do sistema tanto quanto precisa ser produtiva e estar a serviço do falante.

O ESTÁGIO LINGÜÍSTICO

O APORTUGUESAMENTO E OS NEOLOGISMOS DECORRENTES

Os empréstimos de palavras estrangeiras, ao serem inseridas no idioma português do Brasil, submetem-se a um estágio lingüístico até serem consideradas formas peculiares ao sistema fonético e fonológico. Esse estágio define-se, basicamente, após quatro fases fundamentais:

1 - a do estrangeirismo;

2 - a da vocabularização;

3 - a idiomática; e

4 - a da dicionarização.

A fase do estrangeirismo é aquela em que a lexia importada é uma forma estrangeira e, portanto, um estrangeirismo. Nessa fase, a lexia é ainda desconhecida da maioria dos falantes, embora já possa ser encontrada em artigos especializados de livros, revistas e jornais. Apresenta-se estranha ao sistema, com grafemas, semas e fones conhecidos apenas pelo sujeito-falante, conhecedor de determinada área do conhecimento. É o caso, atualmente, de download, os semas que representam essa forma ainda não foram apreendidos por um universo representativo de falantes; num segundo estágio, ainda como estrangeirismo, é vocabularizada, ou seja, é incluída no Vocabulário Ortográfico Brasileiro, sob a égide da Academia Brasileira de Letras; num terceiro estágio (idiomático), é incorporada ao idioma, sendo atualizada na fala oral e escrita do brasileiro, passando a ser utilizada em todos os meios de comunicação e aparecendo nos jornais de grande circulação do país, nas músicas e até mesmo em livros literários e científicos; num quarto estágio - da dicionarização -, essa forma aparece num número elevado de registros da comunicação, mostrando ser uma lexia comum à fala corrente. Começa a ser discutida e até analisada pela comunidade que detém o conhecimento formal da língua. Nesse momento, sendo representada por um universo percentualmente significativo de falantes, recebe a chancela dos lexicógrafos e é, então, dicionarizada. Mas, a dicionarização de uma forma estrangeira não significa o seu aportuguesamento. Há muitos estrangeirismos de informática que foram registrados no Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa de 1997 com a grafia de sua língua original, como é o caso, por exemplo, de buffer, on-line e hardware.

Durante essas fases, a forma estrangeira é submetida aos volteios do vernáculo e o sujeito assimilador vai definindo em sua fala quais as nuances fonéticas e fonológicas devem ser conservadas na interação comunicativa. Quando não se processa a adaptação ao sistema lingüística importador (como é o caso, atualmente, da palavra hardware), a lexia estrangeira é denominada de xenismo, o que não a descaracteriza como um estrangeirismo apenas a diferencia. Nota-se também durantes essas fases o registro dessas formas em documentos públicos administrativos (Portarias, Memorandos, etc.), jornais, revistas, propagandas, folhetos, placas, cartazes, letreiros e sinais.

Mas, o tempo para a adaptação lingüística acontecer é impreciso. A necessidade será uma das variáveis mais contundentes para definir a permanência ou a exclusão de uma forma estrangeira. Quando essa forma for comum e necessária, tanto na linguagem escrita quanto na oral, então se processará a naturalização lingüística do estrangeirismo. Para isso, esse estrangeirismo deverá ser incorporado ao sistema lingüístico do português, sujeitando-se aos processos fonológicos. (CALLOU e LEITE, 2000, p. 43.)

 

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