A CRÍTICA CONTEMPORÂNEA E OS NOVOS PARÂMETROS DA TEORIA DA LITERATURA

Geysa Silva (UFJF)

A crítica contemporânea revela uma nova diretriz da Teoria da Literatura, voltada agora para os Estudos Culturais, que abalam os cânones antes considerados como intocáveis. Assim, as produções das margens são hoje objeto de estudos acadêmicos, incluindo-se aí, não só a chamada cultura popular, como também a cultura que se torna presente através dos meios modernos de comunicação. Isto não significa o crepúsculo da Teoria, mas sim de uma Teoria fundamentada no princípio da excelência da tradição. Não se pode dizer que assistimos a uma crise da Teoria, mas que nos encontramos diante de um modo de ver a obra como dimensão fundante da crítica, base de uma nova atitude intelectual que se abre para o âmbito da cultura, para o exame de objetos que escapam à concepção clássica do literário.

Nesse contexto, a análise das Histórias em Quadrinhos (HQs) é realizada de maneira a salientar suas características verbais e figurativas, visto que esta é uma forma narrativa com singularidades tanto na diagramação da página como nos temas condutores da trama. É preciso ressaltar que as HQs não se limitam a ilustrar suas páginas e, sim, que as imagens são elementos constitutivos da própria trama. A crítica, portanto, se vê, inicialmente, diante do problema: as HQs são narrativas que ensejam recursos icônicos, ou trata-se de recursos icônicos que usam a narrativa como pretexto?

Para tentar responder essas indagações, tem-se de relembrar, com os formalistas russos, que a obra de arte é um conjunto de relações entre materiais e procedimentos. Com o aperfeiçoamento da reprodutibilidade técnica, com a modificação dos materiais e, especialmente, com o surgimento das imagens computadorizadas, as HQs desenvolveram sua linguagem, procurando inovações na realização gráfica e verbal. Consideradas durante muito tempo como um mero produto de cultura de massa, as HQs perderam, hoje, a característica de simplicidade, em qualquer de seus aspectos, apresentando-se como um texto complexo, em que a própria diagramação é fator de sofisticação da leitura. É só comparar uma HQ escrita nas décadas de 40 ou 50, por exemplo, e outra escrita nos dias atuais, para perceber as diferenças, quer no tipo de história narrada, quer na composição das personagens, quer na distribuição mesma dos quadrinhos, que exibem nítida variação nos procedimentos utilizados. Entre as várias formas tomadas pela narrativa do final do século XX e início do século XXI, as HQs se apresentam como uma das mais instigantes para a crítica e para os estudiosos da Teoria da Literatura, despertando a atenção para o texto não-canônico, que foge à tradição e coloca-se no limiar, na fronteira entre a alta literatura e a cultura de massa.

Quanto às relações entre palavra e imagem, lembremo-nos de que as primeiras manifestações artísticas são icônicas, datadas do paleolítico superior, com a representação dos animais nas paredes das cavernas e são esses desenhos, que nos dão a oportunidade de ler o passado remoto da humanidade. Nestas condições, pode-se considerar a escrita como filha do desenho e observar quão freqüente é a associação da palavra com a imagem.

 Essas associações são exploradas pelas HQs, que as aproveitam em signos convencionalizados, como por exemplo, as onomatopéias, que não se restringem a simplesmente representar os sons e, sim, a integrar a semântica narrativa; por outro lado, a ausência de quadros ou a articulação entre eles deteam uma sintaxe, como na montagem cinematográfica, proporcionando a ocasião de análise dos mesmos. É o que acontece com esta página de Batman, que observaremos a seguir.rmin

Vemos aí a opção pela dispensa do quadro que resulta em cunho demolidor das vinhetas tradicionais, do servilismo a uma diagramação que durante muito tempo imperou nas HQs. No exemplo citado, nota-se que a eliminação do quadro não é gratuita; ela acentua os poderes de Batman, reiterados pela distribuição gráfica das características do herói, estas sim, enquadradas numa seqüência enumerativa, dissimulando a presença do narrador. As cores (preto e branco) entram em perfeita simbiose com a identidade da personagem. Realizada em estilo barroco, podendo-se observar o corte dado pela diagonal, a página destaca o herói na metade superior, enfatizando os braços, em movimento de ataque. Aqui, fica muito evidente que o elemento centralizador é a imagem. Claro que esta situação não é única, porém Will Eisner, o grande autor da série Espírito, declara que as HQs são, antes de tudo uma arte seqüencial de figuras.

Vigilantes de Gotham, nº100, 1998

Ora, seqüencial também é o cinema, mas esse lida com quadros imóveis, que se transformam num continuum durante a exibição, enquanto as HQs só conseguem essa continuidade na imaginação do leitor. A sucessão linear de quadros expressa a sucessão temporal dos acontecimentos e pode até dispensar a palavra. Agora tem-se a pura iconicidade, balizando a opinião dos que consideram as HQs como narrativas essencialmente imagéticas. No exemplo abaixo, a figuração, realizada no espaço expressa o tempo e a ansiedade da personagem ilustrando sentimentos de expectativa e de terror.

Superboy, nº 26, 1999

 

Entretanto, as HQs nunca abandonaram, por completo, o texto escrito, chegando mesmo a utilizá-lo como elemento de sofisticação do ponto de vista

ou do narrador, que tanto aparece em primeira como em terceira pessoa. Na figura que se segue, a cena é apresentada e vivida por um só foco narrativo, mas imita a narrativa cinematográfica, usando voz em off , interpenetrando fala e pensamento. Difícil, neste caso, decidir o que é mais importante, se a palavra, se a imagem. Em se tratando da imagem, a figura da Mulher-Gato, encoberta pelas sombras, contrasta com a nitidez da fisionomia da mulher que dorme, colocada em primeiro plano. A partir daí, a seqüência mostra movimentos das mãos, aliados à reflexão de quem os executa, não se separando ação de pensamento.

Batman, nº 22, 1

Essas observações nos levam a pensarue é inócua a interrogação feita no início desse texto, pois, nas HQs, tanto o desenho enseja o texto como é ensejado por ele. O importante para a crítica é analisar as histórias em seus elementos constitutivos, salientando suas inovações, que provocam nos leitores o estranhamento de que falavam os formalistas.

Sem dúvida, entre as inovações mais interessantes, estão os contornos dos quadros (requadros). Hoje as vinhetas são organizadas de forma inusitada e surpreendem pelo jogo entre formas e cores, propondo a deformação e a pluralidade, ao mesmo tempo em que conferem as páginas um ritmo fragmentado que obriga a modificação do olhar habitual. Na figura seguinte, pode-se apreciar um amontoado de formas e balões que enchem a página, cuja a base é feita de maneira original, quebrando o acabamento linear dos quadros. A estranha forma, que domina essa composição, assemelha-se a um sol apocalíptico, ou a uma célula gigantesca e irrefreável, atribuindo à página um aspecto de hecatombe cósmica ou biológica. Se atentarmos par ao contexto atual, com suas guerras e ameaças de destruição, poderemos compreender os desenhos das HQs contemporâneas, colocando-as em seu verdadeiro lugar, como expressão artística que propõe transformações para o gosto visual de um público acostumado com histórias bem comportadas e com um tipo de percepção já automatizado.

Abalar a percepção costumeira, que procura reconhecer, em qualquer imagem, semelhança com seres e objetos já existentes, parece ser uma das propostas dessas HQs. Recusando a representação pura e simples, adotada pelos produtos da cultura de massa, diversificando suas vinhetas e balões, as HQs lutam para serem consideradas como uma forma de arte. Assim, além de tornar complexa a diagramação, as HQs recorrem ao fantástico, aos medos verdadeiros ou imaginários e criam novos mundos, quase sempre assolados pela violência.

Essa violência concretiza-se nos heróis, nos vilões e nos temas das narrativas. A construção das personagens surpreende a crítica especializada. Qualquer aficcionado das HQs sabe que Príncipe Valente, Flash Gordon, Mandrake e outros heróis antigos são simplificados, pautam suas ações por condutas éticas exclusivistas. Hoje, ao contrário, não há mais o mito do super herói que é bom ou mau, o tempo todo. Neste sentido, muitos vilões se tornam bonzinhos, como é o caso de Magneto, tradicional inimigo dos X-Men, que se junta a eles com o codinome de Joseph, modificando suas atitudes anteriores. A ambivalência entre o bem e o mal é também característica da Mulher-Gato, um misto de vilã e heroína que, com sua beleza, tenta seduzir Batman e destrói sempre os mais malignos que ela. A seu respeito, diz Dennis O'Neil, editor da série: Ela não é uma pessoa legal, mas serve como exemplo de comportamento. É independente, aceita sua condição, tem orgulho disso e é leal a seus amigos e a seu próprio código de conduta (WIZARD, outubro/97, p. 30).

Superpower, nº 34, 1996

 

Essas declarações merecem uma reflexão que não pode ser extensa, nesse momento. Por que a Mulher-Gato é um exemplo? Exemplo do mal? Da independência feminina? De lealdade? O que os leitores pensarão disso? O fato é que os roteiristas procuram tornar simpáticos os vilões, explicando suas maldades por motivações diversas. O terreno movediço entre o bem e o mal fica muito evidente. Heróis e vilões não têm territórios demarcados e a visão simplificada do mundo é destruída para consagrar-se a habitualidade do modificável e do impreciso. A concepção cristã de céu e inferno, santidade e maldade é subvertida e exibe-se o reino da metamorfose e do deslizamento,do interesse e da vingança. Os protagonistas das atuais HQs não são mais criações divinas e, sim, filhos de acidentes científicos, explosões nucleares ou resultado do desenvolvimento tecnológico. Suas armas são de última geração e seus poderes são conseqüência de acontecimentos, ocorridos na esfera do experimento ou do acaso. Observe-se o caso de Witchblade, que era uma simples policial e adquire estranhos poderes ao encontrar uma estranha luva; Matt Murdock, o demolidor, tem seus sentidos ampliados, quando é contaminado pelo lixo radioativo de um caminhão, ficando cego.

Constata-se, portanto, que os heróis de HQs, de uma forma geral, sofreram mudanças no decorrer dos anos e do desenvolvimento das próprias histórias. Os velhos super-heróis se transformaram em pós-modernos e despertam a admiração do público-leitor pela forma violenta como enfrentam seus inimigos. Obedecendo à lei do consumo desenfreado, que torna descartável qualquer produto, são lançados a todo momento diferentes heróis e heroínas; porque , se, antes, a grande maioria dos heróis era masculina, hoje as mulheres ocupam considerável espaço no universo das HQs. As já citadas Witchblade e Mulher-Gato, Lady Death (que destrona Lúcifer), Vampirela, Barbarela, Valentina e outras são uma amostra do poder feminino. Com corpos esculturais e modelados ao gosto da época atual, parecendo freqüentar academias de ginástica, com poderes de matar, as heroínas conquistam fãs no mundo inteiro. Essas heroínas vivem os conflitos de sua geração e os problemas do cotidiano. O homossexualismo feminino, intocável até pouco tempo, aparece nessas HQs, não como um índice a ser decifrado, mas de maneira explícita no texto, mas como ocorre com a revista Estranhos no Paraíso.

É preciso salientar, ainda, que muitas dessas personagens apresentam a experiência do duplo e do mascaramento. Além de Batman, tem-se Spawn, Juiz Dredd, Capitão América, etc.. O caso mais notável de duplicidade é o do Super-homem que tem seu duplo no repórter Clark Kent. A oposição entre o repórter tímido e o detentor de poderes sobrenaturais mostra uma Segunda vida, exemplificando a necessidade de simulação em contraste com a expressão natural. O ambíguo, nestas condições, anula o antagonismo entre fingimento e sinceridade. O abismo traçado entre o original e seu duplo é muitas vezes reduzido pelo uso da máscara. Nas palavras de Bachelard (1986, p. 173), a máscara oferece uma avenida de ser a nosso duplo, um duplo potencial ao qual não soubemos conferir o direito de existir, mas que é a própria sombra de nosso ser. O filósofo americano Bryan Rorty afirmou que não se passa de um pensamento a um corpo e sim de um corpo a outro corpo. Isso é justamente o que fazem os roteiristas das HQs, quando criam heróis mascarados: passar de um corpo a outro corpo, que é todavia o mesmo. A máscara é um recurso que procura responder aos mistérios da condição humana, alegorizar a essência através de uma segunda aparência, que se torna indissociável da primeira; ela integra, portanto, o ethos da personagem, levantando problemas de ordem filosófica e literária, colocando em cena valores e condutas que o leitor se vê obrigado a aprovar ou não.

Esses heróis com seus duplos e suas máscaras expressam as faces complementares do homem, refletem a natureza mal definida daquele que não conseguiu dominar seu monstro interior, como o Homem de duas faces, que teve seu rosto desfigurado pelo ácido: é Janus (justiceiro) e Harvey (assassino). Interessante notar que a experiência do duplo é a forma arcaica de objetivação do sujeito e, curiosamente, é também o paradoxo detectado por Niels Bohr, na contradição entre corpúsculo e onda: segundo as condições de observação, a mesma partícula pode aparecer como corpúsculo (corpo material e limitado) ou onda (corpo imaterial e contínuo). Bohr afirmou que a complementaridade entre corpúsculo e onda existe, mas é paradoxal. Assim, constata-se uma conjunção entre a Microfísica e as personagens das HQs, entre o pensamento racional e empírico e o pensamento simbólico e mágico. À primeira vista isso pode soar estranho, todavia relações dessa espécie não deveriam causar espanto. Edgar Morin (1996, p. 275) explica-nos que todo conhecimento é múltiplo e que as classificações são didáticas e não reais.

Aprendemos a separar as matérias: a História, a Geografia, a Física, etc. Muito bem! Mas se olhamos melhor vemos que a Química, num nível experimental, está no campo da Microfísica. e sabemos que a História sempre ocorre num território, numa Geografia. E também sabemos que a Geografia é toda uma História Cósmica através da paisagem, através das montanhas e planícies.

Na verdade, as HQs reencontram, por meio de seus super-heróis os eternos modelos greco-latinos, constituindo uma mitologia moderna, um sincretismo de diversas mitologias do mundo. A violência faz do universo das HQs um anti-mundo, com uma realidade própria, negativa e destruidora, lugar onde prevalece a mimesis dos mistérios demoníacos. Suas histórias são representações de desequilíbrio do nomos e da maldade pessoal, trazendo para suas coloridas páginas a desorientação que atingiu indivíduos, que outrora guiavam suas vidas pelas interpretações do religioso. Ao mesmo tempo hoje há um considerável crescimento de novas religiões. Nesse contexto contraditório, o relacionamento do homem com o sagrado partiu-se, porém o desejo de ordem e segurança, da mimesis divina ainda permanece. Esse desejo aparece submerso em violentas histórias, quando as personagens aproximam-se do mal e sentem a necessidade de nomeá-lo para proclamar sua presença e enfrentá-lo.

A apologética religiosa tem de ser repensada em sua essência como a disciplina que transmite uma relação diferente com o mal, que não o exorciza, que não tenta anunciar sua eliminação, mas se lhe aproxima e atravessa-o e reconhece-o como um fator que nos é próximo, assim como o nosso próximo, e que acresce o princípio de responsabilidade, pois é justamente ao achar que se distanciou do mal, da dor e da injustiça que o homem corre o perigo máximo de cometer a maior violência (GARGANI, 2000, p. 137).

Deslizando da violência para a religiosidade, as HQs apresentam transgressões aos interditos e tentam recuperar o sagrado que foi profanado. Revistas como The Dreaming, Hellblazer e Preacher são compostas de aventuras nas quais se observam interditos primitivos, modificados em diferentes situações.

The Dreaming, criada por Neel Gaiman, em homenagem aos velhos quadrinhos de terror, usa, em suas aventuras, personagens do Antigo Testamento, como Caim e Abel, que vivenciam histórias tragi-cômicas no reino do Sonhar. No episódio O julgamento de Caim, Caim é expulso do Sonhar e condenado a viver no Deserto, repetindo o destino do Caim bíblico, expulso de sua terra e condenado a vagar pelo mundo. O interessante nessa história é o castigo atingir também Abel, pois o crime é cometido reiteradamente, através dos tempos, numa representação irônica das lutas fratricidas: Abel retorna à vida para que seu irmão possa matá-lo. Veja-se a fala de Caim durante seu julgamento.

Vamos pessoal!... Acordem! Todo este julgamento é uma farsa! Estou sendo julgado por assassinar alguém que está sentado aqui na corte! (...) Faz parte de nossa maldição! Isso e o fato de não importar quantas vezes eu possa tentar eliminar aquele gago sebento... Não importa que às vezes eu o estripe ou o decapite ou que o jogue num barril de vinagre fervente... Ele sempre volta! Não volta? (THE DREAMING, Nº 1 , p. 18, 2000)

O trecho, além de fazer uma sátira ao texto bíblico, revitaliza a arché da culpa, o reencontro com os primeiros momentos da humanidade cristã, assinalada com o estigma do pecado e do crime, pelos quais será eternamente responsável. Essa maldição é nitidamente parodiada na decisão dos jurados.

¾ Então, no caso do Sonhar contra Caim, o Zelador, por inúmeros assassinatos premeditados em último grau, o que vocês decidem?

¾ Decidimos que o acusado, Caim, o zelador, é... Culpado como o pecado original (THE DREAMING, nº1, p. 23, 2000).

Na revista Preacher, o mito da Queda sofre uma transformação e a desobediência ao Senhor é feita por um anjo, guardião do Paraíso. O anjo apaixona-se por um ser demoníaco e gera uma criatura monstruosa que sai pelo mundo, à procura de um corpo, apossando-se de Jesse, o reverendo. Jesse não se desfaz de sua indumentária característica, vivencia inúmeras aventuras, cercado de mortes violentas e de amigos pouco convencionais, como um vampiro irlandês e uma assassina chamada Tulipa. Os três amigos, como uma trindade demoníaca, estão em busca de Deus, não para conseguir o perdão de suas culpas, mas para um "acerto de contas". Introduzir um reverendo em um meio violento é aceitável, entretanto seus atos criminosos, como matar e roubar, e sua linguagem, basicamente constituída de gírias e palavrões transgridem todos os princípios das religiões mais difundidas entre nós. Sua pregação não é mais a palavra santa que propala a Boa Nova, redentora da humanidade. Invertendo a missão religiosa, o reverendo Jesse coloca à vista a fragilidade dos ministros de Deus e o quanto estão sujeitos às mesmas circunstâncias e às mesmas reações que atingem qualquer mortal. Jesse não busca no céu o Deus todo poderoso, criador do universo. Tal como o homem contemporâneo, ele o persegue nas ruas das cidades violentas, desejando respostas para o abandono em que se encontra o mundo. Enquanto as religiões institucionalizadas respondem ao desejo de tranqüilidade, acenando com a eliminação do sofrimento, as HQs aceitam a angústia da perda da vida, revoltando-se contra tal limite e recusando qualquer consolo.

Em outra revista, a Hellblazer, John Constantine, criado por Garth Ennes, é um homem atormentado, que tem em seu caminho o próprio Satanás.

No episódio Um patife nos portões do inferno, Constantine questiona a doutrina cristã e seus representantes, reiterando a crítica já percebida nas atitudes de Jesse. A história de John mescla a ficção (a fuga de Satanás) com a realidade violenta de uma grande metrópole (no caso, Londres), onde uma guerra entre traficantes e agentes do governo resulta em um verdadeiro extermínio de vidas. A palavra, proferida por Deus e soprada pelo Espírito Santo, passa a não ser mais digna de confiança. O homem critica a verdade absoluta imposta pelas igrejas e o sentimento religioso, abalado pela racionalização, invade as páginas das HQs, cujas personagens vivem avaliando a si e ao mundo, sob o ponto de vista da eternidade.

Diante das HQs atuais, a crítica depara-se com a forte presença de temas pertinentes à sociedade pós-moderna, desmentindo a suposição de que sejam um veículo comunicativo alienante, como muitos afirmaram no passado; como qualquer forma de arte as HQs se transformam através dos tempos, modificando seus diferentes elementos, levantando temas inusitados e apresentados as aflições individuais e coletivas. Ao buscarem em diferentes áreas do Saber, inspiração para suas histórias, as HQs se distanciam do mero entretenimento e entram no domínio de leituras que provocam reflexão. Nesse trânsito, o aspecto interdisciplinar sse faz presente, com temas que vão desde a mitologia clássica até a ficção científica, com criaturas infernais e mundos em decomposição, exigindo para a sua análise que se recorra a diferentes áreas do conhecimento. Nesse universo híbrido de tendências e formulações, as HQs obrigam os estudiosos a teorizarem sobre elas e convidam seus leitores a prestarem atenção, não só nos problemas do cotidiano, mas também a pensar no inefável, no que é condenado a ser radicalmente incerto.

Literariamente falando, as HQs não são vanguarda, porém como os decadentistas, são a nevrose do novo. Exibindo monstros, escuridão, explosões de planetas ou de galáxias, elas sugerem a morte de uma época e a explosão da pós-modernidade; representando a luta do bem contra o mal, retratam a nostalgia da tradição; cultivando o exótico e o surpreendente em seus textos e desenhos, recusam a massificação globalizada. Nem alta literatura, nem simples cultura de massa, as HQs captam a temperatura de esgotamento do cotidiano e contaminam suas páginas com o vírus do desespero e da violência.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BACHELARD, Gaston. O direito de sonhar. Trad. José Américo Peçanha e outros. 2ª ed. São Paulo: DIFEL, 1986.

GARGANI, Aldo. A experiência religiosa como evento e interpretação. In: DERRIDA, Jacques e VATTIMO, Gianni (orgs) A religião. Trad. Roberta Barni. São Paulo: Estação Liberdade,2000.

 

Batman - Vigilantes de Gotham. São Paulo: Abril Jovem, nº 100, 1998.

Estranhos no Paraíso. São Paulo: Abril Cultural, nº1, 1999.

Hellblazer. São Paulo: Tudo em Quadrinhos, nº 11, 1999.

Preacher - Guerra Santa. São Paulo: Fractal, nº 17, 2000.

Superboy -Funeral para um amigo. São Paulo: Abril Jovem, nº 26, 1999.

Superpower - Liga da justiça. São Paulo: Abril Jovem, nº 34, 1996.

The Dreaming - O julgamento de Caim. São Paulo: Tudo em Quadrinhos, nº 1, 1999.

Wizard. Rio de Janeiro: Ed. Globo, nº 14, 1999.