A MÃE DE UM RIO: UM LOGOS FEMININO

Tatiana Alves Soares (UNESA/UniverCidade)

 

Agustina Bessa-Luís, considerada um dos expoentes da literatura portuguesa contemporânea, apresenta em sua produção literária um redimensionamento dos cânones instituídos, numa revisão de valores que inclui uma renovação lingüística.

A mãe de um rio conta a história de Fisalina, jovem criada em uma aldeia que parece ter parado no tempo. Dotada de uma inquietação e irreverência que a fazem destoar dos demais habitantes do lugar, Fisalina recorre ao auxílio da entidade conhecida como Mãe do Rio, na tentativa de escapar das rígidas regras que a impedem, inclusive, de se unir a alguém de fora da aldeia. Após um mergulho nas grutas, conduzida pela Mãe, ela acaba por ter seus dedos metamorfoseados em ouro, marca característica da entidade. Apesar dos esforços para esconder a prova de sua transgressão, a jovem tem seu segredo descoberto durante uma festa religiosa. Para fugir da cidade, onde todos tentam apedrejá-la, Fisalina isola-se nas montanhas, condenada a errar eternamente, até que alguém com ela troque de lugar.

A trajetória de Fisalina, que pode ser analisada à luz de interpretações antropológicas e psicanalíticas, simboliza a jornada do ser rumo à individuação. A narrativa realiza ainda uma reflexão sobre o papel da mulher na sociedade. Algumas imagens, como a da mãe, a da água e da alma, constituem elementos recorrentes no texto, e a polissemia de tais termos torna-se ainda mais expressiva por serem eles palavras-chave da obra. Desse modo, o presente estudo enfoca a relação significante/significado trabalhada por Bessa-Luís como eixo estruturador da narrativa em questão.

O primeiro aspecto a ser considerado diz respeito à personagem-título: A Mãe do rio. Tal personagem, que se aproxima do arquétipo da Grande Mãe, permite que o processo de autoconhecimento vivenciado por Fisalina se dê por meio de uma identificação com a representação da divindade pagã. Além disso, o fato de evocar lembranças referentes a eras matriciais enfatiza a não-adequação da personagem aos limites impostos pela rígida cultura patriarcal. A mãe de um rio trabalha, em um nível simbólico, imagens coletivas (arquétipos) e que remetem ao mesmo tempo a doutrinas religiosas (paganismo e cristianismo) e a narrativas lendárias (a história da Mãe do rio, criatura mágica).

A história tem início com a descrição de um mundo completamente diferente daquele que hoje conhecemos:

Antigamente, sim, antigamente, a terra tinha a forma quadrada e um rio de fogo corria na superfície. Não havia aves nem plantas, as águas estavam nos ares como nevoeiros cor de ferro e os ventos não as tinham distribuído ainda pelos quatro cantos agudos da Terra. (...) Não existia o trigo nem a mão humana, nem mesmo o sono ou a dificuldade, que foi o segundo grito da criação. (BESSA-LUÍS, A. (1981), p. 9.)

Apesar de se situar em um espaço e tempo definidos, a narrativa apresenta a referência nostálgica a um tempo anterior à Criação, pré-adâmico, marcado pela conciliação de termos opostos. O fragmento inicial evoca, ainda, a doutrina das teogonias gregas, visível sobretudo na imagem do rio de fogo. A obra de Hesíodo tem sua origem em nostálgicas rememorações que, transfiguradas em mitos ou arquétipos, na verdade traduziriam o desenvolvimento psíquico do indivíduo.

A analogia entre o surgimento das divindades e o processo de autoconhecimento reflete o caráter arquetípico presente na jornada de individuação, numa sugestão de que o indivíduo, à medida que assume o seu verdadeiro eu, desperta o deus que traz dentro de si. Significativamente, o nome da protagonista deriva de físon, topônimo do grego pheíson e do latino phisõn, que significa “um dos quatro grandes rios do Paraíso terrestre” (Apud CHEVALIER, J. (1990), p. 878.), imagem ligada às teogonias presentes no momento inicial da narrativa.

Após as reflexões iniciais, a narradora descreve a Mãe do rio, destacando suas habilidades. Apesar de ser apresentada como uma mulher sem nada de extraordinário, a Mãe do rio conhece a linguagem das gralhas, sua existência já dura mil anos, e é dotada de uma missão: ela guarda o rio, numa imagem a ser analisada posteriormente. O fato de dominar a linguagem dos animais aproxima-a do estatuto da divindade, uma vez que o Verbo é o elemento fundamental de qualquer criação.

Mais do que simplesmente compreender a linguagem das gralhas, a Mãe as controla, intensificando o poder de que aparece revestida. É apresentada como um ser atemporal, anterior à Criação, numa caracterização semelhante à encontrada nas religiões pagãs, cuja divindade aparece em comunhão com a natureza. Elementos aquáticos e lunares interagem com a divindade harmoniosa que preside os mistérios. Fisalina, demostrando a sintonia com a energia da Physis detectada inclusive em seu nome, também fala a linguagem da natureza. Sua ligação atávica e sensorial com o Cosmo confere um ar panteísta à narrativa.

A nostalgia manifestada por Fisalina em relação ao tempo da Mãe traduz a sintonia entre aquela e a criatura que um dia abençoou a aldeia. E, como se atendesse a um chamado, Fisalina sabe exatamente como agir: suas atitudes são ritualísticas, como o ato de bater três vezes na porta, aguardar o momento certo e entrar. Além disso, dirige-se à criatura como a uma deusa, com reverência e confiança:

Tenho muito que te dizer, ó água profunda. Vivi vinte anos na minha aldeia, e as ruas perseguiram-me e fecharam-se à minha frente, cresceram como trigo de pedra, e eu não posso sair do meio delas. (...) Ouve-me, ó ventre de um rio. (BESSA-LUÍS, A. Op. cit., p. 25-26. Grifos nossos.)

(...) Procurei-te para que me ensinasses a encontrar a saída da minha aldeia e escapar-me dela com esse tocador de sinos (...). Descobre o meu coração, ó água profunda; eu não o posso fazer. (Ibidem, p. 28. Grifos nossos.)

Assim, Fisalina pede à Mãe que lhe desperte a alma feminina, seus segredos e princípios. A herança que lhe será transmitida é repleta de rituais que, ao imitarem a magia da natureza, representam a tentativa de retorno ao ciclo natural. A trajetória de Fisalina, marcada pela presença daquela que se assemelha à Deusa pagã, exprime um conteúdo inconsciente reprimido pelo monoteísmo cristão. A figura da Mãe do rio condensa símbolos que se articulam entre si, remontando a um feminino arquetípico que reflete, metonimicamente, a condição da mulher na sociedade patriarcal. A imagem da Mãe, associada aos cultos agrários, é aniquilada pela religião do Pai, que, ao sacralizar o elemento masculino, exclui o feminino. Nas palavras da Mãe, a tristeza por não mais ser venerada nem reconhecer as pessoas:

(...)Já não sou mais capaz de cantar como quando bebia sumo de medronho, e os meus pés já não sentem o murmúrio da terra. O povo da aldeia esqueceu-se de mim, e eu não sei já reconhecer as novas gerações de crianças. Todos são iguais, todos são iguais!... (Ibidem, p. 14-15.)

Observe-se que o lamento da Mãe evidencia um esquecimento mútuo: por não ser mais lembrada pelos membros da aldeia, perde a capacidade de conhecê-los. A falta de convivência com os homens faz deles estranhos, e é significativo o fato de ela os achar iguais, numa denúncia da apatia que os caracteriza, fazendo deles seres sem identidade. Não por acaso, Fisalina é a única personagem a ser nomeada, o que a distingue ainda mais dos outros habitantes do lugar.

A figura da Mãe liga-se ao princípio do eterno feminino, da água, da criação, e ambas as simbologias estão interligadas. Ambos - mar e mãe - referem-se ao princípio, às origens. Desse modo, A mãe de um rio estrutura-se como um mito de origem que acena para um resgate do sagrado feminino, mostrando ser a malignidade a ele associada uma estratégia maniqueísta da polarizada sociedade patriarcal. As águas, sobretudo as turvas e profundas, traduzem as forças do inconsciente, que, no caso de Fisalina, querem vir à tona. Representando a água em seu aspecto noturno - esfera, portanto, do misterioso e do inconsciente -, a Mãe é ainda mais assustadora porque é, na verdade, o próprio tempo o que constitui o objeto de sua guarda.

Fisalina fica no lugar da Mãe por ter obedecido a um chamado. Única na aldeia apta a herdar o legado da Mãe, é fadada a guardar o rio até que surja a próxima guardiã. Num redimensionamento do mito de Caronte, barqueiro encarregado de transportar os mortos, é de vida que fala A mãe de um rio. A água como metáfora do tempo que (es)corre fica patente na imagem da troca de guardiãs. O tempo flui, e sua regeneração pressupõe a mudança:

(...)Há muito tempo que não me encontro com as criaturas, eu quase nada sei a respeito delas, elas nada têm que ver comigo. Os guardadores das verdades não são eternos, eles precisam de ser substituídos.. (Ibidem, p. 26-27.)

A substituição ansiada pela Mãe ocorre após o mergulho ritual de Fisalina, que se transforma ao contato com a água. Até mesmo a descrição do ambiente expressa a renovação: ao chegar, a protagonista depara-se com um local lúgubre, pesado, opressivo, condizente com a amargura de sua guardiã. Já a água nova que parece brotar dos pés da moça traz a limpidez de sua nova protetora:

(...)Toda a luz provinha daquelas paredes rugosas. (...)Ela viu a polpa dum lençol de água que palpitava no fundo duma cova imensa. (...)O fecundo suspiro da água subiu até o seu coração, e ela sentiu que os dedos da mão direita eram tocados pelo rápido salto do rio que ali nascia.. (Ibidem, p. 33-34.)

Note-se que a narrativa fala de um fecundo suspiro da água, aludindo ao seu caráter demiúrgico, sugerindo o nascimento de uma nova Fisalina.

Outro elemento digno de destaque é o riso convulsivo da moça durante sua iniciação. O júbilo intenso do momento é extravasado em sua risada, aliando liberdade e prazer: “(...)Uma alegria extrema a invadiu, e o seu riso encheu as galerias de pedra, desdobrou-se, trinou e multiplicou-se como guizos agitados consecutivamente.” (Ibidem, p. 33-34.)

Fisalina, que até então se mantinha triste e solitária, emite um riso catártico após o ritual nas águas. Mais do que qualquer outra atitude, o riso marcará a transformação por que passa a protagonista. O acesso de riso, característico de algumas personagens de Agustina, traduz a irreverência que as distingue. Em outra passagem, ela sente vontade de rir da pieguice do namorado, num indício de sua mudança:

-Vai-te embora - disse a rapariga. E, no seu íntimo, ria-se, e parecia-lhe tudo aquilo, queixumes e censuras, coisa fraca e sem resposta na sua alma.(...)Como ele a quisesse segurar e lhe tocasse, olhou-o com altivez e ele emudeceu e afastou-se.. (Ibidem, p. 38-39.)

A firmeza da nova Fisalina intimida o namorado, que se afasta. Mais próxima das verdades de sua alma, a moça repudia aquele que lhe parecia o único meio de fugir da aldeia. Sua nova postura é marcada pela altivez, termo que, entre outros, significa amor-próprio, confirmando a individuação da personagem. A referência à alma é expressiva, uma vez que esta constitui um dos termos-chave da narrativa. A primeira alusão a ela surge quando da apresentação da protagonista:

Sabia que nenhuma rapariga saíra ainda dali, que nenhuma se casava fora. Agora ela desejava contrariar essa velha lei, e, em rigor, a sua alma aspirava sempre a vencer e a transpor as leis que nunca tinham sido sequer suspeitadas. (Ibidem, p. 18.)

Além de indicar o temperamento transgressor da protagonista, a informação acerca de sua alma sugere a vida e a paixão presentes em seu íntimo, em contraste com a apatia e a resignação que parecem dominar o lugar. A voz destoante por ela representada atua ainda como indício , enfatizando a sua marginalização e prenunciando a tragicidade do desfecho.

Fisalina, ao buscar a saída da aldeia, encontra-a, literalmente. Mas seu exílio não é em vão, uma vez que justamente aquilo que ela mais criticava - a falta de vida nos habitantes - modifica-se quando ela é expulsa:

(...)Ninguém sabia porque ela gritava, mas olharam para Fisalina, e todo o povo lançou um murmúrio de cólera, atento a qualquer provocação. Ela começou a andar depressa, alguns rapazes atiraram-lhe pequenas pedras, depois subiram aos muros próximos para a ver correr, e tendo fechadas na mão outras pedras. Um ódio brutal e alegre estalou então, todos se puseram a lançar exclamações, a saltar, a atropelar-se; apontavam para a rapariga que fugia, tomando o caminho da serra da Nave.(...)Era quase noite, e o povo aglomerava-se nos limites da aldeia, insaciado e pregando na distância os olhos furiosos e que, pela primeira vez havia muitos anos, pareciam viver e animados de cordial crueldade. (Ibidem, p. 41-42. Grifos nossos.)

Apesar de desconhecer o motivo, todos se põem a perseguir Fisalina até a banir definitivamente. Talvez a missão da moça fosse a de restaurar a vida na aldeia, pois o ódio de que a multidão se reveste ao tentar apedrejá-la é justamente o que parece devolver-lhes a emoção. Cabe ressaltar os termos utilizados pela narradora, vários dos quais remetem à pulsão de vida: todos se tornam vivos e animados, como se a alma houvesse retornado a esses seres até então marcados pela apatia. Além de a palavra animados sugerir uma presença da Anima, componente feminino da psique masculina, responsável pela intuição e pelos sentimentos associados à mulher, o que corresponderia a um retorno a certos valores da Mãe, o termo referido liga-se etimologicamente a alma, uma relação que dispensa comentários: “Entregar a alma é morrer. Animar, dar uma alma a, é fazer viver.” ( CHEVALIER, J. Op. cit., p. 34.)

Desse modo, Fisalina, ao animá-los, devolve-lhes a vida. Observe-se a referência a uma cordial crueldade, sugerindo o retorno das emoções, presente na própria etimologia de cordial, derivado de coração, ainda que no caso tais paixões estejam direcionadas para a destruição. O incômodo provocado pela aparente incoerência entre os termos cessa ao examinarmos outras palavras da referida passagem, todas normalmente negativas mas que, paradoxalmente, remetem ao ímpeto de viver: o povo lança um murmúrio de cólera, e nota-se um ódio por parte de todos. A despeito da carga negativa impressa no vocábulo cólera, esta se traduz por um “impulso violento, ímpeto, agitação”, enquanto ódio é definido como “paixão que impele o indivíduo ao mal”. Os termos insaciado e furioso referem-se, igualmente, à avidez e à sofreguidão. Curiosamente, furioso também apresenta a acepção de “entusiasta, apaixonado, impetuoso”, em significações que parecem explicar o benefício advindo do rancor, a grande transformação propiciada por Fisalina.

A protagonista é banida em virtude de sua proximidade com a Mãe, representante da divindade feminina e de valores destoantes dos da aldeia patriarcal. Fisalina, nova guardiã dos mistérios femininos, tem o seu segredo descoberto durante a procissão do Senhor Morto, na significativa e eloqüente metáfora do poder feminino que irrompe no momento em que, simbólica e ritualmente, o Pai está morto. A Deusa desperta durante a celebração que marca a momentânea ausência da autoridade masculina, gerando a ira do povo.

A mãe de um rio denuncia uma estrutura sócio-religiosa repressora do sexo feminino. Fisalina, representante das vozes oprimidas, traz dentro de si a centelha divina da mudança. Ao tomar simbolicamente o lugar de sua antecessora, deixa aflorar a Deusa-Psique que habita o seu interior. Note-se que ela dirige-se à Mãe usando o vocativo ventre dum rio. A imagem do ventre constitui uma psicanalítica referência de regressão ao estágio narcísico, reforçando a viabilidade da leitura da Mãe como parte da personalidade da moça. Uma parte sufocada inclusive por ela, mas que, uma vez liberta, não mais aceita ser calada. A ânsia de transformação de Fisalina desperta nela o processo dinâmico que desde sempre caracteriza a divindade. Soterrar e esquecer a Deusa é soterrar e esquecer a Mulher, que, ainda que maldita, insiste em renascer.

 

BIBLIOGRAFIA

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