ARTICULADORES TEXTUAIS NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL (E, MAS, AÍ, ENTÃO)

Leonor Werneck dos Santos (UFRJ)

 

1. Introdução

Este trabalho resume a pesquisa desenvolvida para a Tese, homônima, elaborada para o Doutorado em Língua Portuguesa (cf. Santos, 2001). Pretende-se relatar os resultados obtidos e levantar o questionamento a respeito do uso de articuladores em narrativas literárias.

A pesquisa completa analisou o comportamento textual-discursivo dos articuladores textuais e, mas, aí, então e suas combinações, além da expressão e daí, em doze narrativas infanto-juvenis de autores brasileiros, como Ziraldo, Lygia Bojunga Nunes, Ana Maria Machado, num total de 1637 ocorrências desses articuladores em posição interfrástica. Questionou-se como a coordenação interfrástica é tratada na descrição tradicional, que freqüentemente generaliza a classificação desses elementos como conectivos coordenativos, advérbios ou mesmo “palavras denotativas”, desconsiderando seu papel de articulação dos textos.

Trabalhou-se, então, com a hipótese de que esses articuladores, no corpus, exercem prioritariamente um papel textual-discursivo, diferente do que apontam manuais didáticos e gramáticas da língua portuguesa. Assim, buscou-se estabelecer um critério para analisar e classificar tais articuladores, compreender sua função textual e identificar de que maneira a ocorrência dessas estruturas colabora para a progressão das narrativas infanto-juvenis. Observaram-se também alguns aspectos referentes à pontuação utilizada nos livros infanto-juvenis e o encadeamento lógico-narrativo dos segmentos discursivos.

2. Perspectiva teórica

A tradição gramatical não costuma analisar os articuladores e, mas, aí, então e suas combinações na perspectiva textual-discursiva; a observação de sua função restringe-se, exclusivamente, à classificação formal, morfológica, considerando-os, geralmente, conjunções coordenativas ou palavras de base adverbial com papel de conectivo. Esse tipo de classificação, entretanto, apóia-se em frases descontextualizadas, nas quais esses elementos aparecem apenas ligando orações.

Por outro lado, sabe-se que algumas estruturas tradicionalmente consideradas como coordenativas podem ser extremamente produtivas na estratégia de organização do discurso, por darem continuidade à narrativa e estabelecerem relações que vão além da mera classificação formal. Assim, por exemplo, as chamadas “conjunções aditivas” em posição interfrástica espelham muito mais do que as gramáticas tradicionais prevêem; para perceber isso, entretanto, é necessário deixar de analisar as frases individualmente para observá-las como um conjunto de enunciados articulados entre si.

Um dos primeiros aspectos que precisa ser examinado é o caráter sintático dos segmentos ligados pelos articuladores. Se é verdade que alguns desses elementos costumam relacionar termos sintaticamente equivalentes, coordenados, também deve-se levar em conta, seguindo Koch (1993: 111), que, na perspectiva textual,

torna-se inadequado falar em orações dependentes (ou subordinadas) e independentes (ou coordenadas), já que se estabelecem entre as orações que compõem um período, um parágrafo ou um texto, relações de interdependência, de tal modo que qualquer uma delas é necessária à compreensão das demais. [grifos da autora]

Na hora de refletir a respeito do papel dos articuladores, portanto, não parece relevante insistir na questão do status sintático, mas no caráter de interdependência, sintática e semântica, dos segmentos articulados. Por isso, na análise do corpus desta pesquisa (cf. Santos, 2001), foi possível atribuir subfunções de progressão temporal ou de causa/efeito - tipicamente subordinativas, segundo as gramáticas tradicionais - ao articulador e, que costuma ser tratado como coordenador aditivo.

 

3. Resultados

Na análise das narrativas infanto-juvenis, evidenciou-se que os articuladores apresentaram produtividade diferente, não apenas devido ao número de ocorrências, mas também devido à sua posição nos segmentos discursivos e suas diversas funções e subfunções (cf. Quadro 1).

Comparando os articuladores quanto à freqüência com que aparecem no corpus, percebe-se que e e mas sobressaem, com 83% do total de ocorrências. O predomínio desses dois articuladores também foi constatado por Smith & Frawley (1983), ao estudarem narrativas ficcionais nas quais observaram um índice de 80% de articuladores semelhantes (cf. seção 2.3.1). Essa supremacia, percebida em corpora distintos, confirma o papel textual-discursivo dos elementos de articulação e confere a e e mas um lugar de destaque, comprovando sua importância na estruturação das narrativas. Esses articuladores também exerceram o maior número de subfunções, onze cada - contra três de , seis de então e oito das combinações.

 

Quadro 1 Características principais dos articuladores no corpus

Articula-dor

Total de ocorrências (nº absoluto)

Segmento discursivo mais freqüente (%)

Função mais freqüente (%)

Subfunção mais freqüente (%)

E

799

Meio de parágrafo (40%)

Progressão Narrativa (74%)

Adição (39%)

MAS

569

Meio de parágrafo (32%)

Contrajun-ção (55%)

Ressalva (35%)

78

Início de parágrafo (40%)

Progressão Narrativa (100%)

Seqüência temporal (83%)

ENTÃO

136

Início de turno (60%)

Progressão Narrativa (80%)

Conclusão / finalização (52%)

Combi-nações

55

Meio de parágrafo e Início de turno (31% cada)

Progressão Narrativa (67%)

Seqüência temporal (30%)

No que concerne aos segmentos discursivos nos quais se inserem os articuladores, somente aparece prioritariamente iniciando parágrafos. Houve preferência pelo início de turnos no caso de então e das combinações, que também ocorrem com freqüência na posição de meio de parágrafo.

Com relação às funções e subfunções textuais-discursivas de cada articulador ou combinação, percebeu-se que, nos textos analisados, a progressão narrativa destacou-se como função mais recorrente - exceto no caso de mas, prioritariamente contrajuntivo. A função interacional surge sempre em segundo lugar, demonstrando sua importância nas narrativas infanto-juvenis, muitas vezes em momentos nos quais o narrador parece “conversar” com o leitor. Ressalte-se que o uso do articulador mostrou-se exclusivo da progressão narrativa e pouco apareceu em turnos de fala. Quanto à organização tópica, constatou-se, no corpus, que em poucos casos os articuladores e as combinações desempenharam essa função.

Outro aspecto relevante nesta pesquisa refere-se à observação das funções e subfunções características dos articuladores em posição interfrástica. Ainda que a progressão narrativa e a contrajunção possam ocorrer em posição intrafrástica, a interação e a organização tópica parecem ser funções mais comuns nos articuladores interfrásticos. Observando os exemplos (1) e (2), percebe-se essa oscilação no que se refere à posição dos articuladores nos segmentos e suas funções. Em (1’), é possível construir um só período unido pelo mas, mantendo o papel contrajuntivo de ressalva:

(1) - Mandou me chamar, dona Virgínia?

- Entre, Isabel. Sente-se.

A menina aproximou-se da cadeira indicada. Mas permaneceu de pé. (Bandeira, 1986:59)

 

(1’) - Mandou me chamar, dona Virgínia?

- Entre, Isabel. Sente-se.

A menina aproximou-se da cadeira indicada, mas permaneceu de pé.

Em (2’), ao contrário, os articuladores só podem aparecer iniciando período, para indicar, respectivamente, retomada e ruptura tópica - e o primeiro mas, nesse exemplo, não pode sofrer qualquer mudança na sua posição de iniciador de turno:

(2) Isso lembrou outras perguntas que Miguel queria fazer:

- Esses povos são da floresta também? E da planície, como você falou? Por enquanto, vimos só os das montanhas...

- Mas continuando, nas montanhas nascem os rios, os rios correm pelas matas, atravessam as planícies, e esses povos todos são vizinhos e irmãos. A gente vai mudando muito pouco de um lugar para outro, vai só se sentindo diferente, à medida que fica mais frio ou mais quente, tem mais lã ou fibra para tecer, coisas assim. Mas agora chega de tanta pergunta. É hora de dormir, que ainda temos muita coisa pela frente. (Machado, 1985: 30)

(2’) Isso lembrou outras perguntas que Miguel queria fazer:

- Esses povos são da floresta também? E da planície, como você falou? Por enquanto, vimos só os das montanhas...

- Mas continuando, nas montanhas nascem os rios, os rios correm pelas matas, atravessam as planícies, e esses povos todos são vizinhos e irmãos. A gente vai mudando muito pouco de um lugar para outro, vai só se sentindo diferente, à medida que fica mais frio ou mais quente, tem mais lã ou fibra para tecer, coisas assim, mas agora chega de tanta pergunta. É hora de dormir, que ainda temos muita coisa pela frente.

Segundo Berreta (1984), o fato de elementos de articulação desempenharem papéis textuais - como os citados nesta pesquisa - pode ser comprovado pela impossibilidade de transpor o segmento para o discurso indireto mantendo o articulador. Isso posto, compreende-se por que se torna difícil, em alguns casos, alterar a estrutura do período, substituindo o ponto por uma vírgula, por exemplo.

Por isso, faz-se necessário olhar para o papel desses elementos sob o prisma do discurso, observando a articulação interfrástica, estabelecida entre turnos, períodos, parágrafos, ou seja, porções do texto de diferentes extensões - sem desconsiderar que um dos segmentos articulados pode até estar implícito. Assim, como lembra Mc. Carthy (1991: 49):

When we look at a lot of natural spoken data, we find the basic conjunctions and, but, so and then much in evidence, and used not just to link individual utterances within tunrs, but often at the beginning of turns, linking one speaker’s turn with another speaker’s, or linking back to an earlier turn of the current speaker, or else marking a shift in topic or sub-topic (often with but). In this sense, the conjunctions are better thought of as discourse markers, in that they organise and “manage” quite extended stretches of discourse. [grifos do autor]

 

4. Conclusões

É necessário ressaltar que as funções apontadas nesta pesquisa inter-relacionam-se, mas, por questões práticas e didáticas, optou-se por separá-las, destacando a predominante. Por isso, mesmo em casos nos quais se perceberam duas ou mais funções possíveis, os articuladores foram classificados segundo o papel de destaque no segmento.

Fez-se, portanto, uma proposta de classificação com base nos papéis mais pertinentes dos articuladores percebidos no corpus, sem preocupação com uma descrição exaustiva, pois, como alerta Perrotti (1992: 164):

Numa análise que leva em conta o seu papel no encadeamento de enunciados, não cabe para esses conectores qualquer denominação, apenas uma descrição que dê conta de seu comportamento sintático e das relações semânticas que podem estabelecer. Uma descrição em termos de possibilidades permite, inclusive, deixar em aberto perspectivas para as novas relações que esses conectivos podem vir a indicar. [grifos nossos]

Além disso, saliente-se que foram analisados os articuladores em textos narrativos, mas as funções e as subfunções por eles desempenhadas podem aparecer em outros tipos de textos. Ocorre, porém, que algumas parecem ser mais freqüentes em narrativas, onde têm papel fundamental, como a interação e a progressão narrativa.

Por fim, destaque-se que, apesar de se ter procurado escolher, para esta pesquisa, livros infanto-juvenis representativos de várias faixas etárias e níveis de leitura, é certo que o recorte feito, doze obras, serve apenas como exemplo do que ocorre com os articuladores textuais na produção literária para crianças e adolescentes. Da mesma forma, a nomenclatura apresentada é uma proposta de classificação, válida como ponto de partida para rediscutir as análises tradicionais e as lacunas encontradas quando alguém se predispõe a estudar o que há nas entrelinhas dos textos.

O principal propósito desta pesquisa foi descrever alguns dos papéis textuais-discursivos dos articuladores. Não é objetivo deste trabalho sugerir mais uma nomenclatura para as infinitas classificações de que são vítimas alunos do ensino fundamental e médio, já obrigados a memorizar termos extremamente complexos. Mas espera-se que algumas das constatações aqui registradas sirvam, também, para se repensar o que vem sendo feito na escola - conforme defende Travaglia (1996), ao sugerir exercícios de leitura e produção de textos orais e escritos para que os alunos possam perceber como se organiza o texto e como suas partes se articulam.

Além disso, pretendeu-se alertar para o fato de que não se podem enfocar essas narrativas da mesma maneira que os textos não literários, pois características típicas daquele tipo de texto não necessariamente aparecem neste. O mesmo se pode dizer dos diálogos entre personagens, diferentes da conversação espontânea. Outro item que merece atenção no corpus é a mescla de tópicos e a repetição, por vezes exaustiva, de articuladores como e e - tão condenada por professores e livros didáticos. O fato de muitos dos livros citados terem sido premiados no Brasil e no exterior comprova não apenas a qualidade literária, mas também a qualidade da linguagem, por isso as críticas levantadas na escola não parecem fazer muito sentido: o aluno não pode usar , mas Ana Maria Machado, sim.

Portanto, fez parte dos objetivos deste trabalho deixar claro - e, se possível, colaborar para o ensino de leitura e produção textual - que e, mas, aí, então e suas combinações precisam ser considerados articuladores extremamente produtivos e, somente observando a coesão textual propiciada pelos articuladores, é possível captar os diversos efeitos de sentido do texto, como lembram Moe & Irwin (1988: 7-8) :

...in order to foster reading development, educators must be aware of the factors within a text that affect understanding. The existing evidence suggests that cohesion helps the reader achieve coherence and therefore facilitates comprehension.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BANDEIRA, Pedro (1986). A marca de uma lágrima. 51.ed. São Paulo: Moderna.

BERRETA, Monica (1984). Connetivi testuali in italiano e pianificazione del discorso. Linguistica Testuale - Atti del XV Congresso Internazionale di Studi. Roma: Bulzoni. p. 237-254.

KOCH, Ingedore G. V. (1993). Argumentação e linguagem. 3. ed. São Paulo: Cortez. (1ª edição: 1984)

MACHADO, Ana Maria (1985). De olho nas penas. 7.ed. Rio de Janeiro: Salamandra.

MC CARTHY, Michael (1991). Discourse analysis for language teachers. Cambridge: Cambridge University Press.

MOE, Alden & IRWIN, Judith W. Cohesion, coherence and comprehension. In: IRWIN, Judith W. (ed.) (1988). Understanding and teaching cohesion comprehension. Newark: Int’l Reading Ass.

PERROTTI, Edna Mª B. (1992). O processo de conexão de orações no texto: coordenação ou subordinação? São Paulo: PUC-SP. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa)

SANTOS, Leonor W. dos (2001). Articuladores textuais na literatura infanto-juvenil (e, mas, aí, então). Orientadora: Maria Eugenia Lamoglia Duarte; Co-orientadora: Ingedore G. Villaça Koch. Rio de Janeiro: UFRJ/ Faculdade de Letras. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa)

SMITH, Raoul N. & FRAWLEY, William J. (1983). Conjunctive cohesion in four English genres. Text. Amsterdam: Mouton. v. 3-4. p. 347-374.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos (1996). Gramática e interação: uma proposta para o ensino da gramática no 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez.