LINGÜÍSTICA E TEORIA DA LITERATURA
RELAÇÕES E LIMITES

Maria Antonieta Jordão de O. Borba

 

Quando a Teoria da literatura passou a se firmar a partir de um modelo estrutural, realizou de modo específico uma atividade interdisciplinar com a Lingüística, já que foi desse campo do saber que extraiu os principais conceitos que viriam a ser empregados na investigação do discurso literário. Por ter sido essa a maneira pela qual a Teoria dialogou com a Lingüística, as categorias formuladas por Saussure no Curso de Lingüística geral (SAUSSURE, 1974.) foram quase todas retomadas “tal e qual” pelas metodologias de análise da literatura. Hoje, pode-se então dizer que a natureza da interdisciplinaridade aí processada foi da ordem da mera apropriação, se bem que esse tipo de estratégia mostrou-se mais evidente nos primeiros momentos do estruturalismo.

Apesar de o diálogo entre as duas disciplinas ter se restringido aos limites de transferência, é preciso reconhecer que não deixaram de ser expressivos os resultados decorrentes da mudança empreendida pelo discurso da crítica sobre o fenômeno estético. O conceito de signo lingüístico, por exemplo, favoreceu, no campo da Teoria, a inserção de novas noções e de novos pressupostos que diziam respeito não só à metodologia analítica, como também à própria concepção de texto literário. Tanto é que, quando percorremos algumas das manifestações da crítica da literatura, verificamos que as análises voltadas para o simples registro de técnicas formais, para a evidência dos acontecimentos do universo ficcional, para a explicação de um conteúdo passaram, pouco a pouco, a pertencer a um modelo pré-estru- tural, não condizente, portanto, com as últimas reflexões sobre o texto. Os teóricos puderam compreender que já não mais cabia à crítica insistir na atribuição de uma significação para o texto literário, caso isso ainda se pau- tasse na síntese do enredo, nas referências extratextuais ou no sentido positivo (BARTHES, 1979, p. 43), conforme nomenclatura da fórmula de Hjelmslev (HJELMSLEV, 1975.) que serviu inclusive, para que o último Roland Barthes repensasse, mais tarde, suas categorias sobre a “análise estrutural da narrativa”. Quando ainda se falava da literatura pelo sentido positivo, o pressuposto era o de que os significados dos termos ou expressões poderiam ser depreendidos do texto, independente de outros significados, termos ou expressões do sistema desse texto. A escrita pautada no sentido positivo sempre esteve intimamente ligada à idéia de recontar ou parafrasear o literário, às vezes pela adjetivação, às vezes sem a recorrência aos qualificativos. E, se para a Lingüística o signo deixou de constituir a simples união entre um termo e uma idéia, deixou também de interessar à Literatura qualquer análise cujas informações se limitassem a registar as técnicas de escrita, os grandes “achados” formais ou comentários sobre as referências do discurso ficcional. De fato, através de Saussure, o signo passou a se impor como resultante de uma imagem acústica (SAUSSURE, 1974 , p. 20) associada a um conceito, guardando uma significação em seu interior [e mais, uma significação na dependência da categoria de valor (Ib., 133) o que, por sua vez, implicava feixe de significações]; passou ele também a exigir que os estudos partissem de outros princípios, tanto no campo nocional da Lingüística, quanto no da Literatura.

Pensemos, inicialmente, no abalo sofrido por um modo de aproximação com o discurso literário sob o viés do paralelo entre as duas disciplinas, a partir de uma das primeiras e mais conhecidas assertivas de Saussure. Para a Lingüística, se a significação de uma palavra previa que ela fosse considerada na simultaneidade com outras significações, a língua não podia ser reduzida a uma simples nomenclatura (Ib, p. 79 e 133). Para a Teoria, do mesmo modo, se a significação do signo literário exigia que ela fosse estabelecida por rede paradigmática, abarcando significações diferenciadas no universo da ficção, já não mais era possível entender o significado da palavra na literatura pela simples conexão com o referente que tal palavra nomeava. Impunha-se, por isso, o abandono da idéia de sentido positivo do termo, já que cada vocábulo, cada expressão, cada frase, tudo, enfim, fazia valer sua significação em negatividade. E significação em negatividade só seria encontrada por comparação e confronto, fosse por semelhança, por diferença ou por diferença na semelhança, mas sempre pela verificação relações passíveis de serem estabelecidas com outros termos, outras expressões, outras frases, outro modo de compor o discurso.

O quadro conceitual assim instaurado indicava, em suma, que era preciso ultrapassar as críticas restritas ao comentário, às alusões ao enredo, ao estilo, aos personagens. Paralelamente, era necessário ainda que os trabalhos deixassem de dar tanta importância à verificação das influências, já que, por essa via, o que se obtinha como resultado era apenas a satisfação de certas curiosidades literárias, a exemplo daqueles que viam, no ofício da imitação, o melhor da genialidade de um escritor. Quanto a esse último dado, não é difícil constatar várias rubricas tão duradouras quanto superficiais na classificação de certas obras. Basta lembrarmos da inserção míope de escritores de culturas diferenciadas no mesmo conjunto, às vezes, unicamente porque tinham núcleos temáticos comuns. É bem possível, aliás, não ter sido outro o motivo que mais fortemente contribuiu para que permanecesse, por longo tempo, o equívoco de se produzirem recepções de D. Casmurro pelo olhar embaçado do sentido positivo. Há, até mesmo, indícios de que a semelhança do tema do adultério tenha sido o fator que instigou a aproximação de D. Casmurro a certas ficções de intenções antiburguesas como Madame Bovary e O Primo Basílio. Essa hipótese, aliás, se confirmada, certamente encontraria ressonância em fato já bastante conhecido entre nós: a fixação da crítica em torno da traição da tão celebrizada personagem feminina de D. Casmurro, como se condenar ou absolver Capitu fosse a marca distintiva do grande romance de nossa tradição artístico-literária. Esse cacoete da crítica constituiu apenas um, dentre vários outros gestos recorrentes, que Silviano Santiago traz para debate em seu conhecido ensaio “Retórica da verossimilhança” (SANTIAGO, 1978, p. 29-48).

A referência a esse artigo suscita de imediato um comentário a respeito de um outro aspecto bem ilustrativo de nossa discussão sobre as relações e os limites entre a Lingüística e a Literatura. Trata-se da urgência com que o pensamento teórico passou a rever a crítica impressionista. Ainda com relação a Machado, ensaístas como Santiago, que já haviam estabelecido discussões teóricas sobre o Estruturalismo, puderam perceber que a crítica impressionista acabava se restringindo a criar uma falsa polêmica, envolvendo acusações e desculpas acerca da repetição de temas em nosso escritor. Ao invés de os críticos ficarem martelando na mesma tecla, o importante, segundo o crítico brasileiro, seria verificar, na obra de Machado, o esforço criador em busca de uma profundidade que só seria possível pelo exercício consciente da imaginação e dos meios de expressão de que dispunha o grande romancista. Para ilustrar a necessidade dessa demanda, Santiago cita trechos bastante ilustrativos das subjetividades e adjetivações que caracterizariam a crítica de um Augusto Meyer, por exemplo, quando este observa que Machado ganha muito em ser lido aos trechos, ou a largos intervalos de leitura, para que o esquecimento relativo ajude a sentir, não a inércia da repetição e os lados fracos, mas a graça original dos melhores momentos. (ibidem, p. 30.)

Como se pode ver, esse tipo de “crítica do gosto” nada mais traduzia a não ser a leveza descompromissada de uma escrita cujo alicerce único residia na noção de sentido positivo, que discorria sobre as impressões mais intimistas de quem só queria dar sua opinião. Em contrapartida, não é difícil detectar, na proposta de reflexão sobre D. Casmurro empreendida por Silviano Santiago, o pressuposto implícito de significação e valor, ainda que o ensaísta não faça qualquer alusão a categorias lingüísticas. Veja-se, nesse sentido, a observação sistêmica, no universo ficcional machadiano, das questões relativas ao ciúme, aos pontos de vista masculinos e femininos acerca do amor e do casamento, aos jogos sociais que eles têm de representar, analisados desde o romance Ressurreição, aspectos já de si suficientes para se deduzir que a crítica obtida com base nas relações de signos em negatividade precisou percorrer etapas implicadas por tessituras várias, tais como: a) signos em ausência face àqueles em presença; b) o valor extraído das significações tematizadas por personagens; c) o sistema da obra entendida na intertextualidade com outros sistemas; d) a langue literária de Machado nas relações com suas respectivas paroles.

Certamente não foi por outro caminho que Santiago chegou a elaborar uma interpretação de importância capital para se compreender a complexidade do romance machadiano, cuja originalidade fundou, na ocasião, um novo paradigma de leitura crítica da obra:

Qualquer uma das duas atitudes tomadas na leitura de D. Casmurro (condenação ou absolvição de Capitu) trai, por parte do leitor, grande ingenuidade crítica, na medida em que ele se identifica emocionalmente (ou se simpatiza) com um dos personagens, Capitu ou Bentinho, e comodamente já se sente disposto a esquecer a grande e grave proposição do livro: a consciência pensante do narrador D. Casmurro, esse homem já sexagenário, advogado de profissão, ex-seminarista de formação, consciência pensante e vacilante(?), que tem a necessidade de reconstruir na velhice, a casa de Matacavalos onde viveu sua adolescência. O romance de Machado é antes de tudo um romance ético [...]. No caso específico de D. Casmurro, identificar-se com Bentinho ou com Capitu é não compreender que a reflexão moral exigida pelo autor requer certa distância dos personagens ou do narrador, aliás, a mesma distância que Machado, como autor, guarda deles. (Ibidem, p. 32)

Embora a investigação epistemológica - atividade que deve também orientar a função da Teoria da literatura - já nos permita hoje ter uma noção mais clara do que significou a crítica construída com base na idéia de negatividade, só aos poucos os textos puderam revelar a sistematização pragmática desse postulado. Referimo-nos ao percurso que vai desde as análises guiadas por índices, catálises (BARTHES, 1976) até os artigos que acompanharam o momento em que o Estruturalismo passou por uma ampla revisão no campo das Ciências Humanas. Como se sabe, o resultado desse novo modo de compreender o sujeito e as produções culturais encontrou melhor visibilidade quando Michel Foucault repensou a história das idéias, Jacques Derrida revisou a história da filosofia e Roland Barthes reestruturou a leitura do discurso ficcional. Ainda que cada um desses pensadores tenha se voltado para projetos específicos, guardavam os três em comum uma mesma linha de força que veio a repercutir decisivamente para o surgimento de uma outra e diferencial prática na abordagem da literatura. Face à impossibilidade de comentar largamente a diversidade das polêmicas em torno dessa virada da crítica, lembramos apenas algumas de suas repercussões mais relevantes para o sistema intelectual brasileiro: a proposta de Análise Sistêmica, formulada por Luiz Costa Lima em sua vasta obra, de que ressaltam os livros Estruturalismo e teoria da literatura (LIMA, 1973), A perversão do trapezista - o romance em Cornélio Penna (Ib., 1976), Dispersa demanda (Ib. 1981); os ensaios do mencionado Silviano Santiago, em livros como Vale quanto pesa (SANTIAGO, 1982.), Uma literatura nos trópicos (Ib. 1978.) e Nas malhas da letra (Ib. 1989).

Não é por acaso que deixamos, por último, o nome do teórico, crítico e semiólogo Roberto Corrêa dos Santos na listagem tão representativa desses nossos contemporâneos que leram a literatura com a maior precisão. O motivo de trazer para esse espaço o nome de Roberto Corrêa é de ordem estratégica. A intenção não é, portanto, tratar de suas mais recentes publicações, até porque o caráter filosófico dessas obras - Tais superfícies - Estética e Semiologia (SANTOS, 1998), Modos de saber, modos de adoecer (Ib., 1999), Imaginação e traço (Ib. 2000), Oswald - atos literários (Ib., 2000), O livro fúcsia de Clarice Lispector (Ib., 2001) - configura uma fase de sua produção intelectual bem diferente daquela que aqui nos propusemos pensar. Tal escolha deve-se, particularmente, ao fato de que no livro Clarice Lispector (Ib., 1986.), o autor produz um texto de onde se podem detectar tanto as primeiras categorias do estruturalismo quanto outras, relacionadas ao princípio de interpretação, que surge no pós-estrutu- ralismo .

De fato, o ensaio “Leitura do conto A imitação da rosa” é modelar quanto à mudança de paradigmas de que estamos tratando, na medida em que anuncia já dois movimentos da interdisciplinaridade aqui discutidos: as relações da Teoria com a Lingüística - modelo estrutural - e os limites de tais relações, deflagrados a partir das reflexões de Foucault, Derrida e Barthes.

Quanto ao primeiro movimento, aquele relativo à influência do estruturalismo, o texto “Leitura de A imitação da rosa” parece, a princípio, querer estabelecer um certo parentesco com essa corrente da literatura [estruturalismo], ao apresentar, logo de início, um amplo quadro esquemático em que se visualiza o resultado do método analítico a que recorreu Roberto Corrêa para se aproximar do conto clariceano. Observa o crítico que a narrativa de “A imitação da rosa” transita por três paradigmas, definidos como “tempo de obediência” ou “P1”, “tempo de ruptura” ou “P2” e “futuro previsível”. A cada um desses três conjuntos agrupam-se signos em ordenação propositalmente destituída da cronologia original dada por Clarice. Com esse outro arranjo - movimento semelhante ao da análise - fica bem visível para nós, leitores, que a variação das emoções da personagem Laura se liga a signos em negatividade, o que justifica a composição de paradigmas temporais distintos. O tempo em que Laura corresponde às expectativas sociais só se configura como tal face ao valor do significado de “obediência”, comparado a seu oposto ¾ o outro tempo, “tempo de ruptura” de Laura com tais expectativas. De um lado, no campo da Laura socialmente “exteriorizada”, listam-se vocábulos e sintagmas vários, todos condizentes com a ilusória convicção do que ela própria, Laura, imagina que deveriam ser as atitudes orientadoras de seu comportamento. É por isso que trechos como “insignificância com reconhecimento”, “falar sobre coisas de mulheres”, “atender o marido” encontram-se subordinados à idéia de submissão. De outro, no campo da “ruptura”, aparecem expressões e frases de um momento em que Laura se percebe, em seu duplo, de modo inverso. Nessas ocasiões, encontra-se liberta da “casa arrumada”, da "bondade autoritária” da amiga Carlota, do gesto de Armando “recostado com abandono” e “esquecido de sua mulher”. O leitor tem a oportunidade de reencontrar os pedaços de possíveis orações e os oxímoros que o remetem para uma outra fase ¾ a fase da ruptura, comparável a uma espécie de surto de libertação vivenciado pela personagem, fenômeno que, segundo nos parece, assemelha-se à idéia de mímesis [“imitação”], particularmente àquilo que nesse conceito potencializa-se como o “vir-a-ser”. É um momento tematizado por palavras que condensam a marca de total oposição ao que seria comum àquela moça da Tijuca, que passou dos braços de um pai para os do marido através de um padre. Frases como “terrível independência”, “ponto vazio horrivelmente maravilhoso”, “tranqüila em seu isolamento brilhante” representam o sinal oposto a outras expressões que caracterizariam a face obediente - aquela em que Laura se vê em seu “vestido marrom de gola creme”, preocupada com a limpeza e ordem de sua casa, resignada com a desculpa da “insuficiência ovariana” como causa para os quadris largos demais.

Se parássemos por aqui a leitura de Roberto Corrêa, nitidamente fundada no princípio de que “na língua só há diferenças”, é bem possível que os receptores de nosso texto concluíssem pela inserção única das reflexões desse ensaísta num modelo estrutural, em plena conformidade com os passos iniciais da Teoria em diálogo com o Curso de Lingüística Geral. No entanto, o crítico não se submete ao aprisionamento do quadro que ele propositadamente constrói para desconstruir. E, para que possamos observar esse movimento do “fazer para desfazer”, será interessante acompanhar a cronologia de sua análise.

Inicialmente, Roberto Corrêa levanta a hipótese de que poderia seguir o modelo que, pela generalização, dividiria a narrativa em “equilíbrio” - momento anterior ao aparecimento das rosas como elemento desestruturador - , o “desequilíbrio” - no “envolvimento” e “contemplação das rosas” - e “novo equilíbrio” - momento posterior à entrega das rosas”. Apesar de parecer bem convincente essa divisão, dois são os motivos que fazem com que ele não explore o conto pelas seqüências textuais típicas do estruturalismo. Primeiro, porque as fases de “equilíbrio” e “desequilíbrio” já são indiciadas, desde o início do conto, através do ir e vir esquizofrênico entre a mulher obediente e aquela que rompeu com essa atitude. Segundo, porque o crítico entende que a narrativa de Clarice pode ter melhor aproveitamento pelas observações do que ele denomina “componentes mínimos”. A perspicácia de entendimento do quanto são importantes tais “componentes mínimos”, bem como o valor interpretativo do percurso daí resultante, constituem dois dos aspectos mais significativos para que a “leitura” do conto tome um rumo absolutamente diverso daquele que teria, caso se pautasse na análise de estrutura. Ao invés de atribuir-lhe um fechamento, sentido global ou interpretação, a análise desdobra a potencialidade de significados passíveis de ocuparem os significantes da ficção, concorrendo para que esses mais variados significados venham a eles se unir, e deixando, enfim, o texto ficcional explodir suas significações, sem qualquer auxílio prévio da rede paradigmática. O que importa agora não é mais a série de registros textuais relacionados a Laura, orgulhosa de sua “graça doméstica”, ou a Laura tomada pela sensação de ter agido tal qual “um gato que passou a noite fora de casa e, como se nada tivesse acontecido, encontrasse sem uma palavra um pires de leite esperando”. O que passa a interessar então será a exploração dos componentes do conto, na amplitude de sua variedade: desde o sinal de aspas na palavra “bem”, passando pela desconstrução do quadro estrutural composto de início, até a reflexão que quer acompanhar o próprio deslizamento da linguagem.

Como esse outro movimento do ensaio de Roberto Corrêa, ao acompanhar o próprio processo de escritura do conto “A imitação da rosa”, irá sempre dizer muito mais do que qualquer esforço metacrítico, acreditamos que um breve comentário sobre o modo como ele observa a palavra “perfeição” será suficiente para ilustrarmos sua inserção crítica num momento em que as reflexões sobre o literário desviam o olhar das grandes estruturas e entram em sintonia com o questionamento filosófico do pensamento ocidental. Observa ele que “perfeição” é uma espécie de “termo indecidível”, já que “passa a consistir um elemento referenciador das duas relações tidas por oponentes”. Isso implica dizer que o termo “perfeição”, tal como é empregado por Clarice, condensa forças pulsionais distintas. A primeira, referindo-se à domesticidade, como no trecho em que o narrador descreve Laura vivenciando o “prazer em fazer de sua casa uma coisa impessoal - de certo modo perfeita por ser impessoal”; a segunda, a força relacionada à mulher em estado de “liberdade”, quando, por exemplo, diz sentir-se “super-humana e tranqüila em sua perfeição acordada”. A palavra “perfeição” funciona, então, como um pharmakon, simultaneamente remédio e veneno, indiferenciada que se encontra na anterioridade de seu emprego lingüístico-ficcional. A leitura disponibilizada por Derrida para observar esse fenômeno, sintetizado sob a metáfora do pharmakon, insere-se decisivamente numa reflexão que se abre para lidar com o signo ficcional por uma nova vertente, a da interpretação, segundo pressupostos desconstrutivistas que rejeitam a idéia excludente da dicotomia de dois paradigmas; ao invés disso, sob esse novo viés, busca-se acompanhar o deslizamento dos significantes, característico de um período em que a Teoria se viu livre das amarras do Estruturalismo. Nesse sentido, o ensaio de Roberto Corrêa se afigura como um dos mais altos momentos em que tal passagem se vê atualizada, modelarmente, na crítica literária brasileira. Será também por assim se contextualizar que sua escrita se permitirá fechar sem concluir, além de ser tentada pela possibilidade de “abandonar o texto” literário e de interpretar o conto sem atribuir-lhe qualquer sentido unívoco, como se lê em:

A noção de interpretação que orienta esta leitura supõe que os ele- mentos todos se encontram em sua superfície textual. Menos que desejar ir direto ao aquém ou ao além do texto, a leitura, assim tomada, pressupõe o passo a passo, a disseminação significante, o toque da concretude do corpo do texto, sua degustação, enfim. [...]. Importa à interpretação não apenas o que no texto se critica - o alvo de sua mira - mas, principalmente, o como isso se dá, verificável mesmo a partir do exame de sua feitura e do exame da própria arma que o possa atingir. Nisso vai um duplo empenho: construir a linguagem relativa ao modo de ler, de forma a se capacitar para, recolhendo peças dessa outra arma que é o literário, recompô-la sob outro regime. (SANTOS, 1986, p. 31)

 

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