CAMINHO DAS ÁGUAS, POVOS DOS RIOS
UMA VISÃO ETNOLINGÜÍSTICA DA TOPONÍMIA BRASILEIRA
*

Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick (USP)
Maria Cândida Trindade Costa de Seabra
(UFMG)

porque toda esta costa do rio Real até Tatuapara ao longo do mar é cheia de arrecifes de pedra, que se espraiam muito, por onde não é possível lançar-se gente em terra, nem chegar nenhum barco se não for no Itapicuru. (Gabriel Soares, “com que se declara a terra que há do Itapicuru até Tatuapara”.)

 

Introdução

Qualquer estudo de toponímia brasileira, ainda que em perspectivas diversas e sob distintas orientações ou critérios de análise - histórico, ambiental, etnolingüístico ou psicossociológico, por exemplo - sempre envolve alguma referência a dois pontos nucleares: a posse do território pelo domínio dos caminhos terrestres e lacustres e a conquista espiritual dos locais.

Os primeiros permitiram o reconhecimento e os segundos garantiram a continuidade da presença dos alógenos pela implantação de novos credos e de outra cosmovisão. Na prática, são duas configurações, distintas por suas características físicas e emotivas, que acabam se cruzando em um eixo de influências e conseqüências polivalentes.

Águas e rios, religião e fé, desde o início da ocupação da terra, consubstanciaram os mitos dos homens. Signos ou símbolos de uma linguagem recriada, formaram os paradigmas de uma ampla rede onomástica, seguindo os percursos onomasiológicos mais flagrantes para a composição dos designativos. Como diz Cassirer, (1987: 57), cujo pensamento se invoca neste momento: “Señales y símbolos corresponden a dos universos diferentes del discurso: una señal es una parte del mundo físico del ser; un símbolo es una parte del mundo humano del sentido. Las señales son ‘operadores’, los símbolos son ‘designadores’ (...)”; “los símbolos poseen unicamente un valor funcional”.

O sistema hidrográfico brasileiro encerra uma riqueza pronunciada de cursos d’água, seja na distribuição quantitativa como em extensão e em volume. São tantos os rios notáveis, tanto os pequenos meandros interioranos opostos aos grandes desaguadouros costeiros, tantas as características potamográficas traduzidas em nomes, como os chamados rios de águas negras, brancas, claras e azuis, que a população generaliza o seu termo genérico, nem sempre distinguindo uns dos outros com facilidade, se córrego, riacho ou ribeirão; tudo é rio, existindo em qualquer lugar. Mas há aqueles que só pertencem a certos sítios, porque tipificados pelo meio ou pelos contatos lingüisticos nas fronteiras, como ocorre com os igarapés, paranás, corixos ou arroios, cada um deles revelando, em suas formas de expressão, as marcas de um grupo étnico distinto, ou uma determinada referência fáctica. Os objetos assim simbolizados, lingüisticamente, caracterizam variações vocabulares locais, com um raio diatópico mais ou menos preciso. De qualquer modo, são frutos do meio que os conformou e possibilitou a sua historiografia onomástica.

 

O caminho das águas, os rios do Brasil:

o São Francisco e o elemento étnico

Capistrano de Abreu (1982), ao traçar as fronteiras internas e externas do país e suas características constitutivas, explica ser a Serra do Mar, assim sintagmatizada num conjunto único, o limite entre o planalto brasileiro e a faixa litorânea. É, como diz, o “divisor de águas” entre os rios atlânticos de menor porte, e os que alcançam a bacia do Prata, maiores e mais volumosos, como o Uruguai, o Iguaçu, o Ivaí, o Paraná, o Paranapanema, o Tietê. A variante da Mantiqueira, em Minas, dá origem a um dos mais importantes cursos d’água nacionais, evocado por todos porque caboclo como o próprio povo. O São Francisco até apelido tem, não é o “máximo dos rios”, como o Amazonas, apenas o “Velho Chico”, que identifica um dos primeiros acidentes nomeados pelas expedições lusitanas de reconhecimento da costa. De São Roque de Minas, na Serra da Canastra, onde nasce pequenino, depois de atravessar a Bahia, margear Pernambuco, Alagoas e Sergipe até o Atlântico, desenvolve esse longo trajeto que lhe valeu outro cognome, o de “rio da unidade/integridade nacional”, ao permitir o cruzamento das fronteiras geográficas, fosse pelas minas e guapiaras ou pelos passos dos bois. É a imagem de Capistramo: - “O São Francisco é, por assim dizer, a imagem de quase todos os rios do Brasil: no planalto, apenas o volume de água o permite (...) perenemente navegável por embarcações de maior ou menos capacidade (...); na descida do planalto, com saltos e corredeiras (...); finalmente, as águas se acalmam e aprofundam, e os embaraços de todo desaparecem” (p.44). É sui-generis também pelo clima, que alterna a temperança com a seca dos sertões, antíteses da zona da mata, a primeira ocupada no início da colonização, pelo que oferecia ao homem.

Barbosa Lima Sobrinho (1975), falando da importância do rio para a sociedade brasileira, chama a atenção para o fato de que a sua problemática começa a surgir antes mesmo do povoamento, localizando-a nos limites políticos da donatária de Duarte Coelho, que nasceu “com fronteiras definidas”, porque representadas “pelo curso todo do rio” e não por alguns trechos. (NANTES, 1975: XX). Na obra de Padre Martinho, da segunda metade do século XVII, nas várias passagens a respeito do povoamento no curso do São Francisco, há descrições presenciais do que foi esse fato para o nordeste seiscentista, com os embates entre europeus portugueses e holandeses e entre estes e os autóctones, em seus aldeamentos: “os portugueses, depois de lhes tomarem as armas que lhes restavam, os amarraram (aos índios) e dois dias depois os mataram, a sangue frio, todos os homens de arma, em número de cerca de quinhentos e fizeram escravos suas mulheres e filhos”, conforme comenta Lima Sobrinho.

Os índios mencionados eram os Kariri, habitantes da margem do rio, hoje extintos, mas que deixaram o seu nome em uma grande área do Ceará. Padre Martinho os chamava de “pobres” almas sem “vida racional e política”, e embrutecidos “pela maneira de vida grosseira, fundada nos sentidos” (p.4). Um dos motivos para essa definição de bárbaros era o fato de terem deuses para tudo, caça, pesca, rios; não conheciam o deus único, que coibia suas práticas maléficas; morriam não apenas pela guerra mas de ou pelo feitiço de alguém ou de algo. Era o que os padres combatiam e para isso vieram. Conseguiram a sua conversão e, depois, o seu auxílio e o de seus descendentes, os caboclos, na luta contra os holandeses, afastando, assim, o perigo representado por Nassau.

Os portugueses entenderam que os povos dos rios tornaram-se uma só nação a partir do batismo mas, para que a conversão se processasse, outros fatores deveriam ocorrer; o primeiro deles, aprender a língua dos índios (o kariri), sem o que seriam “bárbaros diante dos bárbaros” (Nantes: p.43). Esse preconceito etnocêntrico de parte dos lusitanos sempre existiu em relação aos índios brasileiros, todos selvagens, indolentes, preguiçosos, sem governo, sem escrita e, portanto, sem memória e sem história. Compunham a sociedade de exclusão, como dizemos.

Padre Martinho, porém, parece que conhecia a lingua falada na região: “dirigi então a palavra aos tamaquirís, na língua dos Cariris, que eles entendiam” (p.58); estavam todos a 104 léguas da barra do rio e a 4 léguas da ilha Assunção (p.112); do grupo não se tem, entretanto, documentos ou textos de língua a não ser o Catecismo do Pe. Bettendorf. A dificuldade em resgatar étimos que aparecem em alguns topônimos regionais (Piancó, Cabrobó, p. ex.), deve-se, principalmente, à nenhuma difusão do idioma fora da área de localização do grupo Kariri (o Nordeste interior), uma vez que o interesse dos religiosos portugueses centrava-se no aprendizado da língua brasílica, com base no tupi antigo.

As dificuldades na travessia do São Francisco aparecem em quase todos os capítulos da Relação do Padre Martinho. Não apenas na própria grandeza do terreno (“esse país é muito montanhoso e as montanhas muito altas” (p.32); os rochedos aumentavam a força das correntes (p.36); insetos desconhecidos (nuvens de moscas amarelas), carrapatos, larvas, cobras d’água vermelhas, correição de formigas, como também o medo das “solidões vastas e assustadoras”, o “canto lúgubre de certos pássaros”, a “fome”, o “frio”, tudo parecendo como a “imagem da morte” (p.33)).

O mito de origem que cerca o rio foi relatado por Gandavo, comparando-o a outros grandes cursos d’água, como o Prata e o Amazonas, quando se quer dizer das riquezas minerais, de ouro e pedras que povoavam o imaginário popular ao tempo dos descobrimentos. O São Francisco era pujante como a terra, boca larga de meia légua, cheias monumentais, navegável “até certo ponto”, entendido este como a cachoeira de Paulo Afonso, que o barrava. O seu nascedouro (São Roque de Minas ou a Serra da Canastra, indistintamente considerada) ficava num grande lago, no fundo da terra, “onde há muitas povoações cujos moradores possuem grandes averes de ouro e pedraria” (Capistrano, 1982: 299-300).

O Vocabulário na língua brasílica (1952-1953) registra a toponímia antiga do rio, no verbete Paraupaba, “porque procede de muitas lagoas (upaba)”. Como que confirmando a lenda de seu nascimento, o Pe. Aspilcueta (Capistrano: 290), em carta de 1555, descrevendo os caminhos entre Porto Seguro e Ilhéus, relata ter passado por uma serra grande, ao norte, de onde saíam muitos rios, entre os quais um outro, “mui caudal”, por nome “Pará” que, segundo “os índios informaram, é o rio de São Francisco e é muito largo”. A forma pará, na língua brasílica, traduz, denotativamente, o sentido de rio grande, como um mar; depois, no período bilíngüe do português, é que se toponimizou, tornando-se nome próprio, ao se incorporar ao léxico, e perdendo a primitiva significação de acidente geográfico, que trazia na língua de origem. Este traço semântico arquetípico, como conceituamos as formas referenciais de objetos físicos (rio, morro, serra, identificados apenas pela palavra léxica nocional), é comum nas línguas indígenas conhecidas, e também nos períodos arcaicos das linguagens em geral; mantém, mesmo, uma relação opositiva com outros nomes superpostos, acrescidos depois, como ocorreu com o hagiotopônimo São Francisco, de um índice motivador devocional, que suplantou o traço autóctone anterior (paraupaba).

São Francisco é, porém, topônimo antigo, aparecendo na relação das primeiras expedições de reconhecimento enviadas ao Brasil pela Coroa, como já se mencionou (figura no Esmeraldo de Situ orbis, de Duarte Pacheco, conforme registros das expedições de 1501-1502) (Dick a, 1990: 158).

A cartografia do Brasil Colonial (Adonias, 1960) registra descrições e referências ao rio em mapas e manuscritos dos séculos XVII e XVIII, como ocorre na carta geográfica da Capitania de Pernambuco (p.287); de Alagoas (1640, 1666. p.289-291); da Comarca de Arigype del Rey, e nas cartas descritivas da Bahia, de 1631, 1640, 1666, 1798. Na Carta da costa situada entre a “Baya de todos os Santos” e a “Baía do Rio S. Francisco”, levantada pelo cosmógrafo real, em 1640, além da referência aos rios e à costa que permitem a navegação, consta uma das características do São Francisco, que convém consignar: “faz esta costa huma entrada / que começa huma lagoa do Rio Real ao Nordeste, & acaba iunto do Rio / de São Francisco, que uem a ser uinte legoas: chamão a esta entrada de Vazabarris; / & he muito perigosa por causa das correntes das agoas & baixio (...)” (ib.: 296). O que se nota nesses mapas, cujo exame detalhado de seu conjunto estamos realizando como complemento ao Atlas Toponímico do Brasil, em suas variantes regionais, relativamente ao rio, é o emprego do termo específico (São Francisco) aplicado a outros acidentes. A esse fato, comum na toponomástica, denominamos de translação toponímica, sempre que ocorrer o deslocamento do designativo de um acidente para outro. Esse esquema pode ser circular, seja do rio para o aglomerado nascente em suas margens ou deste para aquele, o que é mais raro. É princípio em Toponímia que os nomes de cursos d’água e de montanhas e serras são os mais primitivos ou as mais antigas denominações dadas pelo grupo. São exemplos que constam das cartas: Engenho de São Francisco, Forte de São Francisco, Convento de São Francisco. Modernamente, o Atlas do Brasil registra, no trajeto do rio, topônimos influenciados pelo acidente: Canoas de São Francisco (MG e SE); Belém de São Francisco, Amparo de São Francisco, Canindé de São Francisco, (todos em SE); Serra de São Francisco (BA). Alargando-se a área geográfica, esta relação tende a aumentar.

As cartas examinadas noticiam, também, ao longo das serras e dos rios da região, junto aos atuais estados nordestinos, marginais ou não ao São Francisco, a referência aos grupos brasílicos do interior, além dos já citados Kariri, aos quais Theodoro Sampaio atribui resíduos toponímicos nesses pontos (ex.: Piancó, Cabrobó, Caicó, Capiá, Moxotó, Quixelê) (Dick a, 1990: 129). Tais indicações permitem ao pesquisador reavaliar os estoques etnolingüísticos documentados e assim distribuídos, entre outros, em Adonias: a “Carta do Estado do Brasil”, de Albernas, 1631, além de mostrar a separação costeira das donatárias, registra os grupos indígenas litorâneos e do interior e as respectivas fronteiras territoriais ou geolingüísticas: “os gentios tapuias (costa norte), petigvares (potiguaras) (também em Albernas, 1666), caités (caetés), tvpinambás (tupinambás), tvpiniqvins (tupiniquins), tapanazes (tupinas/tupinãe), gvayanazes (guaianazes), tamoios, caryos (carijós), tapiyas (tapuias)”. A repetição da indicação “grupos tapuias”, hoje identificados como os do tronco Makro-jê, significa a mobilidade do grupo, que não era homogêneo, mas com várias famílias, línguas e dialetos. Assim, a referência aos tapuia (expressão hoje obsoleta e em desuso, na lingüistica indígena) “na margem esquerda de um rio que corresponde ao Paraná”, como se lê nesse mapa de 1631 (id: p.17) sugere a aproximação aos atuais Kaingang do noroeste de São Paulo, e com representantes nos três estados sulinos. Os demais grupos citados, com exceção dos Carijó e Guaianá, tinham como localização o São Francisco e outros cursos adjacentes, como o Jaguaribe, o rio Grande, o rio de Janeiro. Na região norte, a “Descrição dos rios Pará, Curupá e Amazonas”, Albernas, 1631, menciona outros aldeamentos tapuias, como os de Comutá, habitados pelos Acangua, Camaru, Ivanes (atuais Pano(s)?), Aruã, entre vários outros. Na “Demonstração do Pará até o rio Jury”, Albernas, 1666, encontra-se a “Província dos Índios a que chamam Tapuiassus” (tapuiaçu); a “Província dos Aruã” - (grupo aruak) fica no arquipélago de Marajó (ilha situada a oeste do estuário do Amazonas), assim como as “Províncias dos Iurunas” (na extremidade meridional da ilha) e dos “Iacares” (ilha a oeste). (Adonias: 175)

Entre os rios Parnaíba e Itapicurú, partindo de Tocantins, o mapa levantado e constante do Catálogo do Itamarati, desde 1884, informa que o “arraial do Príncipe Regente foi fundado em 1807 com o fim de conter os índios Timbira que assolavam e destruíam todas as fazendas do distrito de Pastos Bons”. (p.245). Trata-se dos mesmos índios que Gonçalves Dias utilizou em seus poemas, pondo-lhes hábitos tupis, como se deles fossem próprios, numa troca de identidade etnológica já bastante explorada pela literatura brasileira, tornando desnecessária outra menção. No “Mapa geográfico da Capitania do Seara” (Ceará), nas vilas e povoações enumeradas, citamos aquelas resultantes de aldeamentos: Vila Viçoza e matris dos Índios; Vila do Baturité e matris dos Índios, Vila e matris do Crato Serra dos Cariris Novos; Vila e matris de Mercejana (Mecejana) dos Índios; Vila e matris dos Arronches dos Índios; Vila e matris de Soure dos Índios; Matris de Monte Mor Pov. Am dos Índios” (p.258). Na província do Rio Grande do Norte, no manuscrito de Albernas, 1666, sobre a “Demonstração dos Baixos de S. Roque e Rio Grande” (p.265-6), o autor anotou o domínio dos Pitiguares (Potiguara), no topônimo “Costa de Pitiguares”.

Saindo do curso do São Francisco, em direção sul-sudeste, as fronteiras fluviais demarcam outros territórios étnicos. Aos “tapuias”, sobrepõem-se os grupos de origem tupi, no litoral até São Vicente, passando pelo Espírito Santo e Guanabara, e fazendo divisa com Cananea. Repartidos em vários grupos locais, à semelhança dos distribuídos pela costa nordestina, ainda que falando a língua brasílica comum, de comunicação e de maior uso entre os índios e europeus, popularizaram-se vários nomes como tamoio, tupinambá, tupiniquim, carijó-guarani, tape; entre os rios étnicos que os abrigavam, citam-se o Paraíba do Sul, o Tietê, Ribeira, Iguape, Paranapanema, Paraná, Itajaí, Prata.

Qualquer que seja, portanto, a origem lingüistica de seus topônimos, trazem em si a mística das águas, maior que o tempo e a memória de épocas denominativas, revelando estágios de nomeação característicos. Deixam esses nomes de ser apenas signos arbitrários da língua, para se referencializar como ícones de uma memória vivenciada, porque subjacente em si a cosmovisão dos falantes e o sentido próprio que ela lhes confere. A conquista pelo europeu da região ao sul da Guanabara conduziu a transformação de um “vazio onomástico”, na concepção luso-hispânica, em um universo lingüistico marcado por sentimentos mutantes: orgulho, coragem, valentia, luta, medo, posse, escravismo.

Todos os cursos fluviais e marítimos, sem dúvida, experimentaram, e ainda experimentam, o temor representado por esse universo não de todo conhecido, em profundidade ou extensão, o perigo escondendo-se em cada uma de suas voltas. É o encantado da água que os envolve e que, na tradição indo-européia, representa uma simbologia feminina, ou seja, a figura criadora dos domínios do universo. Daí a existência das “mães” “do mato, do campo, dos bichos, do dia, da noite, das serras, do vento” (...) e a “mãe d’água”, corporificada na cobra-grande (ou boiuna), que é o “duende mais inquietante do vale amazônico”, no dizer de MORAIS (1936: 73-74).

ESPÍRITO SANTO (1988: 12) comenta esse ângulo feminino da criação, relativamente à água, que “está na origem de todo o tipo de vida, (...) (e) prosperidade (...). É evidente, segundo a natureza das coisas, que a deusa da fecundidade seja ao mesmo tempo a das águas. Sendo o mar a matriz primordial de todos os seres, é igualmente, e por isso mesmo, a suprema mãe devoradora, (...), o arquétipo da descida e do retorno às fontes originais da felicidade”.

Essa mesma figura aparece, no Brasil, na idéia da “madre do rio”, que não é apenas a fonte, a nascente, mas tem uma projeção maior, na linha comentada por Espírito Santo. Mãe do Rio é topônimo urbano no PA, assim como Mãe d’água, na PB, nomeia um riacho. A mãe d’água que, no mito paraense, é a boiuna (mboy(a), “cobra”; una, “preta, escura”), temida pelas cunhãtans casadoiras, é, também, a portadora do muyrakytã (muiraquitã, “amuleto”) às amazonas guerreiras, no mito das Icamiabas. Das profundezas do lago Yaciuaruá (jaciuaruá, Espelho da Lua, no município de Faro, PA), uma vez por ano, em época de lua cheia, entrega às suas filhas o amuleto de jade para ofertarem aos guerreiros de vários grupos, vindos para o acasalamento e a reprodução. Essa lenda foi relatada pelos primeiros cronistas espanhóis que percorreram a Amazônia, nos séculos XVI e XVII, Orellana, Gaspar de Carvajal, Cristóbal de Acuña, os seus expoentes. Está em jogo, aí, toda uma tessitura fantástica, que atinge três domínios de experiências, o mundo mineral, das pedras que brilham (o El Dorado da fábula) e do jade de que era feito o muiraquitã; os rios (Napo, Amazonas, Iamundá), o grupo étnico regional (principalmente os Omágua ou Cambeba). O relato de Acuña sobre as mulheres guerreiras faz parte também do lendário dos Tupinambarana (os “falsos Tupinambá”, no baixo Madeira, afluente da margem direita do Amazonas), segundo o qual o país das amazonas estaria numa região montanhosa, de altos picos, chamada Yacamiaba, e o rio Nhamundá (ou Iamundá ou Jamundá, nas diversas grafias portuguesas) poderia ser o Cunuris ou Conduris, do grupo indígena de igual nome, aí existente. (PORRO, 1966: 58-59).

A yara/iara talvez seja a mais conhecida das figuras lendárias relativas à água, também conquistando pela sedução. A imagem híbrida que projeta, ou pela qual foi popularizada, coloca-a nesse contexto dúbio de heroína que não revela o bem ou o mal; confundem-na com as sereias de Ulisses, mas leva o caboclo à morte, depois do abraço tentador. Os versos do poeta ACRÍSIO MOTA, de Belém (1898), em seu poema Yara (ap. TOCANTINS, 1963: 68-69 ), retratam bem essa situação:

“Vem habitar comigo a mesma taba / Sou a mãe d’água te farei potaba (“presente”) / Da oca mais gentil (...)”

Relativamente à yara (tupi yg-iara, “água”, “senhora”), MORAIS (ib.: 75) entende-a portadora de propriedades andróginas, “alguns a julgam macho, na figura do boto”; outros a julgam fêmea, “metade mulher, metade peixe”, como apontamos. Por isso seu alvo não era apenas as mulheres, mas os homens também, “ arrastando a todos para o fundo dos lagos”.

Outros “demônios”, das águas e das matas, como diziam alguns religiosos, também aterrorizavam os nativos. ANCHIETA fala dos igpupiaras (ipupiaras) das águas e matadores de homens; dos corupiras, que não sabia ao certo o que eram (Cartas Jesuíticas, III: 128-129). O Padre João Daniel (1975: 238-9), porém, os descreve: “vultos com figura humana, nus como tapuias e de cabeça raspada e com eles (com os índios) falam” e a “eles se atribuem grandes estrondos” atemorizantes. Por isso os índios, para conquistá-los, ontem como ainda hoje, costumam deixar oferendas à beira dos igarapés, para que nada lhes aconteça na jornada.

Qualquer que seja, porém, a forma assumida por estas divindades fluviais ou lacustres, é a figura da mãe criadora que aí está presente, enriquecendo o imaginário dos ribeirinhos e das crendices populares. O nascimento dessas lendas não pode ser condicionado apenas, ou principalmente, às condições subjetivas dos moradores. São devidas, mais, à própria situação do meio e à experiência dos primeiros navegadores ou dos usuários desses caminhos hidrográficos. O ambiente natural brasileiro, pelas dimensões territoriais e localização geográfica do país, com a longa costa atlântica bastante recortada e as fronteiras intercontinentais projetando os seus limites a ocidente, é bastante diversificado, regionalmente, como salientamos no início deste trabalho, ao falar do Planalto Central e das bacias hidrográficas.

 

O caminho das águas, os rios do Brasil:

o Tietê dos paulistas

O Tietê ou Anhembi, como ainda o chamam, não é, para os paulistas, apenas um rio de planalto, mas um credo de fé, uma religião. Não só o rio histórico, pelo qual os antigos canoeiros e regatões, partindo da velha Araraitaguaba (ou Araritaguaba, “barreiro das araras”), atingiam a distante Vila do Bom Jesus de Cuiabá. O episódio das monções levou o povoamento do Planalto paulistano, mais precisamente de Parnaíba, até o Mato Grosso, que já nasceu paulista e mameluco. As expedições monçoeiras contam a história seiscentista dessas duas regiões, em detalhes preciosos. TAUNAY retratou-a em todos os seus passos, procurando recuperar não apenas o espírito conquistador do europeu tornado mestiço, como a própria trajetória bandeirantista, com seus riscos, suas dificuldades, suas lutas, suas mortes. Os objetivos e a motivação dessas viagens: apresamento, encontro das jazidas minerais, os descobertos, o alargamento das fronteiras de São Paulo e do território português, a posse da terra virgem, a riqueza, mas também a própria subsistência do homem planaltino. São Paulo era pobre, pobre de recursos econômicos, pobre de homens.

Em São Paulo, o Tietê, ou o “rio grande de unas aves añumas”, segundo o Governador do Paraguai, Don Luís de Céspedes Xeria, no primeiro mapeamento oficial de seu curso, em 1628, exerceu o mesmo papel de integração das comunidades ribeirinhas que o São Francisco, embora em nível regional. Mas a conseqüência da ação que desencadeou, como instrumento útil para a sua realização, o projetou além dos limites estaduais.

Muito se falou do Tietê, desde a fundação de São Paulo e da escolha do local para assentamento do Colégio Jesuístico, no chamado delta do Tamanduateí, pelo Padre Nóbrega, em 1553. As Atas da Câmara da Vila do Campo, desde 1562, o descrevem como o “rio grande da vila”, bastante piscoso, tanto na parte alta, junto ao núcleo, na várzea do Pari, como rio abaixo, rumo ao interior, atravessando os sertões. Navegável, até onde permitiam os saltos e as corredeiras que atravancavam o seu leito, a partir de Araraitaguaba.

Em 1953, segundo ROCHA (1991: 19), foi determinada a nascente do rio, em terras paulistas, legitimando-o como marco histórico do povoamento de são Paulo. Essas nascentes estão no município de Salesópolis, a 25 km de sua sede, “nos contrafortes da banda ocidental da Serra do Mar”. Aí, ele inicia a aventura para o interior, até o encontro das águas do Paraná, onde morre. De acordo com AZEVEDO MARQUES (1958: 285-6), o Tietê desenvolve um trajeto de 200 léguas ou 1120 km e banha alguns municípios do estado, como Mogi das Cruzes, Santa Isabel, Salto, Itu, Cerquilho, Tietê, Porto Feliz, Laranjal Paulista, Iacanga, Capivari, Tatuí, Botucatu, Anhembi, Barra Bonita, Arealva, Boracea, Ibitinga, Novo Horizonte, Sabino, Sales, Sud Menucci, até o pontal do estado, em Pereira Barreto. Ao entrar na antiga Vila do Campo, vindo de suas nascentes, pelo norte, margeava terras das primitivas freguesias tornadas, depois, bairros populosos, como N. Senhora da Esperança do Ó (Freguesia do Ó), Piqueri, Morro Grande, os sítios de Carapicuíba e Barueri, atingindo a vila de Parnaíba (Santana do Parnaíba), em busca de Pirapora do Bom Jesus; daí em diante, é o rio do interior, da conquista do oeste.

Olhando o seu curso nos mapas, que projeta uma posição contrária ao São Francisco, ao vencer todos os obstáculos para chegar ao mar, entende-se porque o Tietê auxiliou na vocação sertanista dos mamelucos, correndo na contra-mão do destino hidrográfico natural dos demais rios. Para a vila seiscentista e para a cidade imperial do século XVIII, embrião da São Paulo-metrópole, o Tietê era e é o rio-símbolo de sua memória, apesar da degradação ambiental que o urbanismo lhe acarretou. Seu afluente maior, o Tamanduateí, tão importante para o quinhentismo e seiscentismo paulistanos, perdeu o significado histórico a partir de suas canalizações, projetadas desde João Teodoro. Talvez o desaparecimento posterior da “ponte pequena”, que permitia a comunicação da várzea com a própria vila e com o núcleo insipiente do Bom Jesus (Brás), no caminho da Penha, significasse o início do esquecimento de suas funções de aglutinador e adensador populacional interno, tanto quanto o Tietê era dispersor.

Examinando-se o mapa hidrográfico de São Paulo, da vila e do estado, pode-se obter um reconhecimento mais detalhado destes pontos:

influência indígena tupi nos topônimos dos sub-afluentes do Tietê, a partir de dois dos seus formadores mais conhecidos, no planalto, o Tamanduateí e o Anhangabaú;

a trajetória do Tietê para oeste, a construção de cidades às suas margens, como se mencionou, a presença de topônimos portugueses de origem religiosa, mesclando-se com a camada primitiva, e que alavancaram o cruzamento das fronteiras lingüísticas e geográficas, como decorrência não apenas do período bandeirante mas da própria população devota, instalada, aos poucos, nesses sítios.

É oportuno transcrever aqui, a informação de BIERRENBACH LIMA (1946: 89-91) sobre a bacia hidrográfica de São Paulo do Campo - como preferimos usar ao invés de São Paulo de Piratininga, de acordo com nossa pesquisa anterior (DICK, 1997) -: “As águas dos córregos, ribeirões e rios, alheios ao crescer da cidade, continuavam a correr silenciosamente nos seus leitos naturais nas épocas de estiagem; quando chegava a época das chuvas transbordando espraiavam suas águas pelas baixadas formando pequenos e grandes alagadiços cuja superfície esbranquiçante formava um contraste interessante no vale claro dos campos dessa região”. As enchentes mencionadas pelo engenheiro Bierrenbach mostram que a São Paulo atual já padecia dos mesmos males desde os primeiros tempos de vida, por causa da situação do terreno. ANCHIETA a ela se referiu em dois momentos, na Carta ao Padre Geral de São Vicente, em 1º de junho de 1560 (Cartas Jesuíticas, III: 149ª, 152-153), mencionando o fenômeno da piratininga (“peixe seco”). As cheias atingiam a todos os córregos da vila, cujos topônimos são lembrados até hoje, com poucas exceções: Saracura Grande e Pequeno, Iacuba, Pacaembu, Guaré, Cambuci, Ipiranga, Mooca, Piratininga (que talvez nem tenha existido, como diz Azevedo Marques). O mapa em anexo ao texto de Bierrenbach Lima mostra a localização geográfica desses acidentes na rede urbana da cidade (ib.: 90).

No plano estadual, os afluentes do Tietê mantêm a tendência indígena da nomeação: rios Jundiaí, Sorocaba, Capivari, Piracicaba, resultante de três outros, o Atibaia, o Jaguari e Camanducaia, quase nos limites de Minas. São também bastante conhecidos o Jacaré-Guaçu e o Jacaré Pepira, principalmente este. O Tietê alcança o Paraná ladeado por dois outros cursos consideráveis, o Aguapeí ou Feio e o São José dos Dourados, um dos poucos topônimos em português, nos maiores afluentes. Considerando-se, porém, a bacia hidrográfica geral do estado, outros nomes indígenas tupis distribuem-se, cartograficamente, como o Paranapanema, o Itararé, o Itapirapuã, o Itapetininga, o Apiaí, o Taquari, a sudoeste, contribuindo com suas águas para o mesmo complexo tieteano; a sudeste, os maiores cursos também são bastante conhecidos, como o Paraíba, o Paraibuna, o Paraitinga; a nordeste, sobressaem-se o Mogi-Guaçu e o Mogi-Mirim; e, ao norte, o Sapucaí-Mirim, zona limítrofe com Minas.

À medida que o rio sai do município de são Paulo, para o interior, duas características ganham vulto: a - as expedições monçoeiras de Araraitaguaba, no século XVII, responsáveis pela expansão das fronteiras paulistas para o centro-oeste, como se mencionou; b - os acidentes fluviais, saltos, cachoeiras, cataratas, que interrompiam, constantemente, a travessia, conforme os estudos pioneiros de TAUNAY e os de DRUMOND e NOGUEIRA (1982), sobre a toponímia do Tietê.

Drumond e Nogueira, em seu trabalho, examinaram mapas, diários e relatos de viagem, levantando cerca de 398 acidentes entre córregos, ribeirões, rios, cachoeiras, corredeiras, ilhas, águas, portos, saltos, canais, voltas, lagoas, pontal. Submeteram os topônimos ao modelo taxionômico de (DICK c, 1980), que revelou, como índices motivadores preferenciais, ou campos semânticos de maior ocorrência, as categorias zoo e fitotoponímicas, acompanhando, assim, as tendências comuns em acidentes físicos. Desse levantamento, que pode ser considerado um tipo de glossário terminológico específico, com macro e micro-estruturas aproximadas do modelo lexicográfico em uso, chama atenção a ênfase às etimologias das entradas lexicais e as referências às folhas topográficas ou registro dos acidentes inventariados. Reestudando o campo etimológico coletado pelos autores, encontramos cerca de 135 matrizes indígenas, o que reforça a conclusão de estudiosos como DAUZAT, ao fixarem a antigüidade dos topônimos de rios e montes às primitivas camadas lingüisticas regionais, e a sua permanência no decorrer dos tempos. Mudam os nomes dos acidentes antropo-culturais, os dos físicos permanecem.

Completando, também, os apontamentos cartográficos mencionados, em ADONIAS, no capítulo referente a São Paulo, o Tietê aparece citado em algumas cartas, poucas, é verdade: Plano do Rio Tietê ou Añemby desde a Cidade do mesmo nome até a sua confluência no Rio Paraná ou Rio Grande, levantada por Francisco José de Lacerda e Almeida, 1788 e 1789 (p.491); Mapa Corographico da Capitania de São Paulo, de Roiz Montesinho (1791-1792), com esta anotação de interesse: “O Rio Tietê d’esde o Porto d’Araraytaguaba athe a sua Barra no Paraná, o mesmo athe a sua Confluencia com o Rio Pardo e este até a Fazenda Camapoana com todos os mais rios que nella fazem Barra, forão observados em 1789 pelo Astrônomo de S.Magde. Franco. José de Lacerda” (p.492). Do ponto de vista etnolingüístico, a leitura das Cartas das Capitanias de São Paulo e do Paraná, em especial da baía de Paranaguá, mostra a presença maciça dos índios de origem tupi, com referência ao sub-grupo Tupiniquim (p. 503) e aos Guarani, sub-grupo Carijó. Na Carta sobre os Campos de Guarapuava (1771-1772), a anotação refere-se aos índios Xokleng, ainda remanescentes na ilha de Santa Catarina. São de origem makro-jê, incluídos na família Jê, dos quais a nomenclatura geográfica oficial não registrou topônimos.

Quanto às expedições monçoeiras, que definiram o Tietê, historicamente, pode-se acompanhar o pensamento dos autores em geral, que dizem ser o melhor biografado a esse respeito. Um e outras estão de tal forma ligados que chegam a ser excludentes, do ponto de vista semântico. Ambos são pressupostos de cada um, ao serem tomados em sua individualidade. ALMEIDA ROCHA, referindo-se a esse fato, destaca algumas causas do declínio do ciclo monçoeiro, dentre as quais, além daquelas já discutidas em outros compêndios, o “advento do barco a vapor, navegando pelo Prata e outros rios de maior calado” (ib.: 22), o que tornaria obsoleta a navegação tradicional, nos primitivos batelões, difíceis de vencer a longa série dos acidentes naturais, já mencionados.

Em estudo anterior (DICK c, 1990), tivemos oportunidade de analisar os Relatos de Taunay, para quem a navegação do Tietê era mais antiga que a do São Francisco, e de comprovar essa situação, já enunciada no levantamento de Drumond e Nogueira. De acordo com Taunay, em 1727, Gervasio Leite Rabelo, um século depois da documentação de 1628, para atingir a foz do rio, “tivera de vencer 160 obstáculos entre cachoeiras, correntezas, itaipavas trechos de cirga, despenhadeiros, contrassaltos, funis, jupiás, redemoinhos, e tucunduvas”; além disso, “as monções cuiabanas” tinham que “atravessar terras inóspitas habitadas por nações belicosíssimas como os paiaguás, guaicurús e caiapós” (TAUNAY, In: DICK, 1990: 199-200). AZEVEDO MARQUES (ib.: 286), por sua vez, refere-se ao Tietê desta forma: “De álveo tortuosíssimo o Tietê não oferece a navegação que comportam suas águas, porque, além da circunstância apontada, o seu leito é pela maior parte de formação granítica com grande número de ilhas, cachoeiras e corredeiras, partindo de Porto Feliz”, o que só reforça o destemor dos mamelucos e a necessidade que os impelia para além do planalto.

Não é objetivo desta Comunicação, entretanto, o reexame dos Relatos, que serão discutidos em texto à parte e complementar às pesquisas toponímicas subsidiárias do Atlas Toponímico do Estado de São Paulo, ora em conclusão. Mas é conveniente referir, com o autor, a importância dessa trajetória fluvial para a descoberta das minas de Cuiabá, uma vez que as das Gerais e de Goiás tiveram outro roteiro terrestre, ainda que partindo também de são Paulo. As primeiras expedições paulistas que atingiram Mato Grosso foram as de Manoel de Campos Bicudo, seu filho Antonio Pires de Campos, no século XVIII, e as do pioneiro, Pascoal Moreira Cabral Leme, em 1685, que chega em Miranda (antigo Mboteteú) e estabelece aí o núcleo mameluco dos paulistas em terras matogrossenses. A Notícia 6ª Prática (Relatos: 112), relativa à viagem do Governador e Capitão General de São Paulo às minas de Cuiabá, descobertas em seu governo, especifica, com minúcias, o tempo decorrido na viagem, desde a partida da vila, em 07 de julho de 1726, à chegada ao destino, em 1º de fevereiro de 1727, bem como os lugares e rios percorridos. O arraial das minas, em Mato Grosso, foi dedicado ao Senhor Bom Jesus, situado a meia légua do Porto Geral, no rio Cuiabá. Em 1º de janeiro de 1727, o arraial recebeu do governador os foros de vila, com o nome de Vila Real do Bom Jesus de Cuiabá.

Essa a missão histórica e etnolingüística do Tietê, iniciada, para esse fim, na freguesia de Araraitaguaba, depois freguesia de Nossa Senhora Mãe dos Homens, hoje, simplesmente, Porto Feliz, topônimo eufemístico, a marcar o momento das despedidas dos monçoeiros e o desejo de feliz travessia.

Caminho das águas:

as trilhas das bandeiras em Minas Gerais

As entradas e bandeiras, organizadas nos séculos XVI e XVII, em busca de prata e esmeralda, seguiam três roteiros: o caminho velho da Bahia, o caminho velho de São Paulo e o caminho novo do Rio de Janeiro. Estes caminhos tinham como meta alcançar a Região das Esmeraldas, entre o Jequitinhonha e o Doce, chamado Rio das Esmeraldas, que poderia conter ouro.

Seguindo o curso do Rio São Francisco, a rota baiana, também conhecida como o caminho dos currais, tornava a região do sertão mineiro, antiga comarca de Serro do Frio, vinculada e dependente da Capitania da Bahia. Por este caminho tentava-se evitar o contrabando do ouro e dos diamantes.

Partindo de São Paulo ou Taubaté, seguindo o rio Paraíba, passando pela atual cidade de Lorena e transpondo a Serra da Mantiqueira pela garganta do Embaú - já conhecida dos índios - seguia a rota paulista. Seu curso coincide hoje com um trecho da Estrada de Ferro Central do Brasil e em outro, com a Rede Férrea Sul Mineira, antiga Minas-Rio.

Este caminho também era feito saindo do Rio de Janeiro, pelo mar, até Parati, subindo a Serra do Mar, por uma antiga trilha aberta pelos índios Goianases, até os Campos do Cunha e daí até Taubaté, no Vale do Paraíba.

No início do século XVIII, abriu-se um novo caminho do Rio de Janeiro até as Minas de Ouro Preto, através do Vale do Rio Paraibuna, na atual Zona da Mata. Este roteiro, conhecido inicialmente como Caminho Novo do Rio de Janeiro, recebeu melhorias, tornando-se a rota oficial de escoamento de ouro da coroa portuguesa. A este caminho foi dado o nome de estrada real.

No estado de São Paulo, vários pontos de paradas dos bandeirantes tornaram-se, posteriormente, vilas, sendo, bem mais tarde, elevadas a cidades. Segundo ANTONIO (In: Megale, 2000: 77-91) na formação desses núcleos urbanos, houve, no território paulista, presença de “famílias inteiras saídas de São Paulo (por ex.: Domingos Luiz leme e seus irmãos, na fundação da cidade de Guaratinguetá; ou Jacques Felix, seu irmão e seus filhos na fundação da cidade de Pindamonhangaba)”. Este aspecto salienta a disseminação da língua pelo interior de São Paulo e destaca o Vale do Paraíba como um ponto de fixação no roteiro das bandeiras.

Já em relação às expedições realizadas pelos bandeirantes paulistas ao atual território de Minas Gerais, pode-se dizer que a maioria delas partia sem qualquer outro interesse que não o da descoberta de ouro e pedras preciosas. Os primeiros desbravadores não pretendiam sesmarias e nem se interessavam em se fixar nas terras descobertas. Traziam armas e munições, mas raramente algum alimento. Muitas vezes, as trilhas das bandeiras se desdobravam, levando parte dos bandeirantes a incursões até então não programadas.

Vários historiadores que se dedicaram ao estudo do Brasil Colônia afirmam que as bandeiras não tinham um caráter colonizador: segundo ABREU (In: Elia, 1979: 175-218) “o bandeirante devassou sem povoar, agindo mais em extensão do que em profundidade”. Enquanto MOOG (1956:148) diz “(...) já não basta que o bandeirante tenha dilatado a pátria, deixando para os pioneiros o ‘problema concêntrico de povoá-la’ (...)”.

Todavia, de acordo com HOLANDA (1977: 71-76) em Minas Gerais essa “ação” dos bandeirantes foi um pouco diferente: “(...) antes do descobrimento das minas, não realizaram obra colonizadora, salvo esporadicamente”, ou seja, na região do ciclo do ouro, o movimento das bandeiras teve caráter colonizador.

Segundo VILLALTA (1997), os bandeirantes abriam caminhos pelo sertão, falando a “língua geral”, mas também liam Camões e traziam sempre em suas bandeiras um padre. Em Minas Gerais, os bandeirantes se depararam com outras “línguas gerais” de origem tupi, mas nesse território, onde foram encontrados minérios preciosos, essas línguas não tiveram uma convivência tão intensa com a Língua Portuguesa como ocorreu nos outros estados brasileiros. VILLALTA (1997: 339) ressalta que a eliminação das “línguas gerais” em Minas foi “radical em decorrência do desenvolvimento urbano acentuado e da força da mineração no conjunto da economia, assentada no uso do escravo africano. Os índios, na região mineradora, foram sendo massacrados e empurrados progressivamente para além das fronteiras da ocupação lusitana”. Mesmo assim, a “língua geral do sul” trazida pelas bandeiras faz-se presente em um grande número de toponímias em suas trilhas pelo território mineiro. Em camadas mais antigas do nosso léxico, podemos observar topônimos de origem indígena que ainda se conservam em nosso léxico, outros foram sobrepostos por nomes de santo.

Com relação à expansão da língua tupi ou geral na região das Minas Gerais, SAMPAIO (1955: 49-50) afirma que à medida em que as várias regiões iam sendo desbravadas, recebiam um nome tupi. Entretanto,

(...) mais para o sul, penetrando já na região mineira, entre a zona litorânea e a Serra do Espinhaço, que foi o país dos botocudos, dos Porys e de numerosas tribus tapuyas, já a raridade dos nomes selvagens na geographia local ressalta logo. Prevalecem denominações portuguesas entre alguns nomes tupis. Dificilmente se encontrará ahi um nome tapuya, botocudo, pory ou camacã, designando um monte, um rio ou um povoado. (...) são bem poucos os vestígios da língua dos primitivos dominadores, acaso salvos do dilúvio tupi ou português, que o bandeirante ou o missionário estendeu por toda a parte.

 

A Região do Carmo

Desde o início do século XVII, quando bandeirantes paulistas empreenderam as primeiras entradas pelo sertão, visando à caça ao índio e aos sonhos com as riquezas da descoberta de esmeraldas, prata e ouro, fica evidente a importância crescente das incursões no povoamento do interior brasileiro, principalmente após a grande Bandeira de Fernão Dias Pais que parte de São Paulo em 21 de julho de 1674. A “Bandeira das Esmeraldas”, como foi chamada, não encontrou as pedras verdes tão desejadas, mas foi grandiosa como descobridora do território do Estado de Minas Gerais. Por caminhos terrestres, muitas vezes seguindo antigas trilhas de índios e acompanhando cursos de rios, a história etnolingüística de Minas começa a ser contada.

Seguindo os caminhos abertos por Fernão Dias Pais (1674-1681), o bandeirante taubateano Antônio Rodrigues Arzão descobre a primeira jazida de ouro nos sertões das Minas Gerais, em 1692 ou 1693. Chegara, com um grupo de 50 homens, através dos sertões do Rio Doce, até o distrito de Caeté, e aí, guiado por uma índia, conseguira recolher algumas pepitas de ouro. Arzão morreu logo após regressar a Taubaté, mas deixou a seu cunhado, Bartolomeu Bueno de Siqueira, os dados necessários para futuras expedições. Este último, em 1694, acompanhado de amigos e parentes, embrenha-se pelo interior atrás do ouro, regulando-se pelos picos elevados de algumas serras, que lhe servia de faróis na imensidão deserta. Atinge, assim, a Serra de Itaverava, a 8 léguas do local onde deveria ser erguida mais tarde Ouro Preto. Devido à escassez de alimentos, divide seus homens, deixando alguns sob o comando do capitão Miguel Garcia de Almeida e Cunha, cuidando das plantações de milho. Enquanto aguardava a produção de lavouras, Miguel Garcia fez algumas incursões, chegando a alcançar o rio Galacho do Sul, em cujo leito descobriu sinais de ouro.

No ano seguinte, uma nova Bandeira parte do Estado de São Paulo, tendo à sua frente o taubateano Salvador Fernandes Furtado que descobre, juntamente com Carlos Pedroso da Silveira e Bartolomeu Bueno, riquíssimas jazidas de ouro no ribeirão de Nossa Senhora do Carmo, erguendo, em 16 de julho de 1696, uma cabana próxima às suas margens. Em seguida, com a chegada de exploradores nessas paragens, formou-se um centro populoso, considerável o suficiente para que se lançassem os primeiros fundamentos de uma vila que recebeu, em 8 de abril de 1711, o nome de Villa do Ribeyrão de Nossa Senhora do Carmo, depois Vila do Carmo e que, pela Carta Régia de 23 de abril de 1745 , foi elevada à cidade, com o nome de Mariana, em homenagem à rainha D. Mariana da Áustria, esposa de Dom João V, quando da criação de um bispado em Minas.

Enquanto isso, outro bandeirante de Taubaté, Antônio Dias, encontrava as primeiras minas nas margens do Tripuí. O padre João de Faria e os paulistas Tomás Lopes de Camargo e Francisco Bueno da Silva - o Anhangüera - percorreram também toda aquela região, descobrindo inúmeras jazidas, das quais se extraía, em grande quantidade, ouro de uma coloração negra, que chamaram de ouro preto. Por causa da cor escura do metal retirado, deram à serra que o continha, o nome de Serra de Ouro Preto. Ergue-se, logo em seguida, no pé da serra, uma cidade com o mesmo nome. Ouro Preto se tornou rapidamente o centro de um vasto território, denominado Minas Gerais, cujos habitantes foram chamados Mineiros (mineradores).

Esse território das minas foi posto, de início, sob a dependência da Capitania Geral do Rio de Janeiro; depois, segundo FERRAND (1998: 83) “em virtude de sua importância crescente, foi reunido ao território de São Paulo, a fim de formar a Capitania geral de São Paulo e Minas, com a cidade de São Paulo como capital (Carta Régia de 23 de novembro de 1709)”. O primeiro governador da nova capitania geral, quando de sua ida a Minas, para instalar um regime regular e regulamentar os impostos, confirmou o estatuto de vila para Ouro Preto, com o nome de Villa Rica de Ouro Preto, a 8 de julho de 1711. Posteriormente, com o crescimento da “Vila” e com o aumento da população no novo território, o governo da metrópole “elevou, por Provisão de 2 de dezembro de 1720, a Capitania subalterna de Minas Gerais à condição de capitania geral, independente de São Paulo, com Villa Rica como capital.” Essa vila passou ao nível de cidade e retomou seu antigo nome de Ouro Preto, quando aconteceu a independência do Brasil, em 1822, tornando-se capital da província de Minas Gerais, com o nome de Imperial Cidade de Ouro Preto.

Durante muito tempo, devido, sobretudo, à mata espessa, os primeiros mineiradores de Mariana e Ouro Preto ignoravam que eram vizinhos tão próximos, apenas 12 quilômetros separam as duas cidades. Todavia, chegaram a suspeitar da existência dos trabalhos na vizinhança, pelo aspecto das águas turvadas pela lavação do ouro. Nascendo na Serra do Espinhaço, o córrego do Tripuí “lavava o ouro preto”, passando, esse mesmo córrego, a se chamar ribeirão do Carmo quando se aproximava da cidade de Mariana. Posteriormente, seguindo o leito do rio, descobrem esse elo e traçam um novo caminho, “à beira rio”, ligando as duas cidades. Pode-se, então, supor que, a partir dessa época, começou o florescimento das duas “grandes” cidades do ouro.

Por toda parte havia provas da existência de ouro e, onde, no começo do século só havia florestas impenetráveis, dez anos mais tarde havia vilas populosas. Os arraiais nasciam e cresciam onde houvesse ouro a ser explorado. Por isso, quase todos situavam-se à beira de rios e córregos, nos quais a ouro aflorava entre a areia e o cascalho.

De acordo com FERRAND (op. cit.: 84), “Os primeiros exploradores buscavam, preferencialmente, explorar o leito dos rios, por ser mais fácil e, com freqüência, dar bons resultados”, mas esses rios logo se esgotaram, em razão da afluência das pessoas que se dedicaram ao trabalho das minas. Foi preciso, então, retornar às montanhas, cujas jazidas tinham sido inicialmente abandonadas, por causa das maiores dificuldades encontradas para sua abordagem.

Mas não era só o ouro que já no final do século XVII e início do XVIII chamava a atenção para a região das Minas. As roças plantadas não sustentavam toda aquela multidão que corria para as novas terras: havia pessoas morrendo de fome. É nessa época que a história registra o topônimo Sumidouro, hoje Padre Viegas, região próxima à Mariana, onde morreram milhares de pessoas devido à escassez de alimentos. Em uma carta datada de 30 de novembro de 1700, Artur de Saa e Menezes, governador da província de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, escreve ao Senhor Dom João de Lencastro, governador e capitão geral do “Estado do Brasil”. Nessa carta, além de noticiar a existência do ouro na região do “Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo”, o governador demonstra a sua preocupação com a falta de mantimentos. Era necessário, pois, adentrar as matas, procurar solos férteis, solucionar o problema do suprimento. A preocupação com a falta de alimentos é registrada em muitos outros documentos do início do século XVIII, como podemos observar através desse trecho de um documento localizado na Biblioteca Pública de Évora, Portugal: “O homem pode viver sem ouro, e até mesmo sem / vestidos, taes são os índios do Brazil, mas como ninguém pode viver sem alimentos.” (In: Boschi, 1998: 90)

Em busca de ouro e de víveres, os desbravadores vão acompanhando o curso dos rios Carmo e Gualacho. Encantam-se com as suas matas, com a fertilidade de seus solos.

A cultura cristã:

registro e arquivamento do acervo léxico

Se considerarmos a dimensão social da língua, podemos ver, no léxico, o patrimônio cultural de uma comunidade. Transmitidos de geração a geração como “signos operacionais”, é através dos “nomes” que o homem exerce a sua capacidade de exprimir sentimentos e idéias, de “cristalizar” conceitos.

Assim, o patrimônio lexical de uma língua constitui um arquivo que reflete percepções e experiências multisseculares de um povo, podendo, por isso, ser considerado testemunho de uma época, “mots-témoins”, segundo MATORÉ (1953: 16).

Apoiando-se em leituras de documentos de diversas épocas e em pesquisas de campo, a Onomástica - ciência da linguagem que se fundamenta na lexicologia - vem contribuindo com os estudos etno-sociolingüísticos da realidade brasileira, através da investigação antroponímica e toponímica em que se estrutura o léxico regional.

De acordo com DICK (1999: 121)

a toponímia, principalmente, serve-se dessa circunstância de base, equivalente ou próxima a um substrato vocabular, para aí deitar suas raízes, aproveitando-se do material lingüístico que mais se adeqüe à configuração dos conceitos que deve transmitir. Uma nomenclatura local ou uma cadeia onomástica que interage com vários segmentos culturais, num aparato semiótico de relações e procedências diversas, constitui, realmente, uma base de pesquisa lingüística altamente produtiva.

É, pois, num “esquema de articulação lingüística” que, através dos estudos toponímicos de uma determinada região vai se alcançando a “verdade do nome”, e juntamente com ele, a história real de uma sociedade - encontros entre povos e culturas, mitos e crenças, afinal, como observa VILELA (1994: 6) “quase tudo, antes de passar para a língua e para a cultura dos povos, tem um nome e esse nome faz parte do léxico.”

Foi o antropólogo Edward Sapir (1967) quem, além de introduzir o estudo da linguagem entre os materiais antropológicos,

começou também a mostrar que um estudo antropológico da língua (a língua como objeto de pesquisa inscrevendo-se na cultura)conduzia a um estudo lingüístico da cultura ( a língua como modelo de conhecimento da cultura). LAPLANTINE (2000: 18)

Para LAPLANTINE (1996: 8-9)

l’indissociabilité de la construction d’un savoir (anthropologie) à partir du voir et d’une écriture du voir (ethnographie) n’a rien d’une donnée immédiate ou d’une expérience transparente. C’est une entreprise au contraire extrêmement problématique qui suppose que nous soyons capables d’etablir des relations entre ce qui est généralement tenu pour séparé: la vision, le regard, la mémoire, l’image et l’imaginaire, le sens, la forme, le langage.

Em Minas Gerais, a Região do Carmo, ou a “região do ouro”, mostra-nos, quando observamos a sua toponímia, uma zona que se caracteriza por ter recebido uma forte influência portuguesa, católica. Ao fazer o levantamento de alguns topônimos, deparamos com uma realidade que se começou a construir há três séculos: com a decadência das minas de ouro e com a descoberta de solos férteis, o homem europeu vai se fixando no chão e constrói um mundo que remete a santos, igrejas, capelas...

Rio Carmo, Vila do Carmo, Santa Bárbara, Padre Viegas, Nossa Senhora da Conceição de Camargos, Nossa Senhora da Cachoeira do Brumado, Monsenhor Horta, Senhor Bom Jesus do Monte Furquim, São José de Barra Longa, Nossa Senhora da Saúde de Dom Silvério são, dentre outros exemplos, topônimos que se encontram registrados na região e que nos remetem ao

universo ibérico, no ângulo que lhe era mais sensível, o espiritual. Assim, santos e santas católicas, a Virgem, o Divino, a Cruz, constituíram-se em fontes de inspiração perene e, até hoje, configuram motivos relevantes para os locativos. (DICK, 2000: 227)

Conclusão

O que se procurou expor neste texto, mais do que demonstrar uma teoria etnolingüística, foi apresentar metodologias de trabalho que se pode adotar em uma pesquisa toponímica. Metodologias que, entretanto, não dispensam a mais tradicional das fontes de estudo na matéria e que se revelam produtoras de conhecimento onomástico, em inúmeros ângulos, e estímulo à reflexão sobre o papel dos nomes como vetores de uma energeia significativa. Nessa perspectiva, a hodonímia discutida só atinge sua plenitude, gerando frutos, se for amparada pelas designações que conformam os lugares. A idéia é esta: o lugar se configura pelo nome, de preferência étnico, não apenas, porém, como dissemos em outras oportunidades, também pelos seus contornos físicos, pela sua silhueta, pelo seu desenho no terreno. Esta incorporação será tanto mais evidente quanto maior for a opacidade do signo lingüístico em questão, acelerada pelas mutações da própria língua. E é comum isto acontecer com os semas de origem, que são absorvidos pelo referencial ou pela própria natureza do objeto assim designado. Tietê e São Francisco são dois caminhos potamográficos que transmitem ao receptor mais do que o significado interno; são denominativos de alta densidade étnica e sócio-cultural, têm imantação semântica peculiar e justificam o fenômeno apontado da translação toponímica. São polos de formações toponomásticas e geradores de outras matrizes lexicais. Os grupos humanos que se estabeleceram em suas margens foram propulsores das primeiras correntes imigratórias conhecidas no território mas continuam, ainda, até os dias atuais, exercendo o mesmo fascínio de antes. Os mapas pesquisados para este trabalho revelam essa vitalidade, ao mesmo tempo que evidenciaram grupos autóctones, alguns já extintos; outros, mesmo desaparecidos, ainda continuam povoando o imaginário popular, e sobrevivendo, alguns, em seus descendentes caboclos. De qualquer modo, todos foram os construtores da historiografia toponímica brasileira. À medida que se estender a pesquisa para outras áreas, outros povos, outros nomes, outros rios aparecerão como demarcadores da realidade regional e à ela imprimindo a sua marca. O Projeto ATESP (Atlas Toponímico do Estado de São Paulo) dá conta de alguns deles; outros atlas da mesma natureza certamente trarão outras contribuições diversas, segundo a metodologia, o ângulo de pesquisa abordado, o que, numa visão de conjunto, determinarão a memória e o perfil etno-lingüístico do caminho das águas, entre nós.

 

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