FORMAÇÕES X-NTE
DA FLEXÃO EM LATIM À DERIVAÇÃO EM PORTUGUÊS

Carlos Alexandre Gonçalves (UFRJ/CNPq)

Introdução

Neste artigo, analiso as construções latinas X-nt, observando sua evolução para o português a partir do particípio presente. São basicamente dois os objetivos do trabalho: (a) traçar o percurso histórico de -nt, que culminou em sua saída do módulo flexional; e (b) mostrar que essa mudança reforça a proposta de um continuum Flexão-Derivação, nos moldes de Bybee (1985).

O particípio presente latino

Além do infinitivo, do gerúndio e do particípio passado, também o particípio presente (doravante Ppres) integrava o rol das formas nominais do verbo latino. Do ponto-de-vista morfológico, o Ppres manifestava-se como nome, flexionando-se em gênero, número e caso (cf. 01). Como verbo, expressava o tempo presente, o aspecto cursivo e a voz ativa, além de admitir complementação (cf. 02).

(01)

Caso Singular Plural Função
Nominativo Amans Amantes Suj. ou pred.
Acusativo Amantem Amantes Obj. Dir.
Ablativo Amante Amantibus Adj. Adv.
Dativo Amanti Amantibus Obj. Ind.
Genitivo Amantis Amantium Adj. Adn.
Vocativo Amans amantes Interpelação

(02) “Lex est recta ratio imperans honesta, prohibens contraria”.

[a lei é a reta razão [que ordena o (que é) bom] e [(que) proíbe o (que é) mau]

Em termos de categorização lexical, o Ppres apresentava-se como adjetivo, estabelecendo, indiretamente, uma relação de concomitância temporal com o verbo da oração principal (cf. Fava, 1998). Em construções como (03), o Ppres atribui um estado ao sujeito, além de estabelecer o modo como esse sujeito realiza a ação, revelando, nesse uso como predicativo do sujeito, comportamento de adjetivo na fronteira com advérbio.

(03) “Ad nos veniunt flentes”.

[a nós chegam “chorantes”]

As possíveis traduções de (03) para o português não revelam o verdadeiro valor da forma ‘flentes’, pois ora não preservam a noção de processo verbal em estado cursivo, ora não dão conta do sentido adjetival básico do Ppres. A opção com o particípio passado, ‘a nós chegam chorosos’, é incompleta por não veicular a noção de aspecto cursivo, o que se consegue com o gerúndio (‘a nós chegam chorando’), que, por outro lado, não abarca o sentido adjetival dessa forma.

O status flexional do Ppres em latim

Com base em Anderson (1982), podemos dizer que o Ppres era uma categoria gramatical em latim, funcionando, pois, como uma das flexões dos tempos do infectum (não-realizado). Vários são os critérios empíricos usados para distinguir Flexão de Derivação e eles, relacionados ou não, nem sempre levam ao mesmo diagnóstico acerca do status flexional/derivacional de um processo morfológico (cf. Gonçalves, 2001). Assumindo, no entanto, que as principais diferenças são a relevância sintática e a produtividade (cf. Stump, 1998), dois argumentos podem ser trazidos à tona para confirmar o status flexional do Ppres em latim: (a) a manipulação pela Sintaxe (b) a não-existência de células vazias no paradigma que relaciona o verbo com o adjetivo-verbal correspondente.

Se um contexto sintático apropriado leva à expressão das categorias flexionais, podemos dizer que o uso da marca morfológica de particípio presente (o sufixo -nt e sua variante -ns) é manipulado pela Sintaxe (cf. Anderson, 1982). Nas gramáticas latinas (cf., p. ex., Aguiar & Ribeiro, 1925; Freire, 1992; e Cardoso, 1990, entre outras), é freqüente a informação do ambiente sintático que levava à expressão do Ppres, o revela uso compulsório da marca morfológica -nt em sentenças como (02) e (03) acima. Segundo Brandão (1933: 16), a presença do sufixo -nt era obrigatória [grifo meu] para predicar um estado do sujeito em sentenças com verbo principal de ação, como (04) a seguir:

(04) “Qui pro innocente dicit, satis est eloquens”.

[Quem diz em favor de um inocente é bastante eloqüente]

Em legens ambulas, por exemplo, o Ppres favorece uma fusão oracional: simultaneamente, tem-se a ação de caminhar e o estado em que um mesmo sujeito se encontra (em processo de leitura). Em outras palavras, a Sintaxe força a seleção da marca morfológica de Ppres, o que revela ser esse sufixo obrigatório: tem uso compulsório, previsível a partir de uma construção sintática (cf. Anderson, 1982). Como marca flexional, -nt não pode ser substituído por alguma classe especial de formas simples, sem produzir mudança de significado na construção. Afixos derivacionais, são, de certo modo, opcionais, uma vez que podem ser substituídos, sem que se modifique a construção sintática e/ou o significado. Como isso não acontece com o Ppres latino, tem-se, aí, forte evidência de seu comportamento como entidade flexional.

É novamente Brandão (1933: 17) quem nos informa sobre a impossibilidade de substituição do adjetivo verbal numa sentença como (05) a seguir, uma vez que, ao lado de sua função principal de qualificar um substantivo, o particípio presente assegurava a integração sintática de sujeitos ou objetos co-referenciais, atribuindo, adicional-mente, também a idéia de modo. Freire (1992: 35), por outro lado, enfatiza a alta regularidade na produção das chamadas formas nominais, afirmando que eram poucos os verbos que não apresentavam particípio presente correspondente, destacando-se os de sentido geral, como ir, vir, acabar e continuar. Pela citação a Freire (op. cit.), é possível destacar (i) a alta produtividade do sufixo -nt na formação de adjetivos verbais e (ii) a existência de um pequeno contingente de casos excepcionais ou anômalos.

(05) “Uidi eum flentem”.

[vi-o chorando; vi-o chorar]

Pelo depoimento dos gramáticos, podemos concluir que o Ppres era realmente uma categoria flexional em latim, pelo menos na variedade culta. Entendida como propriedade inerente da palavra morfossintática (cf. Anderson, 1982), essa informação gramatical era acessível à Sintaxe (ou manipulada por ela) e, de aplicação bastante geral aos verbos latinos, apresentava poucas células vazias, sendo de uso regular e sistemático para toda essa classe de palavras. Esses requisitos autorizam atribuir status flexional para o sufixo -nt latino.

-nte como afixo derivacional em português

No português contemporâneo, -nt ainda é reconhecido como unidade morfológica, sendo depreendido em palavras como ‘militante’, ‘escrevente’ e ‘estudante’, entre outras. No entanto, construções X-nte não podem mais ser interpretadas como formas nominais do verbo, o que revela mudança na evolução do latim para o português. Hoje, -nte forma substantivos e/ou adjetivos a partir de verbos, em distribuição complementar com -dor na significação agentiva (cf. Miranda, 1979). Sem uso compulsório e com grandes restrições de aplicabilidade, -nte apresenta-se como sufixo derivacional no estágio atual da língua. O fato de tal afixo percorrer um caminho que o levou a adquirir diferente status gramatical sugere a não-rigidez dos limites entre Flexão e Derivação, reforçando a idéia de um continuum entre esses dois processos morfológicos (cf. Bybee, 1985).

De fato, não há lugar na cadeia sintagmática que motive o uso do sufixo -nte, que pode ser substituído por outra forma de expressão que não a morfológica, sem prejuízo do significado, como se observa em (06). Em outras palavras, a Morfologia não atua soberana na tarefa de materializar o conteúdo expresso por esse afixo, o que, por si só, constitui evidência contrária a qualquer tentativa de se analisar como flexional esse sufixo (cf. Bybee, 1985).

(06) Viu um filme emocionante ou (que emociona/emocionou)

(chato, alegre, emocionador)

Além da não-obrigatoriedade, também a existência de células vazias no paradigma que relaciona o verbo ao adjetivo correspondente em -nte reforça o status derivacional desse afixo no português contemporâneo. Como se sabe, os paradigmas flexionais tendem a ser mais padronizados que os derivacionais: são conjuntos fechados, com pequeno contingente de casos excepcionais. Em (07), observam-se lacunas na relação verbo-adjetivo X-nte, não havendo distribuição regular, coerente e precisa entre as formas desse paradigma. Como não há aplicabilidade maciça às formas verbais, -nte perde em generalidade e, com isso, não pode ser considerado flexional: não é possível fazer previsões gerais do tipo “todo verbo recebe a informação de tempo presente” ou “qualquer nome pode ser pluralizado”. Se não há generalidade suficiente para que -nt se aplique a toda uma categoria lexical, é quase nula a possibilidade de diagnosticá-lo como afixo flexional (cf. Gonçalves, 2001).

(07) cativar cativante

desgastar desgastante

entediar entediante

amassar ????

arrastar ????

perder ????

???? freqüente

???? intransigente

???? conivente

A mudança de status do afixo -nte pode ser explicada pela perda da função verbal do Ppres. Segundo Ferrari (1995), o Ppres teve suas funções assimiladas pelo gerúndio a partir da noção de concomitância temporal. Com o gerúndio, expressava-se o modo como se desenvolvia a ação, enquanto, com o Ppres, representava-se o estado de um ser no momento em que se desenvolvia a ação. Para Ferrari (op. cit.), foi a afinidade entre o modo da ação e o estado do ser que levou o gerúndio a englobar de vez o Ppres.

Com a perda da função verbal, muitas formas X-nte se fixaram na língua independentemente dos verbos de origem, o que favoreceu migração de algumas para classes mais gramaticais, como ‘consoante’, ‘(não) obstante’, ‘bastante’, ‘doravante’ e ‘mediante’, entre outras, recategorizadas em advérbios ou conjunções. Em todos esses casos, não é mais possível depreender o sufixo -nt.

Nos casos em que é possível isolar o afixo -nte, Basílio (1981) contesta a aludida distribuição complementar com -dor, na formação de agentivos deverbais (cf. ‘despachante’ vs. ‘despachador’; ‘combatente’ vs. ‘combatedor’). Para Basílio (op. cit.), não são agentivos os adjetivos formados pelo acréscimo de -nte a uma base verbal, uma vez que eles não atribuem agentividade ao elemento a que se ligam. Em (08), os adjetivos em -nte têm a função de especificar propriedades ou qualificar (e não a de expressar agentividade).

(08) Cena comovente - cidade neurotizante - candidato conveniente - suspiro ofegante.

Dessa forma, podemos concluir que o sufixo -nte continua produtivo, conferindo aos itens a que se anexa traços de seu funcionamento em latim. Por exemplo, a função predicativa ainda é codificada pelas formas X-nte, como se vê no contraste entre (09a) e (09b). Também o aspecto durativo fica bastante saliente quando se comparam formações X-dor e X-nte a partir de uma mesma base (cf. 10). O que mudou foi apenas seu lugar no componente morfológico: da flexão para a derivação.

(09) (a) chegou envolvendo.

(b) chegou envolvente.

(10) repetente repetidor

insinuante insinuador

hesitante hesitador

atendente atendedor

Palavras finais

Este ensaio sobre as formas X-nte reforça a idéia de que não há um limite intransponível entre Flexão e Derivação, confirmando, no plano diacrônico, a idéia de continuum entre as duas morfologias. A transição de -nte para a Morfologia Derivacional condiz com a premissa de Bybee (1985) sobre os chamados “determinantes da expressão flexional”: a perda da função verbal do Ppres levou à baixa generalidade da afixação em -nte, implicando, em contrapartida, num grau maior de relevância do afixo para o conteúdo da base verbal. Aumento na relevância e baixa na generalidade determinaram distanciamento do afixo do extremo flexional no continuum Flexão-Derivação.

Referências

AGUIAR, M. & RIBEIRO, G. Gramática latina. Rio de Janeiro : Jacinto Ribeiro dos Santos, 1925.

ANDERSON, S. Where’s morphology? Language, 52: 1, 1982.

BASÍLIO, M. Re-estudo de agentivos. Comunicação apresentada no IV Encontro de Lingüística da PUC-Rio. Rio de Janeiro : PUC-Rio, 1981. Mimeo.

BRANDÃO, C. O particípio presente e o gerúndio em português. Belo Horizonte : Imprensa Oficial, 1933.

BYBEE, J. Morphology. Cambridege : Cambridge University Press, 1985.

CARDOSO, Z. Iniciação ao latim. São Paulo : Ática, 1990.

FAVA, S. P. Gramaticalizações do particípio presente. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro : UFRJ/Faculdade de Letras, 1998.

FERRARI, L. Gramaticalização e polissemia nas reduzidas de gerúndio. Juiz de Fora : Departamento de Letras da UFJF, 1995.

FREIRE, A. Gramática latina. Lisboa : Livraria A. I, 1992.

GONÇALVES, C. A. V. Flexão/Derivação: do continuum a categorias discretas. Cadernos Seminal. Rio de Janeiro, 2001, 10 (1): 1-21.

MIRANDA, N. S. Estudo sobre a produtividade dos agentivos verbais. Anais do III Encontro Nacional de Lingüística. Rio de Janeiro : PUC-Rio, 1979.

STUMP, D. Inflecton. In: ZWICKY, A. & SPENCER, A. (eds.). The handbook of morphology. Oxford : University Press, 1998.