CONSIDERAÇÕES SOBRE OS INÉDITOS DE JOÃO GUMES

Maria da Conceição Souza Reis (UNEB/UFBA)

 

João Gumes: vida e obra

O baiano João Antônio dos Santos Gumes nasceu em Caetité em 1858 e morreu em 1930. Homem de poucos recursos financeiros, mas admirado e respeitado por todos, participou ativamente da vida pública e cultural de sua terra natal. Foi, entre outras coisas, escrivão da Coletoria Geral, tesoureiro e secretário da Intendência, secretário da Câmara Municipal, advogado provisionado, professor, arquiteto, músico, tipógrafo, desenhista, dramaturgo, tradutor, escritor e jornalista.

Um apaixonado pela região sudoeste do estado da Bahia, desde muito jovem, abraçou como uma de suas principais causas defender os direitos do homem nordestino, especialmente daqueles que habitavam o denominado Alto Sertão. Um ser simples e de alma elevada. Defendia veementemente a bandeira dos oprimidos homens do campo esquecidos e explorados pelos "engravatados da cidade grande", dos escravos maltratados, e combatia o analfabetismo reinante naquele período no nordeste brasileiro. Parece escrever com este fim e considerava seu romance Os analphabetos "uma propaganda em favor da alphabetização do nosso povo como meio seguro de melhorar a sua condição e torná-lo útil a prosperidade de sua terra." Assuntos estes abordados tanto na sua produção literária quanto na jornalística. Implantou a imprensa no Alto Sertão baiano, publicando o jornal A Penna. Segundo o próprio João Gumes, o A Penna foi o principal órgão de imprensa daquela região e “um dos mais importantes fatores do progresso social” (Cf. GUMES, 1928, p.7).

Apesar de seu nome não figurar nos compêndios de literatura brasileira e/ou baiana, Gumes escreveu romances, comédias, dramas e crônicas. Chegou a publicar os romances: O Sampauleiro, Os Analphabetos (Cf. id. ibid.), Pelo sertão e Vida campestre. Deixou inédito os romances Seraphina, Mourama, Sorte Grande e o drama Abolição.

 

Os autógrafos de João Gumes

um estudo de gênese

É possível encontrar no espólio de João Gumes textos em que se podem notar as marcas que se registram ao longo da produção textual. O autor põe em confronto diversos materiais lingüísticos, que vai testando, pondo em prática mecanismos de recusa, substituição, acrescento, deslocamento, até encontrar ou não aqueles que melhor designam as suas representações da realidade.

Nestes documentos autógrafos, podemos observar que o autor, na tentativa de alcançar o texto "perfeito", mais elaborado, procede leituras, releituras e reformulações da linguagem. Essas reformulações consistem em reorganizações locais limitadas ao texto, manifestadas na pontuação, na ordem das palavras, nas construções sintáticas, nas escolhas de termos gramaticais e lexicais.

Encontra-se, entre os manuscritos autógrafos do autor, textos sem correções, com poucas correções e outros com muitas correções. Daí poder inferir que os inéditos de João Gumes podem ser divididos em dois grupos: textos passados a limpo e rascunhos. Os romances Seraphina e Mourama são documentos em que se observa poucas vacilações do autor, praticamente, não há emendas autorais. Seraphina, por exemplo, é uma obra que, apesar de ter sua elaboração interrompida no quinto capítulo não apresenta emenda. Nesse caso em particular, podem ser levantadas duas hipóteses: a obra fora formada primeiramente no espírito do autor (Cf. DUARTE, 1993) e à medida que era exteriorizada agradava a seu criador, ou à medida que os capítulos eram redigidos o autor passava-os a limpo.

O drama Abolição e os manuscritos do romance édito O Sampauleiro fazem parte do segundo tipo: textos não passados a limpo. Esses, diferentemente daqueles, são cheios de hesitações, de correções que testemunham a dinâmica de espírito do autor no processo de gênese da obra.

A partir desse momento, passar-se-á a fazer uma breve demonstração da cristalização do processo de construção do texto de João Gumes. Para tanto escolheu-se o prólogo do drama Abolição, texto que traz marcas das várias fases do trabalho de sua construção.

 

Descrição da versão

Texto em versão única, manuscrito autógrafo, completo, com 609 linhas. Texto em 10 fólios, dividido em doze cenas, com a numeração em algarismos arábicos. Mancha escrita em pena de aço de cor azul, lançada da primeira a última linha da pauta, entre as margens direita e esquerda do papel pautado azul, ao centro, presença da marca d’água em formato de uma flor e a baixo a palavra Dracones. Os fólios, sem numeração, foram costurados compondo um livro. A capa traz o título Abolição e a indicação Comedia em 1 prologo e 3 actos por João Gumes. Apesar da letra bem traçada, o texto não passado a limpo.

 

Tipos de correções

Gumes ao elaborar seu discurso narrativo no prólogo do drama Abolição submete-o a pelo menos três intervenções: uma campanha de escrita e duas de correção. Primeiro o autor escreveu o texto-base (M1) e , ao longo da redação faz algumas correções (M2 e M3).

M1 - texto-base, com correções feitas em curso de redação, algumas supressões e substituições, por sobreposição ou por substituição imediata.

M2 - correções por supressões, substituições, acrescentamento, quase sempre localizados na entrelinha superior do texto-base, assinalado, algumas vezes, com um X nos lugares emendados.

M3 - correções por supressões realizadas em uma terceira releitura do texto.

Momento genético

Os autógrafos revelam que Gumes, no processo de depuração de seu texto, tinha tendência a proceder correções em seu discurso. Apresenta 66 lugares variantes, ou seja, lugar de redação não única. São correções estilísticas funcionais: substituição, supressão e acrescentamento; e espaciais: na linha, na entrelinha e em sobreposição.

 

Gênese do texto

O prólogo do drama Abolição não apresenta características de um texto definitivo. Rico em correções, perfazendo um total de 68 correções: 43 no momento de escrita (ME), 25 no momento posterior (MP). Vejam-se alguns exemplos:

Substituição por sobreposição

<Os> [os] 3 atos em 1888 (L. 11)

virtudes que não têm e desconhece<ndo>[m] os meritos alheios? (L. 616)

Que<m>[r] amesquinhar quem ja de si é mesquinho (L. 456)

b) Substituição no curso da escrita

vive sonhando com <o> [um] futuro a que não tem direito. (L.62)

promettendo-lh’<e> [o] vender <lh'o> quando fosse possivel. (L.69)

Como se sente <um prazer,> [uma espécie] de refrigerio da alma (L. 285)

c) Substituição na entrelinha superior

teu corpo é teu e <todos> [↑ambos] juntos (L. 111)

pullular <na> [↑em] epocha não mui remota. (L 341)

Alli, <lagrimas e lamentos,> o[↑soffrimento da vitima,] aqui (L. 519)

d) Substituição na entrelinha inferior

aqui < a tempestade de remorso!> [↓ as agruras do remorso.] (L. 520)

e) Acrescentamento na entrelinha superior

encontrar pessoas [↑que pensassem] de modo differente (L.378)

a sua linguagem e [↑vendo] o seu porte magestoso?! (L. 550)

uma facção com um nome, [↑que tornam odioso] aggremiam (L. 614)

f) Acrescentamento na entrelinha inferior

fica o negocio concluido entrando/ o molecote [↓pr1:200#000]. (L. 20)

g) Supressão

Um rapaz <de futuro> como o Sr. Xico, (L.50)

Tenho 15 annos, <e tenho> meu Senhor, bastante intelligencia (L.119)

teria a obrigação de vir aqui <constantemente> a meudo (L.267)

A supressão é o caso mais freqüente. Das 64 correções, 27 foram supressões, recurso utilizado pelo autor como mecanismo equilibrador do texto responsável pelo processo de anulação da redundância discursiva. A substituição à frente é a segunda mais freqüente, registram-se 12 ocorrências. Normalmente, o autor risca cancelando e o substituto se coloca de imediato à frente do substituído. Essa correção parece pertencer ao primeiro jato de escrita, ou seja, substituição em curso. Apresenta 06 substituições na entrelinha superior, ocupando quase sempre espaço material deixado livre pelo texto primitivo. Um outro tipo de substituição é a sobreposição: adaptação de partes do enunciado já escrito, com a finalidade de estabelecer concordâncias. O terceiro, em número de ocorrência, vem o acrescentamento na entrelinha superior, se observaram 9 ocorrências. O acrescentamento na entrelinha inferior ficou reduzido a apenas 1 caso. As tabelas que se seguem dão mostras quanto ao tipo e tipologia das correções que se verificam no prólogo de Abolição:

 

TABELA 1 - Ocorrência e freqüência dos tipos de correção

Prólogo

SS

SF

SeS

SeI

AcS

AcI

S

Total

8

12

6

1

9

1

27

Quanto às classes transformadas, o autor manipula, em proporção não aproximada, os signos gramaticais (artigo, pronome relativo, pronome possessivo, conjunção) e os signos léxicos (substantivo, verbo, adjetivo, advérbio). No nível da estrutura sintática, suprime frase, e ora permuta, ora suprime os SN e SP.

Salienta-se a preocupação do escritor com os signos gramaticais frente aos léxicos, conforme se observa da distribuição das classes gramaticais sobre as quais o autor reelabora a sua linguagem. Dentre os signos léxicos, predominam palavras que têm a função básica na frase (verbos, substantivos e adjetivos). Entre os signos gramaticais, preocupa-se mais com as preposições, os pronomes e as conjunções, processando alterações de cunho estilístico.

 

TABELA 2-

Distribuição de classes de palavras em termos tipográficos.

CLASSE

SIGNOS LÉXICOS

SIGNOS GRAMATICAIS

TIPO

Sub.

Adj.

V.

Adv.

Prep.

Conj.

Pron.

Art.

SS

1

 

2

 

2

 

1

1

SF

1

 

2

 

2

 

2

3

SeS

 

1

   

1

 

2

 

SeI

   

1

         

AcS

       

4

 

2

 

AcI

               

S

1

2

3

4

 

4

2

2

Total

3

3

8

4

9

4

9

6

 

12

28

Observe-se a tabela que registra a ocorrência e a freqüência dos diversos tipos de estruturas sintáticas:

 

TABELA 3-

Distribuição da estrutura sintática em termos tipográficos

ESTRUTURAS SINTÁTICAS

 

SN

Sadj.

Sadv.

SP

Ffrag.

Sup.

2

   

2

6

Subst.

3

   

1

1

Acrescent.

     

1

2

Total

5

   

4

9

Quanto à transformação genética que envolve a estrutura sintática, o fenômeno mais significativo é a supressão (08). O fragmento de frase parece ser o principal alvo (09) de João Gumes.

 

Considerações finais

As informações aqui apresentadas dão apenas uma pequena amostra do estudo que visa analisar os documentos autógrafos de João Gumes, na tentativa de encontrar um processo de classificação de manuscritos, considerando suas características lingüísticas, de forma que seja possível determinar o grau de aperfeiçoamento estilístico (traçar sua gramática estilística), como também contribuir para a definição de estratégias editoriais.

 

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